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Alergia ao leite de vaca (APLV): como identificar?

A APLV é caracterizada pela reação do sistema imunológico às proteínas do leite (caseína, alfa-lactoalbumina e beta-lactoglobulina), causada pela exposição de proteínas integrais no trato gastrointestinal do lactente. É o tipo de alergia alimentar mais comum nas crianças até vinte e quatro meses, sendo raro o seu diagnóstico em indivíduos acima dessa idade, visto que há tolerância oral progressiva às proteínas do leite de vaca. No Brasil, sua prevalência em crianças com até os dois anos de idade oscila de 0,3% a 7,5%, sendo que apenas 0,5% estão em aleitamento materno. As taxas de diagnóstico de APLV em países desenvolvidos têm se mantido estáveis, com taxas confirmadas por teste de provocação oral variando entre 0,5% e 1% em crianças menores de 2 anos, conforme demonstrado em grandes coortes europeias multicêntricas e revisões sistemática. É conhecido um aumento das taxas em países em desenvolvimento, como observado em uma coorte chinesa, onde a prevalência de APLV aumentou de 1,6% em 1999 para 5,7% em 2019, embora esses dados possam refletir diferenças metodológicas e maior reconhecimento diagnóstico. Porém, é importante mencionar que as estimativas baseadas em relatos parentais tendem a superestimar a prevalência, chegando a até 14%, mas a confirmação diagnóstica rigorosa reduz substancialmente esses números.

Sinais e sintomas da APLV

Os sintomas da APLV são variados e dependem do mecanismo imunológico envolvido, que pode ser mediado por IgE, não mediado por IgE (hipersensibilidade mediada por células), ou misto (quando ambos os mecanismos estão envolvidos).

Nos casos de APLV mediada por IgE, as manifestações clínicas em geral são imediatas (ocorrem em até duas horas após o contato com o alérgeno). Normalmente caracterizam-se por reações agudas que podem envolver mais sistemas ou órgãos.

Já nos casos de APLV não mediada por IgE, em geral, os sintomas manifestam-se tardiamente, ou seja, entre duas horas a sete dias, sendo mais comum o envolvimento do trato gastrointestinal, com resolução em mais de 50% dos casos ainda no primeiro ano de vida.

As manifestações clínicas de cada uma dessas síndromes alérgicas, sobretudo as não mediadas são complexas, para maiores informações sobre cada a identificação de cada uma delas, veja o consenso brasileiro de alergia alimentar.

Diagnóstico e exames complementares

O diagnóstico da APLV se baseia principalmente na avaliação clínica e na observação da resposta a intervenções dietéticas específicas. Devido à inespecificidade dos exames laboratoriais, não existem testes complementares que, isoladamente, forneçam um diagnóstico definitivo da APLV.

O processo diagnóstico começa com uma história clínica detalhada, incluindo uma anamnese completa e um inquérito alimentar, que servem para guiar a suspeita diagnóstica. Os sintomas suspeitos devem ser cuidadosamente definidos e sua resolução objetivamente avaliada. A dieta de exclusão da proteína do leite de vaca e seus derivados da dieta da criança ou da mãe que amamenta é um passo importante

A duração da dieta de exclusão varia conforme o tipo e a gravidade das manifestações clínicas:

Para reações mediadas por IgE (imediatas), a dieta materna sem leite de vaca deve ser seguida por 2 a 3 dias. Para crianças que consomem leite de vaca diretamente, a exclusão pode ser de 3 a 5 dias.

Para reações não mediadas por IgE ou mistas (tardias), o tempo de exclusão é mais longo. Por exemplo, na síndrome da proctocolite induzida por proteína alimentar (FPIP), o período é de 48 a 72 horas; na síndrome da enterocolite induzida por proteína alimentar (FPIES) aguda, 2 dias, e crônica, 3 a 7 dias; na enteropatia induzida por proteína alimentar (FPE), 1 a 4 semanas; e na dermatite atópica (DA), 15 dias. Para mães de lactentes amamentados com APLV não IgE mediada, a exclusão pode ser de 14 dias.

É fundamental observar o desaparecimento ou a persistência dos sintomas após o período de exclusão. Se os sintomas não melhorarem, deve-se investigar se houve consumo não permitido, contaminação cruzada ou a existência de outras alergias ou patologias não relacionadas à APLV.

  • Teste de Provocação Oral (TPO):
    O Teste de Provocação Oral (TPO), também conhecido como Oral Food Challenge (OFC), é considerado o padrão ouro para confirmar o diagnóstico da APLV. Após o período de exclusão e melhora dos sintomas, o alimento suspeito é oferecido progressivamente, em doses e intervalos regulares, sob supervisão médica, em um ambiente com suporte para atendimento de situações de urgência, devido ao risco de reações alérgicas inesperadas, sobretudo na suspeita de reações mediadas por IgE. Se os sintomas aparecerem após a reintrodução do leite de vaca, o diagnóstico de APLV é confirmado. Caso contrário, se nenhum sintoma alérgico ocorrer, o resultado é negativo.

O TPO é contraindicado para o diagnóstico de alergia alimentar manifestada por anafilaxia grave. Nesses casos, pode ser recomendado apenas após 12 meses para avaliação de tolerância, sob indicação de especialista. Em casos de FPIES crônica, o TPO pode ser considerado para confirmação do diagnóstico, especialmente se houver menos de dois episódios ou se o episódio não exigiu visita ao pronto-socorro

  • Testes IgE-mediados (Prick Test e IgE sérica específica):
    O prick test (teste cutâneo de leitura imediata, ou SPT) e a determinação de IgE sérica específica (sIgE) para proteínas do leite auxiliam na identificação das alergias alimentares mediadas por IgE e nas reações mistas.

