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Efeitos sistêmicos do lítio: orientações para o generalista

O carbonato de lítio é um medicamento muito utilizado para manejo de doenças psiquiátricas, em especial como estabilizador de humor em pacientes com transtorno de humor bipolar e , menos frequentemente, no tratamento de quadros depressivos unipolares.

Além de ser eficaz para controle de sintomas, há evidências que sugerem que o lítio seja capaz de reduzir a mortalidade por suicídio em alguns grupos de pacientes. Do ponto de vista químico, o lítio é um cátion monovalente, e seu exato mecanismo de ação é desconhecido, mas supõe-se que atue na liberação de neurotransmissores no sistema nervoso central. Após absorvido, atinge pico sérico rapidamente e tem excreção renal exclusiva.

A história do lítio na medicina é longa, e os primeiros usos datam dos anos 1800, quando era utilizado no tratamento de gota, migrânea e neutropenia, por exemplo.

Sua descoberta é bastante curiosa e envolveu experimentos com injeção de urina de pacientes com doenças psiquiátricas em porquinhos-da-índia para induzir o surgimento de sintomas e o controle desses sintomas com o lítio; depois o próprio pesquisador testou a medicação antes do uso em pacientes.

O primeiro uso como estabilizador de humor foi descrito apenas em 1949, e sua aprovação nos Estados Unidos como tratamento para transtornos psiquiátricos, uma das suas principais indicações, ocorreu na década de 1970.

Apesar da sua eficácia e longa experiência de uso, trata-se de um medicamento com janela terapêutica estreita e capaz de causar efeitos sistêmicos extensos e intoxicação. No presente texto, vamos explorar seus principais efeitos adversos sistêmicos, sua investigação e monitoramento.

Efeitos endócrino-metabólicos

Disfunção tireoidiana

Os principais efeitos adversos sistêmicos do lítio são na tireoide, em especial na indução de
hipotireoidismo
e bócio. Apesar disso, efeitos adversos ou doença prévia que afetem a glândula tireoide não são contraindicações ao seu uso.

O lítio reduz da captação de iodo pela tireoide (provavelmente por serem íons semelhantes e competirem pelo mesmo sítio). O bócio é um dos eventos mais frequentes (entre 40-50% dos pacientes desenvolve aumento do volume tireoidiano). Decorre da redução de secreção do hormônio T4 pela glândula, seja por efeitos diretos ou indiretos do fármaco.

É esperado o aumento de até 2 vezes do volume tireoidiano, e geralmente o mesmo não evoluiu com sintomas obstrutivos.

Para pacientes com bócio, a abordagem é a avaliação com ultrassonografia para identificar nódulos e, se presentes, avaliar a indicação de punção por agulha fina. Surgimento de bócio não deve levar a suspensão do tratamento. Entretanto, casos extremos podem necessitar cirurgia. O uso de levotiroxina pode ser tentado para minimizar o crescimento da glândula.

Assim como o bócio, o hipotireoidismo é um efeito adverso comum (afeta até 50% dos pacientes em uso de lítio), em especial em pacientes com tireopatia prévia e no início do uso do lítio. O quadro clínico é de hipotireoidismo primário, ou seja, com redução da secreção de hormônios (T4 e T3) pela glândula e consequente aumento do TSH.

O padrão mais tradicional de acometimento é de hipotireoidismo subclínico (elevação de TSH sem redução dos hormônios periféricos). A investigação é realizada com dosagem de TSH e, se este estiver alterado, com dosagem de T4 (preferencialmente T4 livre).

As indicações de tratamento com levotiroxina são as mesmas do hipotireidismo primário por outras etiologias. Pacientes que suspendem o lítio tendem a recuperar a função tireoidiana e, portanto, neste contexto a necessidade de reposição hormonal deve ser reavaliada.

De forma paradoxal, o tratamento com lítio também pode induzir o desenvolvimento de hipertireoidismo, que se caracteriza laboratorialmente pelo TSH reduzido com T3 ou T4 elevados (hipertireoidismo franco) ou normais (hipotireoidismo subclínico).

Esse evento é menos frequente que o desenvolvimento de bócio ou hipotireoidismo. É esperado que haja alguma tireoidopatia de base em fase pré-clínica ou não diagnosticada, usualmente doença de Graves. Tireoidite também pode ser desencadeada pelo lítio e deve ser considerada;

O tratamento do hipertireoidismo depende da etiologia de base presumida (doença de Graves, bócio multinodular, tireoidite) e, assim como nos outros distúrbios da tireoide, não deve levar a suspensão do tratamento.

Além dos efeitos descritos acima, o lítio pode ser utilizado como adjuvante para tratamento de doenças tireoidianas. Em situação de hipertireoidismo grave pode ser usado como alternativa ao iodo inorgânico em pacientes com alergia a este composto. Alguns autores recomendam uso como adjuvante no tratamento de neoplasia de tireoide, para aumentar a captação de iodo radioativo, porém esse uso não costuma ser rotineiramente recomendado.

