Inteligência artificial na medicina - Cenário atual e perspectivas

Inteligência artificial (IA) é o assunto do momento, tanto fora quanto dentro da área da saúde. IA é um termo guarda-chuva, que engloba diversas técnicas de processamento de dados para permitir que computadores realizem tarefas tradicionalmente feitas pelas pessoas. Isto não é novidade da medicina; por exemplo, calculadoras que usam modelos logarítmicos são usadas há décadas para prever o risco de eventos em uma população. Ainda assim, nos anos recentes houve um ganho de capacidade de lidar com bases de dados progressivamente maiores. E o lançamento de modelos de chatbots altamente interativos (ChatGPT sendo o mais famoso) acelerou ainda mais o interesse.
O uso de IA na medicina está em franca expansão. Seu interesse se dá porque ela tem o potencial de resolver alguns dos principais problemas dos sistemas de saúde atuais, que acesso a cuidados, sobrecarga com tarefas administrativas e desbalanço entre oferta e demanda.
Esse interesse fica claro em uma revisão recente, em que mais de 80 ensaios clínicos randomizados foram identificados nas mais diferentes especialidades, sendo gastroenterologia, radiologia e cardiologia as mais frequentes. Vale destacar que são dados apenas entre 2018 e 2023; é provável que uma nova revisão mostre números ainda maiores. Em conjunto os resultados parecem ser favoráveis, com a grande maioria dos estudos mostrando benefício da IA para manejo direto de pacientes, tomada de decisão, raciocínio diagnóstico e gestão do cuidado.
Assim, nesta postagem você vai encontrar uma revisão sobre as principais ferramentas e usos de IA na medicina. Vale destacar que trata-se de um assunto em constante atualização e transformação. Ainda não há diretrizes consolidadas para seu uso cotidiano e novas abordagens estão sendo apresentadas a cada semana.
Chatbots
Chatbots são algoritmos de IA com capacidade de interagir por via de texto (chat) com um interlocutor humano. Desde o lançamento do ChatGPT, com sua elevada capacidade de compreender e responder textos, interações organizadas, cordiais e verossímeis, há um grande interesse destas ferramentas na área da saúde. Um dos primeiros usos propostos foi para educação. Propostas de uso são variadas:
●
Criar pacientes ou situações simuladas.
Com isso é possível gerar treinamento em cenários específicos sem expor pacientes. Por exemplo, pode-se gerar um caso fictício para treinamento de dar más notícias e receber feedback imediato associado.
●
Aprendizado / sala de aula invertida.
Pede-se para o chatbot explicar um conceito e o aluno deve revisar a resposta dada e verificar se é verdadeira.
●
Construção interativa.
O aprendiz / aluno estuda um tópico e constrói um ensaio em múltiplas interações (número definido de antemão pelo professor) com o algoritmo.
Apesar destes potenciais usos, uma coisa que ficou bem estabelecida no começo do uso do ChatGPT, foi a capacidade limitada de fornecer informações confiáveis e verificáveis. Mesmo que em versões posteriores, parte disto tenha sido resolvido, outras ferramentas surgiram com o objetivo de suprir esta lacuna. Assim, chatbots passam a ser ferramentas para obter-se informações técnicas. Fora da área médica, o google tem fornecido respostas geradas por IA, mas com referências específicas para as informações apresentadas. Isso aumenta a confiabilidade na resposta e permite checagem, evitando cair-se num dos riscos desta ferramenta: as alucinações. Alucinações são situações em que a resposta do chatbot está errada, mas parece extremamente correta para o leitor porque é muito bem escrita e articulada.
Dentro da área médica, a plataforma OpenEvidence se propõe a fornecer respostas baseadas em artigos científicos. Além disso, tem a capacidade de integrar várias fontes, gerando textos explicativos mesmo para perguntas bastante objetivas. Uma outra ferramenta interessante dentro dos chatbots é a
Livia
, desenvolvida por uma empresa brasileira e com o enfoque no cenário nacional. Da mesma forma que as duas ferramentas anteriores, trata-se de um canal de interação via texto livre. Como diferença, os responsáveis destacam que ela provê resposta com base em referências médicas curadas e revisadas, incluindo protocolos e textos focados para o contexto brasileiro (por exemplo, protocolos do Ministério da Saúde).
