Doença de Kawasaki: diagnóstico, critérios clínicos e manejo em pediatria
A doença de Kawasaki (DK) é uma vasculite sistêmica aguda que afeta predominantemente crianças menores de cinco anos, cerca de 66% dos casos. É rara em menores de 6 meses e maiores de 8 anos. A incidência varia geograficamente, sendo conhecida a maior incidência em crianças japonesas.
Não há nenhum exame laboratorial patognomônico, o diagnóstico é clínico e baseia-se em critérios específicos. O diagnóstico precoce é extremamente importante, pois o tratamento é indicado na fase aguda com o objetivo de reduzir o processo inflamatório e prevenir o desenvolvimento de aneurisma de artérias coronárias. É conhecido um aumento sazonal da doença nos períodos de inverno e início da primavera.
Quando tratada adequadamente, a DK está associada a uma baixa taxa de mortalidade (~0,08% de taxa de fatalidade de casos na maior série relatada). Entretanto, no mundo desenvolvido, é a causa mais comum de doença cardíaca adquirida na infância, com 25% dos pacientes não tratados e 5% dos pacientes tratados desenvolvendo aneurismas de artéria coronária. Entre os bebês com menos de 6 meses de idade, o risco de aneurisma da artéria coronária é de 50%, mesmo em pacientes com DK que receberam tratamento nos primeiros 10 dias da doença.
Critérios diagnósticos
- Febre persistente por pelo menos cinco dias (o primeiro dia de febre é considerado o primeiro dia da doença).
- Quatro dos cinco achados clínicos principais:
- Conjuntivite bilateral: injeção conjuntival bulbar sem exsudato.
- Alterações orais: lábios rachados e eritematosos, língua em morango, e/ou eritema da mucosa oral e faríngea.
- Linfadenopatia cervical: linfonodo cervical com diâmetro ≥1,5 cm, geralmente unilateral.
- Alterações nas extremidades: eritema e edema das mãos e pés na fase aguda e/ou descamação periungueal na fase subaguda.
- Rash polimorfo: maculopapular, eritroderma difusa ou semelhante ao eritema multiforme.
Em casos em que há pelo menos quatro dos achados clínicos principais, especialmente quando há eritema e edema das mãos e pés, o diagnóstico pode ser feito com apenas quatro dias de febre. Em situações raras, clínicos experientes podem diagnosticar a DK com apenas três dias de febre se a apresentação clínica for clássica.
Para a DK incompleta (atípica), o diagnóstico é considerado em pacientes com febre persistente por pelo menos cinco dias e menos de quatro dos achados clínicos principais, mas com evidências laboratoriais ou ecocardiográficas compatíveis, como elevação dos reagentes de fase aguda (PCR, VHS), hipo-albuminemia, elevação das enzimas hepáticas, ou piúria estéril.
A ecocardiografia transtorácica é o método de imagem de escolha para rastrear aneurismas coronarianos, que são uma complicação significativa da DK.
Outros achados clínicos
Como a DK é uma vasculite sistêmica, mais sintomas podem ser encontrados em outros órgãos:
- Musculoesquelético: artrite e artralgia;
- Gastrointestinal: diarreia, vômitos, dor abdominal, disfunção hepática, icterícia, hidropisia de vesícula biliar, pancreatite;
- Sistema nervoso central: irritabilidade extrema, meningite asséptica, surdez neurossensorial;
- Cardíacas: miocardite, insuficiência cardíaca congestiva, pericardite, regurgitação valvar;
- Outros: eritema em cicatriz BCG, uveíte anterior.
Alterações laboratoriais
- Leucocitose com neutrofilia e desvio à esquerda;
- Anemia;
- Plaquetose;
- Aumento de proteína C reativa e velocidade de hemossedimentação;
- Aumento das transaminases;
- Gama GT aumentada;
- Hiperbilirrubinemia;
- Hipoalbuminemia;
- Diminuição de colesterol total e frações;
- Piúria estéril;
- Pleocitose no líquor;
- Leucocitose em líquido sinovial.
Tratamento
Os pacientes devem ser tratados com IVIG 2 g/kg em uma única infusão, geralmente administrada durante 10 a 12 horas, juntamente com AAS.
A IVIG foi estabelecida como o tratamento padrão para a DK nas últimas quatro décadas devido à redução significativa da taxa de aneurismas da artéria coronária, bem como à redução da duração da febre e de outros sintomas associados ao seu uso. Assim, o uso de IVIG é um dos pilares da terapia da DK.
Os mecanismos do efeito terapêutico da IVIG na DK ainda estão sendo estudados. Para pacientes com DK aguda que apresentam alto risco de resistência à IVIG ou de desenvolver aneurismas da artéria coronária, o uso de IVIG com glicocorticoides adjuntos como terapia inicial é condicionalmente recomendado em relação ao tratamento apenas com IVIG.
Para pacientes com DK aguda, o uso de aspirina é altamente recomendado. Historicamente, altas doses de aspirina (80-100 mg/kg/dia) foram usadas durante a fase aguda para efeitos anti-inflamatórios. É uma recomendação forte porque a aspirina é reconhecida como uma intervenção de baixo custo com toxicidade limitada na dosagem antiplaquetária, também porque há consequências significativas de não inibir a atividade plaquetária, como a trombose da artéria coronária.
A administração de AAS em dose moderada (30-50 mg/kg/d) a alta (80-100 mg/kg/d) é razoável até que o paciente esteja afebril, embora não haja evidências de que isso reduza os aneurismas da artéria coronária. As práticas relacionadas à duração da administração de altas doses de AAS variam entre as instituições, sendo que muitos centros reduzem a dose de AAS depois que a criança fica afebril por 48 a 72 horas.
