Maus-tratos às crianças: quando o pediatra deve suspeitar?

Define-se maus tratos, violência ou abuso infantil como toda ação ou omissão por parte do adulto cuidador ou adolescente de mais idade, que resulta em dano ao desenvolvimento físico, emocional, intelectual ou social da criança ou adolescente. Classicamente, considera-se os tipos de maus tratos em: físico, psicológico, sexual e negligência. Constitui situação de notificação obrigatória pelo Estatuto da Criança e do Adolescente desde 1990, bem como pelo Código Penal Brasileiro, desde 1940. A violência doméstica contra crianças e adolescentes vem acontecendo em todos os lugares do mundo e em todos os níveis culturais e sociais, desde as mais remotas eras, dentro do princípio de que os filhos são de posse dos pais e, desta forma, teriam estes a decisão plena do passado, presente e futuro a lhes oferecer.
Todos os dias, uma média de 196 casos de violência física contra crianças e adolescentes de zero a 19 anos de idade foi notificada nas unidades de saúde do Brasil ao longo de 2023. Além disso, cerca de 80% das agressões contra crianças até 14 anos acontecem dentro de suas próprias casas. Apesar do número expressivo de registros, especialistas acreditam que esses dados representam apenas a ponta do iceberg. A subnotificação é um grande desafio, impedindo uma compreensão mais precisa da real dimensão do problema.
Neste artigo abordaremos alguns aspectos referentes à violência física especificamente.
Abordagem do pediatra diante da suspeita de maus-tratos
Como na maioria dos casos a violência é intrafamiliar ou doméstica, as crianças permanecem reféns indefesos de seus violadores. Os agressores, homens e mulheres, vão evitar ao máximo levar a criança ou adolescente para atendimento médico, mas, quando o fazem pela gravidade das lesões, criam histórias de “acidentes” para encobrir suas violências.
A abordagem de uma criança vítima de violência deve ser extremamente cuidadosa, tendo em vista a complexidade que apresenta, pois além dos casos com lesões físicas graves, eventualmente com risco de morte, há aquelas condições em que a agressão física é menor, mas o comprometimento emocional é muito importante, o que pode produzir sequelas graves por um longo período.
Na maioria das vezes, o diagnóstico é difícil exigindo experiência e atenção dos profissionais envolvidos para que possam suspeitar dessa situação com base na anamnese, exame físico e exames complementares.
A documentação em prontuário deve ser o mais detalhada possível. Nos casos em que se observa lesões de pele e hematomas, a fotografia é indispensável. A história deve ser detalhada assim como o exame físico que não deve se restringir à lesão apresentada. Procura-se por sinais de outras lesões recentes ou antigas.
O registro no prontuário deve ser minucioso. Havendo alguma suspeita de lesões em outros locais ou nos traumas mais violentos deve ser solicitada a avaliação de pediatra e eventualmente de neurocirurgião pelo risco hematoma cerebral.
Sinais de alerta clínicos e comportamentais
Durante a anamnese, é importante obter informações sobre o ambiente onde a criança vive e as circunstâncias do acidente, além disso, é possível observar alguns sinais que podem ser indicadores de violência como:
- Dificuldade da criança em comer, dormir ou se concentrar;
- Introspecção, timidez e passividade exageradas;
- Incompatibilidade entre informações fornecidas pelos cuidadores e os achados clínicos;
- Omissão total ou parcial da história do trauma;
- Demora inexplicável a procurar ajuda médica na presença evidente de trauma;
- Pais que modificam a história toda vez que são interrogados;
- Crianças maiores que não querem relatar o que aconteceu, com medo de represálias, especialmente quando os agressores são os pais;
- Famílias desestruturadas com pais muito jovens, usuários de álcool e outras drogas ilícitas;
- Casos de violência contra outras pessoas na família;
- Postura da criança hipervigilante;
- Crianças adultizadas ou inversão de papéis de cuidados na família;
- Pacientes com atraso de desenvolvimento neuropsicomotor ou outras doenças mentais/cognitivas .
A ausência desses indicadores não afasta a hipótese de violência, assim como eles por si só não devem ser considerados definidores da situação, porém, quando vários destes sinais estão presentes, a suspeita da violência aumenta.
Investigação diagnóstica
Exame físico
Geral:
a criança pode adotar posturas extremas, podendo estar arredia, ou agressiva, pode se mostrar temerosa ou adotar posição de defesa, se encolhendo, protegendo o rosto, ou ainda demonstrar apatia, sonolência e tristeza.
Pele:
podem estar presentes escoriações e hematomas, com destaque para essas lesões em dorso das mãos, nádegas, locais em que essas lesões acidentais são menos frequentes. Além disso, hematomas em diferentes fases de evolução, marcas de fivelas, cintos, em geral em regiões extensoras, mostram esboço de tentativa de defesa da criança. Marcas agudas ou cicatriciais numulares em pés e mãos podem ser sugestivas de queimaduras por cigarros.
Cabeça e pescoço:
pode haver hematomas, orelha deformada por puxões, edema em região ocular (sinal de atenção para lesão em retina e cristalino). Na cavidade oral, pode haver amolecimento dos dentes e lesões de mucosa.
Tórax e abdome:
lesões no tronco podem ser causa de morte por agressão direta, pode haver hemotórax, ruptura de baço e lesão hepática causada por socos e pontapés, a criança em geral surge com quadro característico de abdome agudo.
Ossos:
fraturas aparecem em até 30% desses casos, podem ocorrer em zonas de interssecção ligamentar, crânio. São sugestivas de trauma intencional os seguintes tipos de fratura:
- Metafisárias por arrancamento;
- Multiplas, bilaterais, em diferentes estágios de consolidação;
- Em costelas posteriores e escápulas;
- De crânio: multiplas, complexas, de região occipital ou parietal posterior;
- De apófises espinhosas;
- Espirais em membros superiores ou em membros inferiores em crianças que não andam.
