Quando e como iniciar o tratamento antirretroviral em pacientes com HIV na APS

Estima-se que, ao fim de 2020, 936 mil pessoas viviam com o HIV (PVHIV) no país, das quais 820 mil (88%) estavam diagnosticadas; 82% (766 mil) haviam sido vinculadas a algum serviço de saúde; e 691 mil (74%) estavam em acompanhamento nos serviços. Observa-se cobertura antirretroviral de 71% (666 mil) e supressão viral [Carga Viral (CV) inferior a 50 cópias/mL] de 63% (594 mil) entre todos os indivíduos infectados pelo HIV.¹
Tais dados representam a cascata de cuidado do HIV, instrumento que norteia decisões em saúde e que sintetiza as metas para 2020 as quais o Brasil era signatário: 90% das PVHIV do país diagnosticadas; 90% das PVHIV diagnosticadas em terapia antirretroviral (TARV); e 90% das pessoas em TARV com CV suprimida, chamada 90-90-90. A cascata atual do Brasil está representada na figura 1.¹
Figura 1. Cascata de cuidado contínuo do HIV*. Brasil, 2020
Fonte: Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis (DCCI). Relatório de monitoramento clínico do HIV / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis (DCCI) – Brasília : Ministério da Saúde, 2020, p 14.
Desde dezembro de 2013, a recomendação vigente no Brasil é a oferta de tratamento para todas as PVHIV, independentemente do valor do CD4, com tratamento preferencialmente iniciado na APS – mediante critérios clínicos – e referenciamento aos centros especializados conforme condição imunológica, presença de comorbidades, entre outros.¹
Neste artigo, você vai conhecer os passos necessários para início da TARV em adultos nas Unidades de Atenção Primária.
Confirmação Diagnóstica
O diagnóstico deve ser realizado mediante suspeita de Síndrome Retroviral Aguda ou na doença já instalada ou, preferencialmente, a partir da oferta de testagem para HIV e outras Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) para todas as pessoas sexualmente ativas. O teste rápido, com fácil acesso, ausência de necessidade de ambiente laboratorial para sua execução, rapidez e confiabilidade é a estratégia diagnóstica principal.2,3
A infecção pelo HIV é definida com dois resultados reagentes em testes rápidos (TR1 e TR2) contendo antígenos diferentes e usados em sequência.2,3
A pessoa que apresentar resultados reagentes em dois testes deverá ser avaliada em consulta médica ou de enfermagem, na qual deverá ser solicitado o teste para quantificação de carga viral (HIV-1 RNA) e contagem de linfócitos T-CD4. Em caso de indisponibilidade de testes rápidos, o diagnóstico poderá ser feito por meio de coleta de amostra de sangue para análise laboratorial (anti-HIV), com teste confirmatório complementar sequencial (Western Blot, imunoblot ou teste molecular). No caso de resultados discordantes dos exames laboratoriais, se disponível, solicitar quantificação da carga viral para HIV para confirmação do diagnóstico.2,3
Se a carga viral não estiver disponível, os testes laboratoriais devem ser repetidos em 30 dias, para confirmar ou descartar soroconversão recente.2,3
Após confirmação do resultado reagente, a notificação do caso deve ser realizada com o preenchimento da ficha de notificação, assim como casos de AIDS e gestantes diagnosticadas com HIV.2,3
Avaliação clínica e laboratorial
A primeira consulta médica deve ocorrer logo após o diagnóstico, para informar o paciente sobre a doença, orientando sobre o curso de doença e a recomendação atual de tratamento para todas as PVHIV. O paciente deve ser orientado sobre a diferença entre ser portador do vírus e a presença de doença instalada, estando ciente da importante mudança prognóstica com o tratamento, devendo ser realizada, também, avaliação clínica e laboratorial para programação terapêutica.2-4
O quadro 1 resume os principais aspectos de avaliação da primeira consulta. Sinais e sintomas de tuberculose devem ser minuciosamente buscados, visto ser comorbidade com importante mortalidade em PVHIV. Nos tratamentos antirretrovirais prévios, incluir perguntas sobre o uso de PEP ou PrEP..2-4
Quadro 1. Pontos importantes de avaliação clínica da primeira consulta.