Além dos usos educacionais e para obter respostas clínicas, algumas outras aplicações de chatbots na área da saúde são curiosas. Destaca-se alguns:
● Um estudo testou o ChatGPT em sua versão mais recente para o diagnóstico de casos simulados (por escrito) em um estudo randomizado de três grupos: médicos, médicos com ChatGPT, ChatGPT isoladamente. O resultado foi surpreendente por mostrar que o apenas o ChatGPT foi melhor que os outros dois grupos. Em um editorial associado a este artigo, destaca-se que eram casos simulados e escritos, situação extremamente diferente do que se encontra na prática clínica, em que a coleta de informações não é linear. Além disso, em outros estudos semelhantes, mas simulando de forma mais aproximada a vida real, o desempenho para diagnóstico e planejamento terapêutico foi marcadamente pior.
● Um outro estudo avaliou a capacidade da mesma ferramenta (ChatGPT) em aumentar a compreensão de pacientes do conteúdo de notas de alta. Assim, de forma cegada, algumas notas de alta foram “traduzidas” com o chatbot para linguagem não médica. A taxa de compreensão aumentou marcadamente com o uso deste recurso.
● Por fim, um grupo de pesquisadores desenvolve um chatbot específico para interação e suporte para depressão e ansiedade. Ao ser exposto à ferramenta, pacientes tiveram uma redução de sintomas ansiosos e depressivos, quando comparados ao grupo controle (sem intervenção). Vale destacar que trata-se de uma ferramenta não disponível para uso livre.
O que há além dos chatbots?
Para além dos usos relatados acima dos chatbots uma recente publicação canadense (com o enfoque do sistema de saúde deste país) elencou as principais tecnologias de IA que podem auxiliar no atendimento médico. Uma parte significativa do tempo de trabalho na saúde é registro dos atendimentos realizados. Assim, ferramentas com IA estão sendo usadas para transcrever atendimentos e gerar registros médicos (rascunhos). Assim, estudos mostram que usando reconhecimento de voz e processamento de linguagem natural, é possível reduzir o tempo gasto com documentação, melhorar a qualidade das anotações e reduzir o tempo que os médicos ficam olhando para o computador. Esse tipo de IA tem o potencial de diminuir a sobrecarga dos profissionais, diminuir a sobrecarga com documentação e permitir uma relação médico-paciente mais sólida e saudável. As apreensões deste tipo de uso são com erros de transcrição e alucinações, sob o risco de omissões de dados importantes, registros imprecisos ou inverídicos. Ou seja, revisão e correção são passos importantes antes do médico validar um registro gerado por IA.
Um dos primeiros usos previstos para ferramentas automatizadas foi a
interpretação de imagens e apoio diagnóstico.
A primeira ferramenta de IA para uso clínico autorizada nos Estados Unidos foi um algoritmo para identificação de retinopatia diabética em imagens de fundo de olho; em 2024, mais de 950 devices com IA já haviam sido autorizados pelo órgão regulador americano. Interpretação de imagens diagnósticas, registros médicos e mesmo dados coletados diretamente com pacientes são outras potencialidades. Ainda assim, apesar da melhora na acurácia diagnóstica, aumento de acesso a cuidados e possibilidade de diagnósticos mais precoces, há a necessidade de supervisão médica cuidadosa para evitar erros ou diagnósticos excessivos.
Outro campo que tem despertado atenção é o uso de algoritmos para apoiar a
escolha de tratamentos,
dentro do conceito de “medicina de precisão”. A proposta é coletar um grande volume de dados de um mesmo paciente (genéticos, história médica, interações medicamentosas) e utilizá-los para a seleção e construção de um plano de tratamento. Além disso, há a expectativa de aumentar a oferta de tratamentos eficazes e baseados em evidências. Já existem ferramentas voltadas para condições crônicas e saúde mental.
Reflexão final
IA é um campo em rápida expansão, mudou e vai mudar mais profundamente a prática médica. Apesar das apreensões com substituição de trabalho médico, toda literatura caminha no sentido de integração de ferramentas. Assim, os médicos devem estar atentos em como melhor integrar essas ferramentas no seu trabalho, de forma segura para os pacientes e ética. Por fim, fica uma reflexão de 2018, sobre a implementação e riscos destas ferramentas na prática clínica:
“um médico mal preparado pode cometer erros um paciente de cada vez; um algoritmo com falhas pode afetar um número muito maior de pacientes.”