Policitemia: causas e abordagem diagnóstica e terapêutica
Policitemia é a presença de nível de hemoglobina ou hematócrito acima do normal. Cada população (e laboratório) possui limiares diferentes de normalidade para hemoglobina, mas como regra, hemoglobina maior que 17 g/dL em homens e 15 g/dL em mulheres é considerada elevada.
Valores de hematócrito acima de 50% para homens e 48% para mulheres também satisfazem esse critério. Na grande maioria dos casos, essa é uma alteração identificada ao acaso em um hemograma realizado por outra indicação. Uma vez que mulheres tem perdas sanguínea menstrual, há predominância de homens nos inquéritos de prevalência de policitemia.
Do ponto de vista prático, o grande desafio do médico atendendo um paciente com policitemia é diferenciar causas secundária (atribuíveis usualmente a hipoxemia crônica) de causas primárias (relacionadas a mutação em progenitores de hemácias - usualmente policitemia vera). Além disso, também deve-se identificar pacientes sem aumento da massa de hemácias, que tem policitemia relativa.
Neste artigo, você conhecerá as causas de policitemia, como identificá-las e verá aspectos gerais sobre o tratamento. É importante destacar que sem a diferenciação da causa não é possível realizar o manejo adequado do paciente.
Causas de policitemia
As causas de policitemia podem ser divididas sistematicamente em três grupos, como veremos a seguir, apresentado na
Tabela 1
. Além de direcionar para a causa, essa divisão tem implícito o mecanismo da alteração e, portanto, as alterações laboratoriais esperadas.
O primeiro grupo, que alguns autores chamam de policitemia espúria, é a policitemia relativa. Nestes pacientes não há aumento real da massa de glóbulos vermelhos, mas sim redução do volume corporal circulante.
Nas policitemias primárias há uma alteração na maturação dos glóbulos vermelhos por mutação de alguma célula precursora, que leva ao seu desenvolvimento não regulado. Estas policitemias são independentes da regulação da eritropoetina (EPO), cujos níveis costumam estar reduzidos ou indetectáveis. E, por fim, temos as causas secundárias, em que alguma outra doença ou situação clínica cursa com elevação dos níveis de EPO (usualmente mediado por hipoxemia), que, por sua vez, aumenta os níveis de glóbulos vermelhos no sangue.
Tabela 1.
Causas selecionadas de policitemia. Adaptado de 2 e 3.
Quadro clínico
O mais comum em pacientes com policitemia é a ausência de sintomas clínicos, uma vez que essa situação costuma ser diagnosticada por exame de hemograma realizado por outra indicação.
Apesar disso, as manifestações clínicas clássicas são relacionados ao aumento da massa de glóbulos vermelhos com eventos trombóticos e hiperviscosidade. Isso inclui sintomas como
vertigem, zumbidos, cefaléia e alterações visuais
.
Hipertensão
é uma manifestação comum. Pacientes com policitemia vera possuem algumas manifestações mais específicas, como
prurido após banho
(prurido aquagênico),
hepatoesplenomegalia, fragilidade vascular
(epistaxe, equimoses, úlcera péptica e sangramento em outros pontos do trato digestivo), bem como
eritromelalgia
(dor / quemação com hiperemia de extremidades).
Tromboses em território intestinal e isquemia digital
também sugerem o diagnóstico. A hiperviscosidade pode elevar a pressão na artéria pulmonar e, em pacientes com hipoxemia associada (causando vasoconstrição das arteríolas pulmonares), pode haver o surgimento de
cor pulmonale
.
Além das manifestações relacionadas ao quadro de policitemia, outros aspectos da história e do exame físico devem ser investigados, pois auxiliam na identificação da causa.
A história de tabagismo, uso de diuréticos, exposição à altas altitudes (hipoxemia ambiental crônica) precisa ser revisada
. A presença de cianose deve ser ativamente procurada, bem como sintomas e sinais de doenças que cursam como hipoxemia, como cardiopatia com
shunt
direita-esquerda, pneumopatias (principalmente doença pulmonar obstrutiva crônica) e apneia obstrutiva do sono.
Abordagem diagnóstica
Como apresentado até aqui, o principal objetivo da avaliação diagnóstica é confirmar a presença de uma policitemia verdadeira (e não apenas relativa - hemoconcentração) e diferenciar causas primárias de secundárias. Para isso,
a principal ferramenta é o exame clínico
, uma vez que, na maioria dos casos, a causa secundária pode ser identificada por sintomas, história médica pregressa e tratamento em uso, além de dados do exame físico.
Quadros de policitemia relativa são diagnosticados usualmente por dados clínicos: sinais de hipovolemia, como tontura, sede, hipotensão postural, redução do turgor cutâneo sugerem esse diagnóstico. História de tabagismo, uso de diuréticos e inibidores da SGLT-2 também reforçam essa hipótese. Na suspeita dessa causa, o fator precipitante deve ser retirado e/ou deve-se buscar resolver a hipovolemia. Se a hemoglobina normalizar, o diagnóstico de outras causas de policitemia é improvável. Nos casos de policitemia atribuível ao tabagismo, ela tende a resolver 3-4 semanas após a suspensão do mesmo.