FONTE: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Faculdade de Medicina. Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia. TelessaúdeRS (TelessaúdeRS-UFRGS). TeleCondutas: HIV: acompanhamento e tratamento de pessoas vivendo com HIV/AIDS na Atenção Primária à Saúde: versão digital 2021. Porto Alegre: TelessaúdeRS-UFRGS, 10 jul. 2020 [atual. 15 set. 2021]. Disponível em: https://www.ufrgs.br/telessauders/teleconsultoria/0800-644- 6543/#telecondutas-0800. Acesso em 01, nov, 2021.
No exame físico, devem ser buscados sinais clínicos de patologias que sinalizem a presença de infecções associadas ao HIV, como verrugas virais, adenopatias, micose de unhas e pés, candidíase oral, entre outras, bem como a pesquisa de alterações neurocognitivas e hepato/esplenomegalia. A aferição da pressão arterial, peso, altura, cálculo do índice de massa corporal e medida da circunferência abdominal também são partes essenciais do exame físico da primeira consulta..2-4
Os seguintes exames ajudam a avaliar a condição geral de saúde, comorbidades e urgência no início da TARV, e devem ser solicitados na primeira consulta:.2-4
- Contagem de Linfócitos T-CD4 (LT-CD4) e carga viral do HIV;
- Genotipagem pré-tratamento (apenas para gestantes, mulheres em idade fértil que pretendem iniciar o processo de engravidar, casos novos com coinfecção TB/HIV, crianças/adolescentes e pessoas com indicação de início de TARV com Efavirenz);
- Hemograma e contagem de plaquetas;
- Glicemia em jejum;
- Perfil lipídico (colesterol total, HDL, triglicerídeos);
- Avaliação hepática (TGO, TGP, bilirrubinas);
- Avaliação renal (creatinina, exame qualitativo de urina);
- Teste para hepatites virais: Anti-HCV, HBsAg, Anti-HBs, Anti-HBc total, Anti-HAV IgG;
- Toxoplasmose IgG;
- Anti-HTLV I e II;
- Sorologia para Chagas (triagem para indivíduos oriundos de áreas endêmicas);
- Teste imunológico para sífilis (VDRL ou teste rápido);
- Radiografia de tórax;
- Prova tuberculínica intradérmica (PT ou Reação de Mantoux).
Início da TARV
O paciente deve ser orientado quanto à recomendação atual de uso de TARV para qualquer PVHIV, independente da contagem de LT-CD4, estando ciente da importância da utilização contínua da TARV e das consequências do uso irregular, em especial resistência aos ARV. O objetivo do uso da TARV é a supressão da replicação viral - a disponibilidade de acesso ao médico e à equipe de saúde são fundamentais para a adesão do paciente e a boa continuidade do tratamento.2-4
Pacientes sem histórico de comorbidade grave ou história prévia de doença renal, sem condição clínica indicativa da presença de patologia associada ao HIV - que impeça o início do tratamento - e motivados ao início da TARV podem sair da primeira consulta já com a receita dos antirretrovirais, sendo orientados a iniciar o tratamento após a coleta dos primeiros exames, o mais breve possível. 2-4
Quando há insegurança do paciente quanto ao início da terapia, deve ser agendado retorno breve (em 7 a 10 dias) para rediscussão, já de posse dos exames iniciais.2-4
A primeira linha de tratamento vigente no momento atual é:2-4
A prescrição de antirretrovirais é realizada em formulários específicos, disponíveis nos endereços eletrônicos das Secretarias Estaduais de Saúde. No formulário de prescrição deve ser informado o valor do último exame de carga viral com data, se disponível, preenchendo o formulário completo, incluindo o motivo para troca de esquema ARV, quando necessário.2-4
Na consulta, o paciente deve ser orientado quanto aos efeitos adversos mais comuns - náusea, cefaleia, diarreia, sintomas alérgicos leves -, os quais são breves e cessam após três a quatro semanas, bem como devem ser revisadas as medicações em uso, checando possíveis interações.2-4
Exceções ao esquema preferencial
Pacientes com as situações abaixo devem ser encaminhadas para a atenção especializada para uso de esquema alternativo.2,3
- mulheres em idade fértil com desejo de gestar e gestantes vivendo com HIV, pelo potencial risco de defeito no tubo neural se utilizado no período periconcepcional e no primeiro trimestre da gestação;
- coinfecção HIV e TB, para avaliação da indicação do uso de Efavirenz no lugar de Dolutegravir;
- insuficiência renal crônica pré-existente, pela contraindicação ao uso de TDF em pessoas com TFG < 60 ml/min/1,73m2. As possibilidades são o uso de abacavir (ABC) ou zidovudina (AZT), com seleção feita na atenção especializada;
- uso de anticonvulsivantes, para avaliação do uso de Raltegravir, com melhor perfil de interação medicamentosa com anticonvulsivantes. A oxicarbamazepina é incompatível com o uso de dolutegravir e o uso de carbamazepina, fenitoína e fenobarbital demanda ajuste na dose do DTG, quando existe indicação de uso desse fármaco.