Hiperparatireoidismo

Assim como na tireoide, nas glândulas paratireoides o lítio causa efeitos diretos; por elevar também os níveis de magnésio e desviar a curva de sensibilidade da paratireóide ao cálcio, acredita-se que esses efeitos sejam relacionados à ação do receptor de cálcio na paratireóide.

Apesar de a maioria dos pacientes não desenvolver alterações clínicas, aproximadamente 15% evolui para quadro clínico-laboratorial típico de hiperparatireoidismo primário: hipercalcemia, hipocalcemia e níveis elevados de paratormônio.

A nomenclatura nestes casos tende a gerar confusão: clinicamente trata-se de um hiperparatireoidismo primário, entretanto este evento é secundário ao uso de lítio. Do ponto de vista morfológico, aproximadamente metade dos pacientes apresenta hiperplasia das 4 glândulas paratireóides, e o restante adenomas únicos (nos hiperparatireoidismos primários clássicos essa proporção é 1:4).

Quanto ao manejo, se a condição psiquiátrica permitir, deve-se buscar a suspensão do lítio. Nesses casos, os exames tendem a normalizar em 4 semanas.

Em pacientes que utilizam o medicamento há mais de 10 anos, a resolução é menos provável. Naqueles em que não houver melhora ou em quem a suspensão for considerada proibitiva, deve-se considerar tratamento cirúrgico conforme as recomendações de diretrizes para hiperparatireoidismo primário.

Diabetes insipidus nefrogênico

Um importante efeito do lítio nos túbulos renais é a alteração da capacidade de concentração da urina, levando a poliúria. Além disso, estudos populacionais indicam que pacientes que recebem o fármaco tendem à perda de função renal mais rápida que o esperado pela idade isoladamente.

O lítio se liga a receptores aquaporina renais, diminuindo a capacidade de reter água livre e levando a um quadro de diabetes insipidus nefrogênico (em que há a presença do hormônio antidiurético, mas sua ação no rim está prejudicada); estima-se que até 40% dos pacientes que utilizam cronicamente lítio desenvolvam diabetes insipidus. Parecem ser fatores protetores para o desenvolvimento desta complicação tomada única diária, e controle cuidadoso do nível sérico e da função renal.

Do ponto de vista clínico-laboratorial, é esperado que o paciente desenvolva poliúria (diurese > 3 litros ao dia) com urina diluída (baixa densidade do exame comum de urina e baixa osmolalidade, que são marcadores de excreção de água livre). O sódio pode estar no limite superior do normal, mas tende a não estar alterado se o paciente tem acesso livre à água.

A suspensão do lítio tende resolver o quadro e deve ser tentada sempre que possível, porém a recuperação da capacidade de concentrar urina pode demorar meses. Em pacientes com longo tempo de uso, o quadro pode ser irreversível.

Apesar de parecer paradoxal, o uso de diuréticos para controle de poliúria, o uso de diuréticos (hidroclorotiazida ou amilorida, algumas vezes em combinação) podem ser utilizados no controle da poliúria e permitir a continuação do tratamento (quando a suspensão ou a substituição não são possíveis).

Nesse cenário, os diuréticos levam à redução do volume circulante efetivo e promovem maior função tubular proximal para controle da concentração urinária diminuindo a importância relativa dos túbulos distais e coletores na concentração urinária.

O comanejo com o clínico ou o nefrologista e o psiquiatra é fundamental, uma vez que a decisão de suspensão do tratamento com envolve uma ponderação cuidadosa dos riscos e benefícios à luz da doença psiquiátrica de base, e o uso de diuréticos pode levar à necessidade de ajustes e redução da dose de lítio, bem como monitoramento de eletrólitos.

Anti-inflamatórios não esteroidais também são alternativas para o manejo daqueles pacientes em que a suspensão não é possível ou apresentam quadros persistentes.

Outros efeitos

Diarreia

Este é um dos efeitos mais comuns do uso do lítio, presente em até 10% dos pacientes mesmo em níveis terapêuticos, mas são mais comuns se a concentração de lítio for > 0,8 mEq/L.

Os principais recursos para manejo dessa complicação são redução da dose diária e uso de formulações de rápida absorção, pois fórmulas de liberação prolongada favorecem o contato do fármaco a porção distal do intestino e a ocorrência de diarreia.

O cuidado para evitar desidratação, diante desses episódios, é fundamental para prevenir eventos de intoxicação mais grave.

Cardiovascular

O lítio pode ter uma série de efeitos cardiovasculares em níveis terapêuticos ou tóxicos, mas de modo geral o nível > 1,5 mEq/L é reconhecido como marcador de maior risco.

