Insulina de ação semanal: o que saber do medicamento recém aprovado pela anvisa?

Diabetes
mellitus
(DM) é uma doença de grande impacto individual e populacional. Estima-se que no Brasil sejam aproximadamente 20 milhões de pessoas com o diagnóstico. O DM tipo 2 é o mais comum e leva a graus variados de resistência à insulina e redução (relativa ou absoluta) da sua secreção. Por outro lado o DM tipo 1 é causado pela falta de produção pancreática de insulina. Assim, a totalidade dos pacientes com DM tipo 1 e entre 20 e 30% pacientes com DM tipo 2 necessitarão de insulina para seu tratamento.
A purificação e uso clínico da insulina ocorreu há mais de 100 anos e por isso seu uso parece algo corriqueiro hoje. Entretanto, trata-se de um dos grandes feitos da medicina moderna. Inicialmente se utilizou extratos de pâncreas de animas; posteriormente purificou-se a insulina humana. Com a insulina milhões de vidas foram salvas e muitas complicações do DM foram evitadas. Ainda assim, inércia no início do seu uso, hesitação e resistência e, principalmente, dificuldades de adesão limitam que se obtenha todo o benefício dela.
Nos últimos 25 anos, desenvolveu-se os análogos de insulina. Estes medicamentos são versões modificadas da molécula de insulina humana (troca de amino ácidos pontuais) que preservam a ação fisiológica (redução da glicose via ligação ao receptor de insulina), mas com perfis meia-vidas bastante variadas. Essas alterações permitem tanto ações mais rápidas quanto mais prolongadas, viabilizando esquemas terapêuticos mais próximos da fisiologia normal e adaptados à rotina dos pacientes.
Em suma, o objetivo atual no desenvolvimento de novas insulinas é permitir que pacientes e médicos adotem esquemas terapêuticos mais confortáveis e alinhados à fisiologia natural do organismo. Nesta postagem, revisaremos brevemente esses conceitos para entender a relevância e os usos do novo análogo de insulina de ação ultra-longa, recentemente aprovado pela ANVISA, com administração semanal: a insulina icodec.
Esquemas e cinéticas das insulinas
De forma resumida, os esquemas de tratamento podem visar ofertar insulina adicional para controle da glicemia ou tentar mimetizar o funcionamento usual do organismo. O primeiro tipo de tratamento é tipicamente a primeira escolha em pessoas com DM tipo 2, em que se usa uma ou duas doses de insulina basal. Entretanto, em algumas pessoas com DM tipo 2 e em todos pacientes com DM tipo 1 prefere-se utilizar esquemas de insulina que simulam o funcionamento normal do organismo e, para isso, uma combinação de insulinas rápida e lenta é necessária. Estes conceitos estão esquematicamente ilustrados na
Figura 1
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Figura 1.
Funcionamento normal e tipos de esquemas de tratamento com insulina no diabetes
mellitus
. Adaptado da referência 6.

Como mostrado na figura, o organismo humano secreta insulina de forma contínua ao longo do dia, com picos após as refeições. Por isso, os análogos de ação prolongada são indicados para suprir essa necessidade basal. Em pacientes com DM tipo 2, a insulina basal costuma ser suficiente, já que muitos mantêm alguma produção endógena capaz de cobrir os picos pós-prandiais.
Visando buscar cada vez mais estabilidade nos níveis basais de insulina e melhorar o conforto com o tratamento com menos injeções, existe busca por insulinas de meia-vida cada vez mais longa. A insulina icodec foi projetada para ter ação semanal contínua, combinando forte ligação reversível à albumina, alta solubilidade e estabilidade aprimorada. Essas propriedades são obtidas por meio de modificações na molécula, incluindo a adição de um ácido graxo de 20 carbonos e três substituições de aminoácidos que reduzem a afinidade pelo receptor de insulina e prolongam sua meia-vida. Com isso, ela pode ser aplicada apenas uma vez por semana e enquanto mantém níveis estáveis de insulina no sangue, conforme ilustrado na
Figura 2
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Figura 2.
Duração do efeito da insulina icodec. Adaptado da referência 7.

