Como citar este artigo: Hastenteufel, L.C.T. & Rados, D. R. V. (2022, 28 jan.). Tromboembolismo venoso: quando e como investigar trombofilias?. Blog Artmed. https://artmed.com.br/artigos/tromboembolismo-venoso-quando-e-como-investigar-trombofilias-v2

Desde a descrição de Virchow da sua famosa tríade de dano endotelial, estase vascular e hipercoagulabilidade no século 19, sabe-se que estes são fatores determinantes para eventos trombóticos no sistema venoso. De uma forma mais ampla, o tromboembolismo é uma condição multifatorial resultante do desequilíbrio entre fatores anti e pró-coagulantes. A partir disto, trombofilia é qualquer fator (congênito e/ou adquirido) que condicione a uma maior chance individual à formação de trombos (1).

As trombofilias hereditárias ocorrem em cerca de 5% dos pacientes com tromboembolismo venoso (TEV) – termo que engloba tanto trombose venosa profunda e tromboembolismo pulmonar. Em contextos de pesquisa, que incluem mutações de menor relevância clínica e polimorfismos de significado clínico menos claro, encontra-se substrato genético para até 50% dos casos de TEV (1,2). Além disso, condições adquiridas – como uso de estrógeno exógeno, cirurgias, neoplasias e a síndrome do anticorpo antifosfolipídio (SAAF) – aumentam o risco de alto risco de eventos trombóticos.

Em suma, todo paciente com TEV deve ser avaliado para fatores de hipercoagulabilidade pela história clínica, mas a pesquisa laboratorial de trombofilias hereditárias (e SAAF) é indicada primordialmente nas situações em que o resultado do exame alterar a decisão de anticoagulação. A Tabela 1 apresenta um resumo das principais situações clínicas a se considerar ou contraindicar testagem. Nem sempre a identificação de uma trombofilia hereditária modifica a condução do caso e, em alguns casos, pode resultar em anticoagulação inapropriadamente prolongada (1,2).

Tabela 1. Recomendações sobre rastreamento de trombofilias

Avaliação de rotina do paciente com tromboembolismo

O primeiro passo na avaliação é o exame clínico: deve-se investigar causas comuns de trombofilia adquirida (Tabela 2), a presença de eventos prévios de TEV (no paciente e em familiares de 1 grau – mais relevante se antes dos 45 anos), bem como sinais e sintomas de neoplasia e rastreamentos recomendados para idade (3).

O risco basal do paciente deve fazer parte do raciocínio: em pacientes jovens, TEV desencadeado por um fator de risco menor (cirurgia de pequeno porte) pode indicar uma predisposição genética; por outro lado, o mesmo evento em um paciente > 60 anos não sugere a presença de substrato genético pró-coagulante (1). Em mulheres, a história obstétrica e de abortamentos deve ser revisada, e em pacientes adultos de qualquer faixa etária deve-se estar atento para lúpus eritematoso sistêmico e síndrome do anticorpo antifosfolipídeo (1).

Além destes aspectos da história e exame clínico, a avaliação para todos os pacientes com TEV deve incluir:

hemograma com esfregaço;
função renal e hepática;
velocidade de hemossedimentação;
provas de coagulação (tempo de protrombina, tempo de tromboplastina parcial ativado e fibrinogênio) (1).

A apreensão com neoplasia é frequente em pacientes com eventos tromboembólicos sem fator desencadeante claro. Esta hipótese deve ser sempre avaliada na anamnese e no exame físico. Exames de rastreio recomendados para população em geral de acordo com faixa etária devem ser realizados ou colocados em dia (2). Não se deve realizar tomografias como rotina para rastreio de neoplasia em pacientes assintomáticos e sem fatores de risco adicionais (4).

Tabela 2. Causas adquiridas de trombofilia (3)

Avaliação complementar – quais doenças investigar?

Para os pacientes elegíveis para investigação adicional, os principais diagnósticos a serem considerados são SAAF e as cinco principais trombofilias hereditárias:

deficiências de antitrombina ou proteínas C e S;
fator V de Leiden;
e mutação do gene da protrombina.