Sistema nervoso central:
são comuns traumas acidentais em crianças até 2 anos, mas os graves em geral envolvem acidentes automobilísticos ou quedas de grandes alturas, as lesões de SNC causadas por abuso físico em geral são mais graves e geram grande mortalidade.
A síndrome do bebê sacudido se caracteriza por lesões no SNC e hemorragias oculares em crianças menores de 3 anos. São causadas pelo chacoalhamento, que não precisa ser prolongado, podendo ele ser breve ou repetido durante dias ou semanas. A sintomatologia nem sempre é evidente, mas deve-se pensar nesta síndrome toda vez que uma criança de menos de dois anos apresenta sinais de comprometimento de SNC, sem que haja sinais infecciosos ou histórico de convulsões graves.
Os sintomas vão desde alterações do nível de consciência, irritabilidade ou sonolência, convulsões, déficits motores, problemas respiratórios, hipoventilação, coma e, em muitos casos, morte. Novamente, a maioria delas ocorre em paciente com menos de 2 anos de idade.
É recomendado pesquisa com tomografia computadorizada de crânio em todos os pacientes com confirmação de maus tratos nessa faixa etária. O encontro de hemorragia retiniana com edema cerebral e ou hematoma subdural, sem que sejam decorrentes de grandes traumas não intencionais, como acidentes de trânsito, deve obrigatoriamente levar a investigação de maus tratos.
Exames complementares
A avaliação complementar deve ser guiada pelo quadro clínico, podendo incluir:
- Exames hematológicos: hemograma, coagulograma;
- Bioquimicos: CPK (quase sempre aumentado em casos de trauma); amilase, transaminases e GGT (em trauma abdominal);
- Urina 1;
- Exame toxicológico: avaliar intoxicação exógena em sangue e urina;
- Exames de imagem: radiografias de crânio, coluna cervical, tórax (frente e perfil para visualizar costelas, coluna torácica e lombar superior), membros superiores, incluindo cintura escapular, membros inferiores, coluna lombar inferior e pelve.
O estudo radiológico deve ser complementar aos dados da história quando se observa alguma lesão, em crianças com menos de 2 anos ou que não se comunicam, deve ser feito em todo o esqueleto mesmo não havendo evidências de trauma ao exame físico. Nas crianças que se expressam verbalmente deve-se radiografar as áreas suspeitas, doloridas ou com limitação de movimento.
Encaminhamento aos órgãos competentes
No Brasil, a notificação de qualquer suspeita ou confirmação de violência contra crianças e adolescentes é compulsória, conforme estabelecido pelo Ministério da Saúde e obrigatória pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Todos os casos devem ser reportados ao Conselho Tutelar, mesmo de mera suspeita, e, em situações mais graves ou que envolvem crimes como violência física, psicológica ou sexual, às delegacias de polícia e o Ministério Público também precisam ser notificados.
Uma vez confirmada a suspeita, o primeiro passo a ser dado é notificar às autoridades, essa é uma obrigação dos profissionais que prestam assistência às crianças. Deve ser encaminhada notificação própria ao Conselho Tutelar e uma notificação de violência doméstica à secretaria municipal de saúde para fins epidemiológicos. O Ministério da Saúde determina a obrigatoriedade da notificação a todas as unidades de saúde integrantes do Sistema Único de Saúde do Brasil, de acordo com a Portaria n° 1968/GM, de 25 de outubro de 2001, publicada no DOU n° 26 de 26/10/2001
Em seu Art 13, o ECA define que os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança e adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras medidas legais.
De acordo com o Art 245 do ECA, Lei n° 8069 de 13/07/1990, é aplicável multa de 3 a 20 salários-mínimos de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência, quando o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, deixar de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente. Deve-se notar que a legislação fala em maus-tratos de forma ampla, quando há a exposição ao risco e não apenas quando a violência ou abuso já aconteceu.
De acordo com a equipe do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli, em estudo realizado para o Ministério da Saúde, a categoria médica é a que mais resiste em fazer a notificação por motivos diversos como:
- falta de preparo do profissional em identificar e lidar com casos de maus-tratos;
- medo de fazer a notificação e ter problemas com a justiça ou sofrer retaliação pelo agressor;
- falta de suporte para um atendimento mais aprofundado em função da enorme demanda;
- tradição de uma prática clínica que se restringe ao atendimento de patologias, sem questionar as causas;
- descrença no Poder Público e na real possibilidade de intervenção nesses casos;
- visão de que se trata de um problema de família, não sendo, portanto, de responsabilidade de uma instituição de saúde;
- temor de notificar uma suspeita infundada.
Conclusão
Os maus tratos às crianças devem ser suspeitados por pediatras em várias circunstâncias clínicas. A presença de lesões cutâneas, como hematomas, hemorragias intracranianas ou outras manifestações de sangramento, pode levantar suspeitas de violência. Nesses casos, é crucial considerar condições médicas que predispõem a sangramentos fáceis ou hematomas e iniciar investigações laboratoriais. Fraturas em crianças, especialmente em crianças pequenas que não podem explicar suas lesões, também são um sinal de alerta.
Por fim, é importante que os pediatras estejam cientes de que os maus-tratos podem ocorrer em todas as classes socioeconômicas e que são profissionais que desempenham um papel importante na prevenção e detecção precoce. A documentação detalhada e a notificação obrigatória às autoridades competentes são passos essenciais no manejo de casos suspeitos de abuso infantil.