Outros clínicos continuam a administrar AAS em altas doses até o 14º dia da doença e pelo menos 48 a 72 horas após o término da febre. Quando a dose alta de AAS é suspensa, inicia-se uma dose baixa de AAS (3 a 5 mg/kg/d), que deve ser mantida até que o paciente não apresente nenhuma evidência de alterações coronarianas, 6 a 8 semanas após o início da doença.
Para pacientes com DK incompleta, recomenda-se enfaticamente o tratamento imediato com IVIG no momento do diagnóstico, em vez de adiar o tratamento até o 10º dia ou mais tarde.
Seguimento e possíveis complicações
Aproximadamente 10% a 20% dos pacientes com DK desenvolvem febre recrudescente ou persistente pelo menos 36 horas após o término da infusão de IVIG e são denominados resistentes à IVIG. Nesse caso, é recomendável repetir o tratamento com IVIG.
A administração de corticosteroides em pulsoterapia (geralmente metilprednisolona 20-30 mg/kg por via intravenosa por 3 dias, com ou sem um curso subsequente e redução gradual de prednisona oral) pode ser considerada como uma alternativa à uma segunda infusão de IVIG ou para o retratamento de pacientes com DK que tiveram febre recorrente ou recrudescente após IVIG adicional. Tratamento adicional com imunomoduladores, como ciclosporina ou infliximab, deve ser considerado em casos específicos de DK recorrente, se possível, um especialista em reumatologia deve ser consultado.
- Síndrome de ativação macrofágica: pode-se suspeitar de SAM em pacientes com DK com febre persistente, esplenomegalia, níveis elevados de ferritina e trombocitopenia. O tratamento inadequado da DK ou da SAM pode resultar em consequências graves. Essas incluem grandes aneurismas coronarianos ou estenose da artéria coronariana, levando à morte por infarto cardíaco ou ruptura coronariana na DK, ou morte por disfunção de múltiplos órgãos na SAM.
- Disfunção miocárdica: em casos graves, pode haver infarto agudo do miocárdio seguido de choque cardiogênico, essas complicações devem ser tratadas com drogas vasopressoras e diuréticos de acordo com as características clínicas.
Para pacientes sem complicações, recomenda-se repetir a ecocardiografia entre 1 a 2 semanas e novamente entre 4 a 6 semanas após o início do tratamento. Em casos de aneurismas coronarianos grandes ou gigantes em expansão, é indicado realizar o exame duas vezes por semana durante a fase de rápida expansão das dimensões. Nos primeiros 45 dias da doença, a frequência pode ser reduzida para uma vez por semana, passando a mensal a partir do terceiro mês. Essa abordagem é essencial para identificar precocemente a trombose da artéria coronária, uma vez que atrasos no ajuste da tromboprofilaxia representam uma das principais causas de morbidade e mortalidade.
Os pacientes com doença de Kawasaki devem ser acompanhados com equipe especializada de reumatologistas e cardiologistas pediátricos. A depender da extensão dos danos e da recorrência ou não da doença, esse acompanhamento deverá ser vitalício.
Curiosidade
Por fim, durante a pandemia de COVID-19, surgiu uma nova síndrome inflamatória multissistêmica em crianças (MIS-C) associada à infecção por SARS-CoV-2, com algumas características sugestivas de DK. Embora até 50% desses pacientes possam atender aos critérios de DK, muitos deles apresentam manifestações que não são comuns na DK, incluindo colite, miocardite e alterações neurológicas. Frequentemente, apresentam ou desenvolvem choque. São necessários mais estudos para entender a relação entre MIS-C e DK, especialmente a síndrome do choque de Kawasaki.
Com base na experiência clínica, é importante reconhecer e diferenciar esses pacientes dos pacientes com DK clássica. Os pacientes que preenchem os critérios para DK devem ser tratados com as terapias discutidas nesta diretriz. São necessárias pesquisas adicionais para determinar o tratamento ideal para a MIS-C com e sem características de DK.
Orientações pós-alta hospitalar
Os pacientes com DK podem apresentar recorrência da doença ou doença refratária ao tratamento, anunciada pelo retorno da febre e de outros sintomas. Além disso, a duração da febre é um indicador de aneurismas da artéria coronária.
Portanto, os pacientes devem ser monitorados diariamente quanto à febre por uma ou duas semanas após a alta, sendo a febre definida como uma temperatura oral em crianças mais velhas e uma temperatura retal em bebês >38,0 °C ou uma temperatura axilar >37,5 °C. Os pais ou responsáveis devem ser instruídos pelo médico que está dando alta sobre como medir a temperatura e devem entrar em contato com o médico caso a febre volte a aparecer. O monitoramento diário da febre é altamente recomendado, pois é de baixo custo, não causa danos e pode identificar KD recorrente.
Crianças com DK aguda durante a temporada de gripe que ainda não foram imunizadas devem receber a vacina inativada contra a gripe antes de deixar o hospital, assim como qualquer membro da família que ainda não tenha sido vacinado para a temporada. Aqueles que estão em terapia crônica com AAS devem receber uma vacina anual contra a gripe inativada
As imunizações contra sarampo, caxumba e varicela devem ser adiadas por 11 meses após o recebimento de uma alta dose de IVIG. Entretanto, as crianças com alto risco de exposição ao sarampo podem ser vacinadas mais cedo e re-imunizadas pelo menos 11 meses após a administração da IVIG, caso tenham uma resposta sorológica inadequada.
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