Os principais exames a serem solicitados estão listados na Tabela 3. As três primeiras alterações (deficiência de antitrombina, proteínas C e S) levam à redução da produção de proteínas anticoagulantes da cascata da coagulação e promovem um estado pró-trombótico. O fator V de Leiden é uma mutação no fator V da cascata da coagulação, transformando-o resistente à inativação. Por fim, a mutação do gene da protrombina leva a um aumento nos níveis séricos deste de fator da coagulação.

Tabela 3. Testes sugeridos para investigação de trombofilias (1,5)

O aconselhamento pré-teste é fundamental. Mesmo em casos positivos, nem todos os indivíduos portadores de uma mutação terão manifestação clínica ao longo da vida. Por outro lado, pacientes com forte história familiar, mesmo com investigação negativa, também devem ser aconselhados a evitar fatores de risco pró-trombóticos adicionais e, em caso de TEV, considerar manter anticoagulação por tempo indeterminado (2,3). Em pacientes com trombose esplâncnica, deve-se considerar também a investigação de doença mieloproliferativa, tais como policitemia vera e hemoglobinúria paroxística noturna (2).

Alguns detalhes da investigação laboratorial devem ser ressaltados:

No caso de investigação de SAAF, é necessária a dosagem dos anticorpos em duas ocasiões com 12 semanas de intervalo (5).
É comum que os níveis plasmáticos de antitrombina, proteína C, proteína S e anticoagulante lúpico estejam reduzidos durante o evento agudo de trombose, e por isso a dosagem desses fatores deve ser postergada para pelo menos 6 semanas após o evento tromboembólico (2,6).
Não se deve realizar a testagem para trombofilias durante o evento agudo:
- É recomendada a suspensão de varfarina por 2 semanas, de anticoagulantes diretos por 3 dias e de heparinas por 24 horas para dosagem de fatores da cascata da coagulação (proteínas C e S e antitrombina) (2).
- Embora a testagem das mutações do fator V de Leiden e do gene da protrombina não sejam afetadas pelo uso de anticoagulantes, o manejo inicial de paciente com TEV não será modificado com o resultado destes testes (6).

As trombofilias hereditárias são raras. A heterozigose para o fator V de Leiden é a alteração mais frequente (5% da população geral e 16% dos indivíduos com TEV) e implica em um risco anual de 0,5% de TEV. Por outro lado, a homozigose para o fator V de Leiden é rara (4 casos para cada 100 mil pessoas da população geral e 10 casos para cada 100 mil indivíduos com TEV), mas está associada com um risco até 80 vezes maior de eventos do que pacientes controle (1). Não há associação consistente de deficiências de antitrombina, proteína C e proteína S com tromboses arteriais, enquanto a presença do fator V de Leiden aumenta o risco de trombose arterial em 30% (7,8).

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Café pré-round: seu resumo antes de pôr o conteúdo em prática

O primeiro passo na avaliação de um paciente com TEV é a revisão da história para identificação de um fator predisponente para o evento. Cirurgias, neoplasias e uso de estrógenos são os principais.
A pesquisa laboratorial de trombofilias deve ser realizada apenas em casos selecionados, quando a sua identificação for mudar a decisão do tempo de anticoagulação.
As principais situações que a investigação adicional está recomendada são em pacientes sem fator desencadeante identificado, especialmente se jovens, com tromboses em sítios atípicos e com familiar de primeiro grau com TEV antes dos 45 anos.
As trombofilias mais frequentes que devem ser investigadas são SAAF, deficiências de proteína C e S, antitrombina, fator V de Leiden e mutação do gene da protrombina.

Editoria de Clínica Médica

Editor-chefe: Dimitris Varvaki Rados.

Médico internista e endocrinologista. Mestre e doutor em endocrinologia pela UFRGS. Preceptor do programa de residência médica em medicina interna do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e pesquisador do TelessaúdeRS.

Referências:

Tromboembolismo venoso: quando e como investigar trombofilias? V2

Tromboembolismo venoso: quando e como investigar trombofilias?