Situações de necessidade de início breve da TARV
Com o objetivo de redução na mortalidade, as pessoas com as condições abaixo devem ter prioridade de atendimento na rede, com início de TARV o mais breve possível.2,3
- PVHIV sintomática;
- LT-CD4 < 350 céls/mm³;
- gestante;
- tuberculose ativa;
- coinfecção HBV;
- coinfecção HCV;
- risco cardiovascular elevado (> 20%).
Em locais com dificuldade de acesso ao especialista, os pacientes coinfectados HIV-TB, gestantes com início tardio de pré-natal e quando existe a impossibilidade de obtenção de resultado de LT-CD4 e suspeita de imunossupressão importante deve ser avaliado o início da TARV na APS, com discussão de caso com serviço de referência ou serviço de consultoria presencial ou remota.2,3
Seguimento clínico e laboratorial
A periodicidade das consultas médicas varia ao longo do tratamento, dependendo da condição clínica do paciente, da fase de tratamento e da necessidade do paciente, sendo fundamental a orientação de acesso ao médico de família e à equipe para esclarecimento de dúvidas ou quaisquer sintomas, por via presencial ou remota.2,3
Após o início da TARV e cada alteração recomenda-se retorno em 1 a 2 semanas para avaliação da adesão e da presença de efeitos adversos, com reavaliação mensal até adaptação e retorno semestral após estabilidade, devendo ser exposto ao paciente o provável calendário de consultas, viabilizando maior organização pessoal.2,3
Os quadros abaixo sintetizam a frequência de consultas e de solicitação de exames da PVHIV.
Quadro 2. Periodicidade de consultas médicas.
FONTE: Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Manejo da Infecção pelo HIV em Adultos / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. – Brasília : Ministério da Saúde, 2018, p 69.
Quadro 3. Avaliação laboratorial no acompanhamento de pessoas com HIV/Aids.
FONTE: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Faculdade de Medicina. Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia. TelessaúdeRS (TelessaúdeRS-UFRGS). TeleCondutas: HIV: acompanhamento e tratamento de pessoas vivendo com HIV/AIDS na Atenção Primária à Saúde: versão digital 2021. Porto Alegre: TelessaúdeRS-UFRGS, 10 jul. 2020 [atual. 15 set. 2021]. Disponível em: https://www.ufrgs.br/telessauders/teleconsultoria/0800-644- 6543/#telecondutas-0800. Acesso em 01, nov, 2021.
Risco cardiovascular
Pessoas vivendo com HIV têm risco cardiovascular aumentado em comparação à população geral, devendo ser feita avaliação do risco cardiovascular no início e a cada troca da TARV, com cálculo do Escore de Risco de Framingham, realização de exames conforme quadro 3, avaliação de tabagismo, hábitos alimentares e prática de atividade física, medida da pressão arterial, circunferência abdominal e índice de massa corporal.2,3
De acordo com o risco inicial, a revisão da estratificação deve seguir a sequência abaixo:2,3
- Risco baixo (< 10%): reavaliar a cada dois anos.
- Risco moderado (entre 10 e 20%): reavaliar a cada 6 a 12 meses.
- Risco elevado (> 20%): reavaliar a cada 3 meses (após aconselhamento/intervenção).
