Enfermagem em Saúde Mental: como é o dia a dia

Para compreender a rotina dos enfermeiros que atuam no campo da Saúde Mental atualmente, é importante percorrer os caminhos históricos desses profissionais no contexto da saúde mental no Brasil.
Período de 1850 a 1959
Na época do Brasil imperial, a loucura era tratada sob uma perspectiva estritamente religiosa. Com o crescimento desordenado das cidades, os indivíduos em sofrimento psíquico passaram a circular pelas ruas e, quando causavam algum tipo de perturbação da ordem, eram trancados em suas residências ou nos porões das Santas Casas de Misericórdia. Diante disso, começou-se a idealizar a criação de uma instituição que pudesse conter essas pessoas e "limpar" a imagem das cidades. Assim, em 1852, foi inaugurado o Hospício D. Pedro II, no Rio de Janeiro, destinado àqueles considerados incômodos ou ameaçadores.
Dentro desses hospícios, era possível identificar práticas de enfermagem, embora ainda não compreendidas como tal, desempenhadas por irmãs de caridade e outras pessoas que exerciam atividades de vigilância, controle e manutenção da ordem disciplinar, muitas vezes por meio de coerção, violência e punições legitimadas.
Com a necessidade de profissionais qualificados para cuidar dos "loucos" num contexto menos religioso e mais científico, a República Brasileira, em 1890, convidou enfermeiras francesas para participarem da criação da Escola Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras do Hospital Nacional de Alienados, seguindo o modelo da escola de Salpêtrière.
As primeiras turmas de formação contaram com alunas oriundas de famílias de classes sociais mais conceituadas, que buscavam qualificação profissional como forma de ascensão social.
Em 1923, foi criada a Escola de Enfermeiros do Departamento Nacional de Saúde Pública do Rio de Janeiro. Posteriormente nomeada Escola de Enfermagem Anna Nery, essa instituição é considerada o marco oficial do desenvolvimento da Enfermagem como profissão no Brasil, por ter sistematizado conhecimentos próprios da ciência e da prática da enfermagem, com base no modelo norte-americano e nos ensinamentos de Florence Nightingale, considerada a “mãe” da enfermagem moderna.
A partir daí, características da prática profissional começaram a se transformar, impulsionadas principalmente pelo surgimento de novas terapias para o tratamento da loucura, como o choque insulínico, a psicocirurgia e a eletroconvulsoterapia, trazendo nova perspectiva para o papel do enfermeiro nos hospitais psiquiátricos.
Nesse contexto, cabia às profissionais de enfermagem, majoritariamente mulheres, a medicalização e o acompanhamento das sessões terapêuticas, sempre em apoio aos médicos. Já os homens da enfermagem exerciam funções de vigilância, controle, punição e repressão, sob supervisão da enfermeira e com respaldo médico.
Período de 1960 a 2009
Na psiquiatria brasileira, começaram a surgir questionamentos sobre a eficácia do modelo de tratamento vigente, marcado pela proliferação de hospícios e colônias, cujas condições eram cada vez mais precárias — superlotação, falta de higiene, número insuficiente de leitos por paciente, escassez de profissionais capacitados e tratamentos desumanos, sem melhora nos quadros clínicos.
A década de 1970 foi marcada por intensas transformações políticas, econômicas e sanitárias no Brasil. Nesse cenário, surgiram mobilizações no setor da saúde, entre elas o Movimento da Luta Antimanicomial (MLA), que mais tarde impulsionou a Reforma Psiquiátrica brasileira.
Nesse período, as práticas da enfermagem psiquiátrica ainda eram centradas nos hospitais psiquiátricos, fundamentadas no modelo biológico e no tratamento moral das psicopatologias. No entanto, observou-se um avanço nas relações interpessoais e terapêuticas, incluindo o cuidado às famílias dos pacientes.
As transformações decorrentes da reforma psiquiátrica brasileira, norteadas pela aprovação da Lei Federal nº 10.216, levaram à criação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), por meio da Portaria nº 336/2002 do Ministério da Saúde. Esses centros se tornaram referência no atendimento de pessoas com transtornos mentais graves ou persistentes, e sua expansão foi incentivada com financiamento federal.
