Inteligência artificial substituirá o psicólogo? Análise crítica dos limites clínicos e éticos

Pontos principais do artigo
A utilização ou não da Inteligência Artificial (IA) constitui um dos debates atuais mais controversos no âmbito da psicologia. O avanço dessa tecnologia possibilitou o surgimento de ferramentas digitais que se propõem a otimizar o trabalho dos psicólogos, com funções como automatização de processos burocráticos e apoio no planejamento dos atendimentos clínicos (Farmer et al., 2024). Contudo, em outros recursos, como psicoterapia guiada por
chatbots
, a IA deixa os bastidores e pode assumir o papel principal, como principal condutora da intervenção psicológica ofertada (Ni & Jia, 2025).
Observa-se que a inserção da IA no campo da psicologia pode significar uma revolução no cuidado em saúde mental, remodelando as formas de interação entre terapeuta e paciente e, em alguns contextos, até mesmo reduzindo a presença do profissional (Ni & Jia, 2025). Diante desse cenário, surge o questionamento: a IA pode substituir o psicólogo?
Avanços da IA na saúde mental
É indiscutível que a IA está proporcionando grandes avanços no campo da saúde mental. Por meio dessa tecnologia foram desenvolvidos diversos recursos como aplicativos,
chatbots
e plataformas de apoio psicológico, os quais permitem a ampliação do acesso ao cuidado psicológico (Thakkar et al., 2024). Exemplos disso são aplicativos desenvolvidos com base na Terapia Cognitivo-Comportamental, que integram funções como monitoramento de humor, espaço para compartilhar pensamentos e emoções desafiadoras com um
chatbot
e até mesmo técnicas para lidar com esses (Farzan et al., 2025).
Alguns desses recursos, como os aplicativos citados, apresentam evidências preliminares na redução de sintomas ansiosos e depressivos, aparentando ser uma opção acessível e eficiente para promoção de bem estar psicológico (Farzan et al., 2025). As intervenções baseadas em IA surgem como uma alternativa para contornar barreiras no acesso ao cuidado em saúde mental, considerando o seu alto potencial de escalabilidade, disponibilidade contínua aos usuários, baixo custo de implementação e sensação de anonimato transmitida (Zhang & Wang, 2024).
Para além de atuar como peça-chave das intervenções psicológicas, a IA também pode auxiliar o psicólogo, ampliando e otimizando sua prática clínica. Ferramentas baseadas na IA dinamizam a realização de tarefas administrativas, como organização de prontuários e sistematização de dados clínicos. Além disso, outras funções dessa tecnologia, à exemplo do Machine Learning, podem impulsionar o raciocínio clínico do profissional, facilitando a formulação de hipóteses diagnósticas e planejamento dos atendimentos (Zhang & Wang, 2024).
Limites clínicos da IA
Apesar dos benefícios aparentes tanto de modo direto para o paciente quanto para o profissional, é preciso cautela tendo em vista que o uso indiscriminado da IA pode trazer prejuízos para ambos. Grande parte das intervenções baseadas em IA consegue adaptar a linguagem e ferramentas utilizadas de acordo com os conteúdos trazidos pelos usuários. Contudo essa adequação é feita de modo superficial considerando somente as informações disponíveis aos algoritmos, que costumam seguir padrões e representações globais (Thakkar et al., 2024). Assim, o cuidado psicológico e orientações oferecidas tornam-se limitadas, tendo em vista que não há singularidade e real adaptação das ferramentas terapêuticas.
Emoções e comportamentos humanos são complexos e apresentam alta variabilidade, sendo influenciados por fatores genéticos, ambientais, cognitivos e sociais. Em alguns casos, para uma intervenção psicológica efetiva, é necessária uma interpretação subjetiva, considerando todo o contexto, o que é aquém das habilidades da maior parte dos recursos baseados em IA voltados à saúde mental (Thakkar et al., 2024; Zhang & Wang, 2024). Ainda, o vínculo terapêutico, que é uma ferramenta de mudança crucial no processo psicoterápico, surge de processos humanos que não podem ser automatizados (Mansurova, 2024). Desse modo, podemos observar que algumas particularidades cruciais e presentes na relação psicólogo - paciente não são passíveis de reprodução pela IA.