O prick test tem um valor preditivo positivo inferior a 50%, mas um valor preditivo negativo relativamente alto (>95% em crianças com mais de 1 ano) para o rastreio de alergia alimentar mediada por IgE. No entanto, é frequentemente inútil para APLV não mediada por IgE

Um valor de IgE específica >0.35 kIU/L é tipicamente considerado positivo, mas valores mais baixos ainda podem ter significado clínico, especialmente em crianças pequenas, e há risco de resultados falso-negativos.

Dosagens de IgG para alimentos não possuem respaldo científico para o diagnóstico da alergia alimentar pois os anticorpos podem indicar exposição ao alimento, e IgG pode sugerir tolerância, mas não diagnosticam a alergia.

  • Eosinófilos:
    A contagem de eosinófilos e o percentual no sangue periférico podem servir como indicadores auxiliares de doenças alérgicas e podem auxiliar no diagnóstico da APLV, embora seus níveis possam ser influenciados por outras condições, como infecções ou doenças hematológicas.

O diagnóstico da APLV em lactentes exclusivamente amamentados pode ser desafiador Sintomas comuns em recém-nascidos, como traços ocasionais de sangue nas fezes, não são suficientes para um diagnóstico definitivo de APLV.

É fundamental prevenir o sobre diagnóstico, que pode ter impactos negativos no crescimento, na dinâmica familiar e na situação socioeconômica. Restrições dietéticas maternas rigorosas, que podem levar a deficiências nutricionais, devem ser consideradas apenas para sintomas persistentes sem outras explicações

Diagnósticos diferenciais importantes

Intolerância à Lactose: A intolerância à lactose é causada pela deficiência da enzima lactase, responsável pela digestão da lactose (o açúcar principal do leite). Na intolerância à lactose, os sintomas são predominantemente gastrointestinais, como dor e distensão abdominal, diarreia e flatulência, ocorrendo após o consumo de alimentos com lactose. A APLV, por sua vez, pode apresentar uma variedade de sintomas que afetam múltiplos sistemas orgânicos, incluindo pele, trato respiratório e gastrointestinal, e pode levar a reações sistêmicas como anafilaxia

  • Refluxo Gastroesofágico (RGE) não relacionado à APLV:
    O RGE é uma condição comum em bebês, e os sintomas de refluxo podem ser confundidos com os da APLV. No entanto, um RGE que não seja causado pela APLV geralmente melhora com tratamentos padrão (como volumes de alimentação menores, espessamento das mamadas e posicionamento). A dificuldade em diferenciar deve-se ao fato de que, em casos de RGE, a melhora dos sintomas após uma dieta de eliminação do leite de vaca pode não estar relacionada à alergia, pois o RGE é frequentemente transitório e pode melhorar espontaneamente. Para confirmar se o RGE está ligado à APLV, é necessária a reintrodução do leite de vaca na dieta, com os sintomas reaparecendo.
  • Condições funcionais relacionadas à interação intestino-cérebro ou condições neonatais comuns:
    Sintomas inespecíficos, como cólicas, irritabilidade ou vestígios ocasionais de sangue nas fezes, são comuns em recém-nascidos e podem ser superestimados como APLV, levando a um diagnóstico excessivo.

Se os sintomas persistirem mesmo após a retirada do leite de vaca da dieta materna, é necessário investigar se o lactente apresenta reação a outros alérgenos ou se há outras patologias subjacentes não relacionadas à alergia alimentar. A história clínica detalhada, incluindo um inquérito alimentar e dados epidemiológicos associados às manifestações clínicas, devem nortear a investigação de outras causas.

Fluxograma sugerido para acompanhamento

Uma vez estabelecido o diagnóstico, a conduta inicial clássica consiste na exclusão rigorosa de todas as proteínas do leite de vaca da dieta, tanto do paciente quanto, em lactentes amamentados exclusivamente, da dieta materna, caso haja sintomas persistentes. Para lactentes que não podem ser amamentados exclusivamente, a fórmula de escolha é a fórmula extensamente hidrolisada (eHF), baseada em caseína ou soro de leite, que é bem tolerada pela maioria dos pacientes com APLV. Em casos de manifestações graves, falha de resposta à eHF, ou alergia múltipla alimentar, recomenda-se o uso de fórmula à base de aminoácidos (AAF). Fórmulas de soja podem ser consideradas em crianças acima de 6 meses, mas cerca de 10-15% dos pacientes com APLV também reagem à soja. O leite de outros mamíferos (como cabra ou ovelha) não deve ser utilizado devido à alta reatividade cruzada. É fundamental garantir que a dieta de exclusão seja nutricionalmente adequada, monitorando crescimento e desenvolvimento.

Conclusão

Os primeiros mil dias do bebê, o qual abrange os 270 dias da gestação somados aos 730 dias referentes aos 24 meses de vida, são essenciais e decisivos para o crescimento e desenvolvimento da criança. As crianças devem receber alimentação adequada, por meio de nutrição pré-natal, aleitamento materno exclusivo nos primeiros seis meses, adição de alimentos complementares de acordo com sua faixa etária e continuação da amamentação pelo menos até os dois anos. O diagnóstico precoce e o tratamento adequado de APLV melhora a qualidade de vida das crianças, evita complicações e garante um desenvolvimento mais saudável.