Autoconsciência: conceitos e implicações terapêuticas na Psicologia

O constructo “autoconsciência” há séculos é objeto de estudo de diversas áreas do conhecimento humano, como por exemplo a filosofia, a neurociência e a psicologia. Neste sentido, é possível o considerarmos como um constructo complexo e multidimensional (Leal, Souza & Souza, 2018). Dentro da psicologia, a ação humana de observar e monitorar pensamentos, emoções e motivações é até hoje amplamente estudada, ganhando, ao longo dos anos, diferentes nomes, de acordo com o autor, época e abordagem (Silveira, Castro & Gomes, 2012).
A teoria da autoconsciência de Duval e Wicklund explorou a capacidade auto reflexiva da consciência. Neste sentido, assim como o indivíduo pode focar sua atenção para fora e perceber estímulos do ambiente, ele também é capaz de estar ciente da própria existência, olhar para dentro e processar informações sobre si próprio (autoinformação) (Savoldi & Roazzi, 2022; Morin, 2006; Silvia & Duval 2001). Deste modo, a autoconsciência é então definida como a atividade do sujeito de se voltar para si mesmo e se tornar objeto de sua própria consciência (Duval & Wicklund, 1972). A autoconsciência prevê que o indivíduo, em seu estado acordado e desperto, se torna consciente de seus eventos psicológicos específicos, como pensamentos, emoções, preferências, características, sensações, objetivos, valores, intenções, autoimagem, comportamentos entre outros (Morin, 2006; Savoldi & Roazzi, 2022; Morin, 2011).
A autoconsciência pode se expressar em dois âmbitos, relacionados aos aspectos públicos ou privados do self. A chamada autoconsciência privada é o processo de atenção aos próprios aspectos privados de si, sendo estes, eventos não observáveis externamente, como emoções, pensamentos, sensações fisiológicas, valores entre outros. Já a autoconsciência pública refere-se a percepção e consciência de si mesmo como um objeto social, ou seja, percepção de como está sendo percebido por outros e interagindo com outros e com o mundo, seja pela aparência física, fala, comportamentos e atitudes (aspectos públicos de si) (Savoldi & Roazzi, 2022; Morin, 2006; Carver & Glass, 1976). De maneira resumida, enquanto a autoconsciência privada foca no “quem eu sou por dentro”, a pública foca no “como eu sou percebido por fora”, e ambas podem coexistir ou até entrar em conflito.
Exemplos práticos
- Autoconsciência privada
Você percebe que ficou triste em uma determinada situação e se pergunta “por que isso está me incomodando tanto?”.
Ao se ver frente a uma decisão difícil, você reflete sobre seus valores e objetivos para fazer a melhor escolha.
- Autoconsciência pública
Durante uma apresentação para seu chefe, você começa a se perceber e pensar “Será que eu estou falando alto demais? Será que estou parecendo confiante?”.
E qual é a importância da autoconsciência? Tanto a autoconsciência pública quanto a privada já provaram ter importantes implicações no comportamento humano e aspectos relacionados à saúde mental e bem-estar, além de serem fatores essenciais dentro do processo de autorregulação ( Savoldi & Roazzi, 2022; Silveira, Castro & Gomes, 2012; Carver & Glass, 1976). Além disso, ao entrar na psicologia clínica, o desenvolvimento da autoconsciência é visto como um aspecto fundamental em diversas abordagens da psicologia e do trabalho psicoterápico (Savoldi & Roazzi, 2022).