Em grande parte dos casos as alterações são assintomáticas, e a inversão da onda T ao eletrocardiograma é o principal achado. Outros eventos esperados são disfunção do nó sinusal, bloqueios sinoatriais e atrioventriculares e prolongamento do intervalo QT.

Em casos extremos, podem ocorrer arritmias ventriculares fatais. A polifarmácia é um dos principais fatores de risco para uso do lítio em pacientes cardiopatas.

Intoxicação

Os sintomas da intoxicação por lítio são conhecidos desde o século XIX, quando seu uso se tornou disponível em comprimidos que continham maior concentração e quantidade do fármaco. Na época, tremores e fraqueza eram os principais sintomas descritos, mas nos anos seguintes outros efeitos mais graves foram reconhecidos.

Por estes motivos, o uso em ampla escala só se tornou possível quando a medida de nível sérico se tornou possível e disponível. A estreita faixa terapêutica para uso do lítio é alcançada com uma dose entre 900-1800mg/dia (5).

Os principais sinais e sintomas decorrentes de intoxicação por lítio estão descritos na Figura 1. A intoxicação pode ocorrer de forma aguda ou crônica, em geral com uso de dose superior a 2400mg ao dia (para adultos).

Fatores como perda de função renal e idade avançada, assim como uso de medicações associadas (diuréticos, inibidores da enzima conversora de angiotensina e anti-inflamatórios não-esteroides) potencializam o risco de níveis tóxicos (> 1,5 mEq/L).

Figura 1. Sinais e sintomas decorrentes de intoxicação por lítio. Adaptado de (2).

O principal tratamento é de suporte, e inclui manejo de complicações neurológicas (tratamento de convulsões, proteção de via aérea) e hidratação parenteral com solução salina isotônica. A vigilância da natremia é fundamental, pois a incapacidade de concentrar a urina (efeito renal direto da intoxicação - vide Diabetes Insipidus acima) e a hiperhidratação com solução salina 0,9% podem predispor a hipernatremia e exacerbar os sinais de intoxicação.

Em casos selecionados, são indicadas terapias adicionais:

  • se houver ingestão única recente de mais de 10 a 15 comprimidos, a irrigação intestinal com polietilenoglicol pode ser indicada e reduz a absorção sistêmica;
  • em pacientes com sintomas neurológicos graves e/ou concentração sérica de lítio > 4-5 mEq/L, a hemodiálise pode ser um recurso terapêutico para remoção do lítio da circulação.

Vale ressaltar que o carvão ativado não é útil para intoxicação exclusiva por lítio e não deve ser indicado.

Monitoramento

O profissional cuidando de pacientes em uso de lítio deve estar atento às manifestações clínicas das condições citadas aqui e, na presença de algum sintoma suspeito, investigar ativamente.

Além disso, antes do início do tratamento, deve-se avaliar função renal, função tireoidiana, cálcio e eletrocardiograma (maiores de 40 anos ou com fatores de risco para cardiopatia) (Tabela 1). Avaliar gravidez também é recomendado, bem como monitorar os níveis séricos no início do tratamento e a cada aumento de dose.

No seguimento dos pacientes, deve-se monitorar função renal (incluindo exame de urina para avaliar densidade urinária), cálcio e função tireoidiana pelo menos a cada 6-12 meses (mais frequente no início do tratamento).

A faixa terapêutica de litemia é entre 0,8 e 1,2 mEq/L, porém, para pacientes com muitos efeitos adversos pode-se tentar um alvo um pouco mais baixo, por volta de 0,6 mEq/L; níveis acima de 1,5 mEq/L são considerados excessivos.

Resumo

  • Os principais efeitos sistêmicos do lítio são na tireoide, levando a hipotireoidismo e/ou bócio. Nessas situações, a relação risco/benefício pesa em favor de manter o lítio, e o manejo da doença de base é igual aos pacientes com essas alterações por outras etiologias. 
  • Outros efeitos do lítio incluem hipertireoidismo, hiperparatireoidismo, diabetes
    insipidus
    , alterações eletrocardiográficas e sintomas gastrointestinais. Esses eventos são menos comuns e devem ser monitorados. Por vezes a suspensão do medicamento pode ser necessária. 
  • Deve-se estar atento a sinais de intoxicação, que ocorrem com níveis séricos acima de 1,5 mEq/L. Sintomas digestivos acompanhados de alterações no nível de consciência, espasmos musculares e hiperreflexia e convulsões em casos graves são as principais manifestações clínicas. O tratamento inicial em casos de intoxicação é suporte clínico, incluindo hidratação e controle sintomático. 
  • No início do tratamento, deve-se revisar a história clínica (doenças prévias e sintomas não avaliados) e solicitar função renal, tireoidiana, cálcio e teste de gravidez. No seguimento dos pacientes, deve-se estar atento ao surgimento de sintomas, bem como monitorar a cada 6-12 meses função renal, capacidade de concentração urinária (densidade no exame de urina), cálcio e TSH. 

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