Questões éticas
Outro aspecto que requer atenção são as diretrizes legais na utilização da IA em questões de saúde mental. Algumas ferramentas baseadas em IA atestam a segurança e confidencialidade das informações, mas os processos de armazenamento ainda não são muito claros principalmente em termos de responsabilização caso ocorram vazamentos de dados. Ademais, em alguns casos, os algoritmos que guiam as tomadas de decisões nas intervenções não são tão transparentes e explicáveis, o que pode induzir vieses e erros clínicos, além de reforçar estereótipos Thakkar et al., 2024).
No Brasil, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) (Brasil, 2018) assegura que o psicólogo deve, obrigatoriamente, obter o total consentimento do paciente antes de submeter os seus dados à IA, mesmo que seja para otimizar o processo terapêutico. Além disso, caso esses recursos sejam utilizados, o profissional pode ser responsabilizado por qualquer vazamento de informações ou acesso indevido por terceiros (Brasil, 2018).
O papel do psicólogo no cenário digital
Não se pode negar que a IA incorporou o campo da saúde mental e a tendência é que a sua presença seja cada vez mais constante pelos próximos anos. Nesse contexto, se faz preciso que o psicólogo desenvolva competências para integrar a IA sem perder os fundamentos da prática clínica. A utilização dessas tecnologias sempre deve ser pautada na premissa de que são uma ferramenta auxiliar do psicólogo, já que mesmo os recursos mais avançados não conseguem substituir algumas premissas humanas que são cruciais para o processo terapêutico como escuta atenta, empatia e julgamento clínico (Mansurova, 2025; Thakkar, Gupta & Sousa, 2024).
O Conselho Federal de Psicologia (CFP) (CFP, 2025) não proíbe a utilização da IA na prática clínica, mas alerta que esses recursos devem ser utilizados sempre sob supervisão do profissional. Desse modo, se faz necessário que o psicólogo se mantenha em atualização e formação contínuas, através de diretrizes de órgãos consolidados como a
American Psychological Association
e o CFP, a fim de garantir uma utilização ética e responsável das novas ferramentas.
Conclusão
Diante do exposto, observa-se que a IA não substitui o psicólogo, mas apresenta potencial não somente para transformar a sua prática clínica, como também para aumentar o acesso ao cuidado em saúde mental. Essas novas tecnologias possibilitam contornar obstáculos na promoção do bem-estar psicológico e impulsionar o trabalho do psicólogo. Contudo, fica explícita a importância do preparo técnico e ético para navegar nesse novo cenário, reconhecendo os limites e cuidados necessários ao utilizar a IA no âmbito da saúde mental.
Autoras
Beatriz Santos-Lima:
Psicóloga pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Colaboradora do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental (LaPICC-USP) da Universidade de São Paulo (USP) e do Cognition and Anxiety Disorders Research Laboratory (CADRe Lab) da University of Ottawa (uOttawa), Canadá. Atuou como estudante de Pesquisa Visitante na University of Ottawa (2025). Possui formação em Terapia Cognitivo-Comportamental e TCC para Obesidade e Emagrecimento.
Eloha Flória Lima Santos:
Psicóloga pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da FFCLRP-USP. Membro do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental (LaPICC). Especialização em Psicologia da Saúde no Contexto Hospitalar com ênfase em Psicologia Pediátrica pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP-RP (HCFMRP-USP). Formação em Terapia Cognitivo-Comportamental e TCC para obesidade e emagrecimento.
Carmem Beatriz Neufeld:
Professora Titular do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - FFCLRP da Universidade de São Paulo – USP e orientadora dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia e em Psicobiologia do DP-FFCLRP-USP. Livre docente pela FFCLRP-USP. Pós-doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Doutora e Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Formação em Terapia dos Esquemas pelo LaPICC-USP. Formação em Ensino e Supervisão pelo Beck Institute. Terapeuta Certificada em TCC pela Federação Brasileira de Terapias Cognitivas – FBTC. Psicóloga pela Universidade da Região da Campanha - URCAMP. Fundadora e coordenadora do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental – LaPICC-USP. Bolsista Produtividade do CNPq. Presidente Fundadora da Associação de Intervenções Psicossociais para Grupos - APSIG. Past-President da Federação Latino-Americana de Psicoterapias Cognitivas e Comportamentais - ALAPCCO. Representante do Brasil na Sociedade Interamericana de Psicologia - SIP. Ex-Presidente Fundadora da Associação de Ensino e Supervisão Baseados em Evidências – AESBE. Ex-Presidente da Federação Brasileira de Terapias Cognitivas - FBTC.