Para além da policitemia relativa, deve-se estar atento a situações de gravidade e necessidade de maior urgência na avaliação diagnóstica e terapêutica. Pacientes que se apresentam com eventos trombóticos agudos (acidente vascular cerebral, infarto do miocárdio, isquemia periférica, trombose venosa) devem ser avaliados com maior rapidez e tratamento urgente (ver a seguir) deve ser instituído. Pacientes com hematócrito > 60%, acompanhado de prurido, eritromelalgia e distenção abdominal provavelmente tem policitemia vera e também tem alto risco de eventos trombóticos.
Na
Figura 1
há uma proposta de abordagem diagnóstica para definição etiológica da policitemia. Como esperado, o hemograma é o principal recurso para o diagnóstico; o primeiro passo (sempre que a gravidade do quadro permitir) é confirmar a alteração com uma nova coleta. Um outro recurso é a revisão do histórico de hemoglobina ao longo dos anos, para compreender a velocidade de instalação do quadro. As outras linhagens celulares também fornecem dicas diagnósticas: a presença de leucocitose e, especialmente, trombocitose, reforça a hipótese de policitemia primária (linfoproliferação). Neste momento da avaliação é útil revisar manifestações que sugiram policitemia vera, como prurido, eritromelalgia, hepatoesplenomegalia, eventos trombóticos prévios.
Figura 1.
Abordagem diagnóstica de pacientes policitemia. Adaptado de 1 e 3.
Como pode-se observar, a dosagem de EPO é central para a investigação, uma vez que, se reduzida, sugere fortemente o diagnóstico de policitemia vera (e outras doenças mieloproliferativas). Costuma ser considerado o principal exame para investigação após o hemograma e deve ser considerado em todos os pacientes em que a causa não é imediatamente identificada na avaliação inicial:
- Quando está reduzida, indica uma elevação de hemoglobina independente do estimulo fisiológico, o que usualmente indica um distúrbio primário da medula óssea.
- Quando está elevada, deve-se investigar se a elevação é inapropriada (produção autônoma tumoral, por exemplo) ou há algum estímulo para sua elevação (hipoxemia é a principal causa).
Além dela, recomenda-se avaliar a função hepática e renal. Avaliação com exames de imagem dependem da suspeita clínica e devem ser considerados em pacientes com quadros de policitemia que não se identifica causa nos passos anteriores. A investigação de mutação na JAK2 é extremamente útil, pois identifica a mutação que causa a maioria dos casos de policitemia vera; entretanto sua disponibilidade é limitada e deve ser realizada como teste de confirmação em pacientes com alta suspeita para a doença.
Tratamento
O manejo da policitemia por causas secundárias envolve primordialmente o tratamento da doença de base. Em algumas situações pontuais, como sintomas refratários - cefaleia fadiga, perda visual), hematócrito > 65% e eventos arteriais agudos (infarto, AVC) pode ser necessária flebotomia terapêutica (com alvo de hematócrito de 55%). Nestas situações, deve-se estar atento para não exacerbar a hipoxemia e comprometer a doença de base com tratamento excessivo da policitemia.
Por outro lado, a
policitemia vera
(policitemia "primária") possui tratamento mais bem definido e ele costuma ser realizado com apoio de médico hematologista. Como esta é uma condição de evolução lenta (usualmente décadas), o tratamento deve refletir a evolução individual de cada paciente. Como regra, algumas recomendações se aplicam para todos os pacientes:
- As complicações trombóticas são a principal complicação da doença, assim, deve-se buscar alvos de hemoglobina de menos de 14 g/dL em homens e menos de 12 g/dL em mulheres. Esses alvos são usualmente atingidos com flebotomias de repetição.
- Da mesma forma, AAS em dose baixa (100 mg/dia) deve ser usado em todos os pacientes, exceto naqueles com risco de doença de von Willenbrand adquirida (pacientes com sangramentos esponâneos ou com plaquetas > 1 milhão/mm3). Além de reduzir o risco de eventos trombóticos, auxilia no controle de sintomas.
- Controle de sintomas, sendo os principais prurido e eritromelalgia. Aspirina e controle de hemoglobina são os principais recursos para isso, mas evitar banhos excessivamente quentes e manter a pele hidratada também é importante.
Além dos pontos acima, deve-se avaliar a necessidade de citoredução, cuja indicação depende do risco de complicações, principalmente eventos trombóticos. Em pacientes com menos de 60 anos e sem eventos trombóticos prévios (baixo risco), dá-se preferência aos tratamento acima (controle com flebotomias, uso de AAS), reservando terapia de citoredução para aqueles com sintomas refratários.
Para os pacientes de alto risco (mais de 60 anos ou com eventos trombóticos prévios) ou com sintomas refratários sem plano ou risco de engravidar, prefere-se o uso de hidroxiureia ou interferon peguilado. Para pessoas com chance de engravidar, prefere-se interferon peguilado, uma vez que hidroxiureia é contraindicado na gravidez. Para pacientes que falham com essas terapias, outras opções que podem ser selecionadas são ruxolitinibe e busulfan.
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