O uso de estatinas e fibratos deve sempre ser feito com atenção às interações medicamentosas com a TARV
- A prescrição de estatinas está recomendada para pessoas com alto risco cardiovascular (escore de Framingham > 20%). Sinvastatina e Lovastatina devem ser usadas com cautela em pacientes em uso de TARV, sendo contra indicadas para pacientes em uso de inibidores de protease, como Atazanavir e Darunavir. Nesses casos, opta-se por pravastatina (20 a 40 mg/dia) ou atorvastatina (10 a 80 mg/dia).2,3
- O uso de fibratos está indicado quando a dosagem de triglicerídeos > 500 mg/dL e opções para o tratamento incluem fenofibrato 200 mg 1 vez ao dia ou gemfibrozil 600 mg, 2 vezes ao dia antes do café da manhã e do jantar, sendo medicações com baixo perfil de interação medicamentosa com antirretrovirais. 2,3
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Avaliação da massa óssea e rastreamento de alterações ósseas
- A infecção pelo HIV e o uso de ARV são causas secundárias de osteoporose, sendo também frequentes na PVHIV outros fatores de risco para osteoporose, como IMC baixo, tabagismo, etilismo e uso de corticoides.2,3
- Recomenda-se o cálculo do risco de fraturas nos seguintes pacientes com HIV:2,3
- uso de corticóide por mais de três meses (equivalente a >5mg de prednisona/dia);
- alto risco de quedas;
- homens e mulheres (pré-menopausa) com mais de 40 anos.
- O cálculo do risco de fratura em 10 anos deve ser avaliado pela calculadora FRAX Brasil, com repetição a cada dois a três anos ou a cada novo risco clínico. Ao utilizar o FRAX Brasil, deve-se selecionar o campo correspondente a causas secundárias de osteoporose.2,3
O risco identificado pelo FRAX Brasil deverá nortear a realização de densitometria óssea. Indicam solicitação do exame:
- história prévia de fraturas de fragilidade;
- risco intermediário de fraturas em dez anos (> 10% de risco de fraturas osteoporóticas),
- determinado pela FRAX;
- diagnóstico prévio de osteoporose (a cada 2 anos) ou osteopenia (a cada 3-5 anos);
- mulheres na pós-menopausa;
- homens com mais de 50 anos.
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Rastreamento de neoplasias
Tipo de rastreamento
Indicação
Observações
Câncer de colo do útero
Todas as mulheres após início da atividade sexual, com intervalo semestral no primeiro ano e anual após.
Se LT-CD4 < 200 células/mm³, manter rastreamento semestral até recuperação imunológica
Câncer de Mama
Mamografia bianual dos 50 aos 69 anos
Mesma recomendação da população geral
Câncer de canal anal
Rastreio de sinais e sintomas clínicos anualmente em PVHIV e com histórico de relação receptiva anal, antecedente de HPV, histologia vulvar ou cervical anormal
Se o rastreamento for positivo, proceder com o toque retal. Se toque retal suspeito de neoplasia, encaminhar para serviço especializado de proctologia.
Câncer de fígado
Semestralmente em pacientes cirróticos e portadores de HBsAg positivos
Dosagem de alfa-fetoproteína + realização de ultrassom.
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Vacinação
- A situação vacinal de adolescentes e adultos vivendo com HIV deve ser revisada anualmente. Na ausência de imunossupressão importante, realizar esquema completo com as adaptações necessárias às PVIHV (como por exemplo a dose dobrada da vacina contra Hepatite B - ver detalhes no quadro 4).2,3
- A maior atenção deve ser dispensada à administração de vacinas em pacientes com imunossupressão grave (LT-CD4 < 200 céls/mm³):2,3
- Adiar aplicação de vacinas de vírus vivo ou atenuado e aguardar a reconstituição imune (LT-CD4 ≥ 200 céls/mm3), realizando a vacinação apenas quando paciente em uso de TARV com boa adesão, assintomático e com CV indetectável na última contagem.
- Outras vacinas: avaliar risco de contaminação pela doença em questão versus risco de complicações pós-vacinais.
- A vacinação pode elevar a carga viral transitoriamente, devendo ser orientado intervalo de 4 semanas entre a vacinação e a coleta de exames de CV.2,3
- Quadro 4. Esquema vacinal em PVHIV maiores de 13 anos.