Nos CAPS, o enfermeiro passou a atuar na perspectiva da reabilitação psicossocial, integrando um modelo ampliado de cuidado, com participação ativa do usuário e de sua família. Suas ações são desenvolvidas em conjunto com uma equipe multidisciplinar, por meio da construção do Projeto Terapêutico Singular (PTS), realização de grupos e oficinas com objetivos terapêuticos, atividades de educação em saúde, entre outras, fomentando a autonomia do indivíduo.
Período de 2010 até os tempos atuais
Em 2011, com a adoção do modelo de atenção à saúde por meio da articulação em rede, foi criada a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), por meio da Portaria nº 3.088 do Ministério da Saúde. A RAPS passou a ser responsável por articular os serviços voltados ao cuidado de pessoas com transtornos mentais ou com necessidades decorrentes do uso abusivo de álcool e outras drogas, em todos os níveis de atenção à saúde. Em todos esses serviços, é possível observar a atuação do profissional de enfermagem, que desempenha papel essencial na assistência direta aos usuários e seus familiares.
O dia a dia do Enfermeiro de Saúde Mental na atualidade
O enfermeiro de saúde mental realiza atividades individualizadas, multiprofissionais e coletivas, fortalecendo o protagonismo do indivíduo por meio do estímulo ao autocuidado e à sua reinserção social. Entre suas atribuições, estão: acolhimento, anamnese, atendimentos terapêuticos ao paciente e à família, elaboração do Projeto Terapêutico Singular (PTS), atenção à crise, participação em reuniões de equipe, condução de grupos e oficinas, registros em prontuário, entre outras.
A jornada do enfermeiro geralmente se inicia com a passagem de plantão, momento em que a equipe do turno seguinte recebe informações sobre o estado clínico e atualizações dos pacientes acolhidos e/ou internados (conforme o serviço ser CAPS ou hospitalar), além do planejamento das atividades do dia, como saídas da equipe, uso de carro, oficinas e grupos. Também são organizadas diariamente as escalas da equipe, que incluem funções como acolhimento, mediação, administração de medicação e aferição de sinais vitais (esta última sempre atribuída a um profissional de enfermagem), além da atenção à crise.
Após a reunião inicial, a equipe de enfermagem se dedica à organização e administração das medicações da manhã, separando também as demais medicações do dia dos pacientes acolhidos. Nesse momento, realiza-se também a aferição dos sinais vitais e o devido registro em prontuário.
Na atenção à crise, sempre há um enfermeiro de prontidão, apto a administrar medicação injetável ou realizar contenção física (esta última apenas com prescrição médica e utilizada como último recurso).
O enfermeiro também é responsável pela administração e controle das medicações intramusculares de depósito, realizando busca ativa ou informando a equipe sobre atrasos, o que muitas vezes previne crises.
Além disso, os profissionais de enfermagem participam ativamente de oficinas e grupos terapêuticos, como oficinas de culinária, bijuterias, desenho, grupos terapêuticos, de mulheres, entre outros.
A atuação do enfermeiro ultrapassa os limites da unidade: ele também acompanha pacientes em atividades externas, como interconsultas, idas ao banco, shopping, resoluções burocráticas (como INSS, RioCard, escola), ou em momentos de lazer.
Há também a visita domiciliar, indicada quando o paciente enfrenta dificuldades para comparecer à unidade ou quando o acompanhamento terapêutico precisa ocorrer em seu domicílio ou território — atividade que pode ser desempenhada por um profissional de enfermagem.
Ao final do turno, o enfermeiro registra todas as ações realizadas no prontuário e organiza as informações do dia seguinte para a equipe que assumirá o próximo plantão, utilizando o Livro Ata de Enfermagem.
Atualmente, é possível perceber o protagonismo da enfermagem na saúde mental. Inclusive, nos fins de semana e à noite — períodos em que não há presença da equipe médica e multiprofissional —, são os enfermeiros os responsáveis pela funcionalidade das unidades. Por esse motivo, muitos atuam como gestores e coordenadores desses serviços. Para isso, é indispensável que esses profissionais busquem contínua especialização e atualização.