Ao explorarmos o conceito de autoconsciência, é preciso darmos atenção à existência do que pode ser considerado uma faceta patológica da autoconsciência, uma vez que quantidade de auto-observações não necessariamente significa qualidade das mesmas (Silveira, Castro & Gomes, 2012; Silveira, 2011). Neste sentido, Trapnell e Campbell (1999) propuseram duas distintas formas de atenção voltada para o eu: a autoreflexão e a autoruminação. A primeira é definida como uma curiosidade saudável e desejo genuíno de autoconhecimento e compreensão, e o indivíduo debruça-se mais sobre si em busca de compreender suas próprias emoções, pensamentos, valores, atitudes, objetivos e características. Já a autoruminação diz respeito a uma autoatenção ansiosa, motivada pela preocupação e autocriticismo, com pensamentos circulares e repetitivos sobre seus comportamentos, aparência, valores pessoais, entre outros (Silveira, 2011; Trapnell & Campbell, 1999). Sendo assim, embora tanto a autoreflexão quanto a autoruminação envolvam uma atenção voltada ao interior (autoconsciência), a autoconsciência reflexiva tende a promover maior clareza e bem-estar psicológico, enquanto a autoconsciência ruminativa está relacionada ao sofrimento psicológico, e altos níveis de ansiedade e depressão (Trapnell & Campbell, 1999).
Prática clínica
Diferentes indivíduos têm distintos graus de autoconsciência, desenvolvendo, ao longo de suas vidas, diferentes níveis de habilidade, prática e acurácia em se colocar como objeto de sua própria consciência. Neste sentido, dentro da psicoterapia existem algumas técnicas que podem ajudar os pacientes a desenvolver sua auto consciência de forma saudável. A seguir, foram reunidas algumas práticas e técnicas que podem ser usadas para ajudar neste processo.
Registro de Pensamentos Disfuncionais - RPD
O Registro de Pensamentos Disfuncionais, ou RPD, é uma ferramenta de múltiplas colunas em que o paciente deve identificar, a partir de uma situação que vivenciou, quais foram os pensamentos automáticos, emoções e comportamentos associados (podendo incluir outras colunas de análise) (Beck, 2011). O RPD facilita ao indivíduo a parar, observar e analisar de forma consciente os fatores internos envolvidos em determinada situação. Sendo assim, o paciente traz para a consciência processos que poderiam passar despercebidos, aumentando a capacidade reflexiva e analítica do que passa dentro de si (pensamentos e emoções) e de sua expressão comportamental, o que contribui significativamente para o desenvolvimento geral de sua autoconsciência. É importante notar que o RPD dá a oportunidade contribuir para que o paciente a desenvolva, além da autoconsciência privada, a pública: o terapeuta pode ajudar o paciente a refletir sobre como seus comportamentos têm efeito no mundo exterior, e como outras pessoas podem percebê-los.
Valores
Como vimos anteriormente, a autoconsciência prevê indivíduos com maior clareza sobre os próprios aspectos privados de si, incluindo seus valores. Lundgren e Larsson (2020) descrevem em seu capítulo “Escolha e Explicitação de Valores”, uma forma estruturada de ajudar os pacientes a estabelecer seus valores. Ao definir valores, o indivíduo deve refletir, trazendo para a consciência, o que é importante para si, o que considera valoroso e definir isso de forma estruturada é um passo importante para autoconsciência. Durante o processo o sujeito examina se suas ações recentes estão, ou não, de acordo com o seus valores, e a consciência dessa possível discrepância torna-se um fator motivador para mudança (Lundgren & Larsson, 2020). Intervenções com valores ajudam pacientes a interromper ciclos de vida negativos, viciosos e automáticos e entrar em contato com padrões de comportamentos mais efetivos (Lundgren & Larsson, 2020), contribuindo assim para a tomada de decisão mais consciente e para uma vida mais autoconsciente de maneira geral.