Evidências insulina icodec
A empresa que desenvolveu a icodec (Novo Nordisk) patrocinou uma série de estudos clínicos para avaliar seus efeitos em cenários variados visando sua liberação junto a agências regulatórias. Tratam-se de estudos randomizados controlados, realizados em indivíduos adultos. A maioria deles foi realizado em pessoas com DM tipo 2, mas um dos estudos foi exclusivo em DM tipo 1. Os estudos utilizaram como comparador outras insulinas de ação longa, como glargina e degludeca.
Em DM tipo 1, a insulina icodec se mostrou não-inferior que outro análogo de longa ação (insulina degludeca) para redução de HbA1c. Porém identificou-se maior risco de hipoglicemia grave ou clinicamente significativa. Destaca-se que a satisfação com o tratamento foi menor nos pacientes usando icodec do que nos utilizando degludeca. Ou seja, apesar das elevadas expectativas, os resultados foram pouco animadores.
Em pessoas com DM tipo 2, esta insulina foi testada nos mais diferentes cenários: sem ou com uso prévio de insulina, em esquema apenas basal ou basal-bolus. Nos estudos disponíveis, como regra, o controle glicêmico foi semelhante à insulina diária, porém com uma tendência de um aumento pequeno no risco de hipoglicemia (limítrofe do ponto de vista estatítisico). Quanto a satisfação, os dados disponíveis sugerem que, ao contrário do DM tipo 1, há maior satisfação com o tratamento com insulina semanal. Parece provável que isso se explique pelo menor aumento na taxa de hipoglicemia neste grupo de pacientes.
Aspectos práticos
A insulina icodec é aplicada por via subcutânea com caneta pré-preenchida (700 U/mL) como ocorre com outras insulinas. A administração pode ser feita em qualquer dia e horário da semana, independentemente de refeições, sono ou atividade física. Pode haver alguma flutuação no dia da aplicação, mas esta deve ser limitada a 3 dias (e idealmente após algumas semanas de uso – após se atingir o estado de equilíbrio). Em pacientes com doses estáveis e sem sintomas de hipoglicemia, o monitoramento glicêmico não precisa ser intensivo – uma medição semanal geralmente é suficiente. Pacientes utilizando esquemas basal-bolus, o que determinará o monitoramento são as doses de bolus.
A dose inicial recomendada de insulina icodec é de 70 unidades por semana, o que é equivalente a 10 UI diárias de insulina basal ao dia. Pacientes que já utilizam insulina basal (como glargina, detemir ou NPH) podem transicionar para dose de icodec semanal multiplicando-se a dose diária por sete. Há a recomendação de que na primeira aplicação utilize-se uma dose 50% maior para evitar piora transitória no controle glicêmico. Os ajustes de dose devem ser feitos semanalmente, com incrementos ou reduções de 20 UI, baseando-se em pelo menos 3 medidas de glicose em jejum matinal dos últimos 7 dias.
A insulina icodec é considerada de baixo risco para hipoglicemia, ainda assim, os estudos primários mostraram uma tendência de aumento em relação a outros análogos. Os principios gerais do manejo agudo são os mesmos com outras insulinas: consumo de carboidratos, repetir aferição da glicemia e nova dose de carboidratos conforme necessário. No entanto, em função das peculiaridades desta insulina, é importante manter monitoramento mais frequente por alguns dias após o episódio, especialmente à noite.
Em casos de hipoglicemias recorrentes ou graves, pode ser necessário reduzir a dose semanal subsequente ou até omitir uma aplicação. Hipoglicemias leves podem ser um sinal de necessidade de redução de dose. Esses cuidados são especialmente importantes em pacientes com controle glicêmico estrito, idosos, com doença renal, com histórico de hipoglicemias frequentes ou DM lábil.
Uma possibilidade interessante que surge com a aplicação de insulina é o uso de “terapia supervisionada” ou administração por cuidadores, utilizando-se a margem de flexibilidade de até ±3 dias. Isso facilita seu uso em contextos em que o paciente tem limitações para autoadministração ou quando o sistema de saúde e a família não conseguem manter múltiplas aplicações semanais.
Por outro lado, alguns cuidados com segurança devem ser ressaltados. A insulina icodec pode ser usada com segurança em pacientes com comorbidades estáveis, mas não é a melhor escolha em situações que exigem controle glicêmico rápido, como em internações hospitalares ou quadros de descompensação aguda. A meia-vida longa limita ajustes frequentes de dose. Seu uso não foi testado em gestantes e assim deve ser evitada por mulheres grávidas ou planejando engravidar.
Conclusões
A insulina icodec tem o potencial de aumentar o conforto e flexibilidade no tratamento de pessoas com DM tipo 2 e tipo 1. Os cuidados com seu uso envolvem o risco de hipoglicemia e situações em que são necessários ajustes frequentes da dose da insulina basal. Apesar de sua comercialização estar autorizada, não se sabe ainda o preço final ao consumidor no Brasil; este poderá ser um limitante ao uso. Sua maior potencialidade parece estar em pacientes com DM tipo 2 com dificuldades de adesão, em que as aplicações diárias de insulina poderão ser transformadas em uma única dose semanal.