Mindfulness e Autocompaixão
A meditação mindfulness tem origem nas filosofias e religiões orientais, chegando ao ocidente na década de 1960. Segundo o budismo por meio do mindfulness a pessoa desenvolve a habilidade de colocar a atenção e a consciência para vivenciar o aqui e o agora (Nunes, 2019). Por meio do mindfulness, ou atenção plena, é possível estar atento e consciente de suas emoções, pensamentos e percepções de forma não julgadora, e ainda, estar atento à própria consciência. Isso é importante pois ao invés de focar apenas nos pensamentos ou emoções particulares em uma determinada situação, o mindfulness permite que a atenção repouse sobre a própria consciência, possibilitando que se mantenha calmo e centrado em determinada situação (Neff, 2014). Por exemplo, se estiver atento plenamente durante uma conversa conflitante, o sujeito é capaz de refletir com si mesmo: “Estou ciente de que estou me sentindo ferido e com raiva agora. Vou respirar e fazer uma pausa antes de responder. Será que esta pessoa está realmente querendo me machucar? Quais são seus motivos para me dizer o que está dizendo?”. Em outras palavras, a atenção plena possibilita um nível ainda mais elevado de autoconsciência uma vez que nos traz de volta ao momento presente e fornece uma consciência equilibrada que nos dá o espaço necessário para respirar e responder de forma mais adaptativa e em determinada situação (Neff, 2014). Além disso, ao trazer uma consciência não julgadora, o mindfulness contribui para distanciar o sujeito de ciclos ruminativos da autoconsciência. Em seu livro Autocompaixão: Pare de se torturar e deixe a insegurança para trás, Kristin Neff traz diversas práticas de mindfulness e autocompaixão que podem ser usadas para despertar a autoconsciência em pacientes.
Conclusão
A autoconsciência, enquanto constructo complexo e multidimensional, revela-se um elemento central no campo da psicologia clínica. Sua importância prática se manifesta na medida em que possibilita ao indivíduo colocar a si mesmo como objeto de sua consciência
promovendo maior clareza sobre si . O desenvolvimento da autoconsciência, tanto em sua forma privada quanto pública, está diretamente associado à melhoria da saúde mental, do bem-estar psicológico e da capacidade de autorregulação. Na prática clínica, técnicas como RPD, identificação de valores, mindfulness e autocompaixão ajudam o paciente a desenvolver uma autoconsciência. Ao fomentar o desenvolvimento da autoconsciência, o trabalho clínico contribui diretamente para o empoderamento do paciente, aumentando sua compreensão sobre si, favorecendo escolhas mais conscientes, relacionamentos mais saudáveis e uma vida mais alinhada com seus valores e objetivos.
Como citar este artigo: Calori, A., M. O., Lobo, B. O. M., & Neufeld, C. B. (Jun., 2025). Autoconsciência: conceitos e implicações terapêuticas na Psicologia. Blog do Secad.
Autoras
- Alice Calori Filisetti
Psicóloga, Bacharela em Psicologia e Bacharela Especial em Pesquisa pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Terapia Cognitiva-Comportamental pelo Instituto Wainer Psicologia Cognitiva. Ex membra do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental (LaPICC-USP). Cofundadora e ex vice presidente da Liga de Terapias Cognitivo-Comportamentais (LiTCC) USP-RP.
- Beatriz de Oliveira Meneguelo Lobo
Psicóloga e Mestra em Psicologia/Cognição Humana pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Especialista em Terapias Cognitivo-Comportamentais e com Formação em Terapia do Esquema. Professora em cursos de Pós-Graduação em Terapia Cognitivo-Comportamental, Terapia Cognitivo-Comportamental na Infância e Adolescência e Terapia do Esquema. Supervisora Clínica. Pesquisadora Colaboradora no Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental - LaPICC da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da Universidade de São Paulo (USP).
- Editora-chefe: Carmem Beatriz Neufeld
Psicóloga. Livre docente em TCC pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - USP. Pós-Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutora e Mestra em Psicologia pela PUCRS. Fundadora e Coordenadora do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental – LaPICC-USP. Professora Associada do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – USP. Presidente da Federação Latino Americana de Psicoterapias Cognitivas e Comportamentais - ALAPCCO (2019-2022). Presidente-fundadora da Associação de Ensino e Supervisão Baseados em Evidências - AESBE (2020-2023). Bolsista Produtividade do CNPq.