- FONTE: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Faculdade de Medicina. Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia. TelessaúdeRS (TelessaúdeRS-UFRGS). TeleCondutas: HIV: acompanhamento e tratamento de pessoas vivendo com HIV/AIDS na Atenção Primária à Saúde: versão digital 2021. Porto Alegre: TelessaúdeRS-UFRGS, 10 jul. 2020 [atual. 15 set. 2021]. Disponível em: https://www.ufrgs.br/telessauders/teleconsultoria/0800-644- 6543/#telecondutas-0800. Acesso em 01, nov, 2021.
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Efeitos adversos dos antirretrovirais
- Os novos esquemas ARV apresentam perfil de eventos adversos com maior tolerabilidade, com benefícios que superam a ocorrência de descontinuidade de tratamento pelos EA.2,3
- São mais comuns nos primeiros três meses, e manifestações leves não indicam interrupção da TARV. Em situações de efeito adverso grave, potencialmente fatal ou reação de hipersensibilidade, a TARV deve ser descontinuada e o paciente referenciado para serviço de referência para avaliação de esquema alternativo.2,3
- A hepatotoxicidade é o evento adverso com potencial de gravidade mais comumente associado aos ARV, tendo apresentação clínica que varia de elevação assintomática das transaminases a falência hepática grave, devendo ser feito diagnóstico diferencial com hepatites virais agudas, ativação de doença crônica, abuso de substâncias, entre outros. Anorexia, perda de peso, fadiga, dor abdominal, náusea e vômito de início agudo ou subagudo sempre devem ser avaliados para presença de alteração hepática.2,3
- Os efeitos adversos da primeira linha de tratamento e a conduta sugerida são os que seguem abaixo:
MEDICAMENTO
EFEITO ADVERSO MAIS COMUM
CONDUTA SUGERIDA
Lamivudina (3TC)
Comuns: cansaço, cefaleia, mialgia.
Raros: pancreatite, neutropenia ou neuropatia periférica.
Comuns: Manejo sintomático
Raros: Se suspeita de pancreatite, encaminhar à emergência.
Após, referenciar ao serviço especializado.
Neutropenia e neuropatia periférica: referenciar ao serviço especializado.
Tenofovir (TDF)
Comuns: Insônia, cefaleia, vertigem, rash cutâneo ou prurido, dor abdominal, náusea, diarréia e vômito.
Raros: Toxicidade renal (redução da TFG) e disfunção tubular proximal (Síndrome de Fanconi), diminuição da densidade mineral óssea, acidose láctica e hepatomegalia grave com esteatose
Comuns: Manejo sintomático
Se insônia, usar o ARV pela manhã.
Realizar avaliação de função renal 30-60 dias após início de TDF e encaminhar ao SAE para troca de esquema em caso de TFG < 60 ml/min/1,73 m2 ou queda > 25% da TGF em relação aos valores basais. Fatores de risco para doença renal: hipertensão e diabetes não controladas, paciente idoso e com baixo peso corporal (peso inferior a 50 kg ou IMC < 18,5)
Controlar fatores de risco para osteoporose.
Avaliar substituição por ABC ou AZT.
Dolutegravir (DTG)
Mais comuns: hiperglicemia e hepatotoxicidade.
Raros: Insônia, cefaleia, náuseas, vômitos e rash (raros relatos de hipersensibilidade). Pode aumentar creatinina sérica sem alterar função glomerular
Defeitos do tubo neural.
Podem ser necessários ajustes na dose de metformina em diabéticos.
Se insônia, usar o ARV pela manhã.
Se elevação na creatinina sérica, dosar nova creatinina em 4 a 8 semanas, sem ajuste de dose.
Não utilizar em gestantes antes de 8 semanas de gestação e em mulheres em idade fértil com desejo de gestar.
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Interações medicamentosas
As interações farmacocinéticas entre ARV e outros medicamentos concomitantes são comuns e podem levar ao aumento ou diminuição da exposição aos fármacos, reduzindo a eficácia da TARV ou aumentando sua toxicidade.2,3
O paciente deve ser orientado na primeira avaliação quanto a seus medicamentos de uso mais corriqueiro e os medicamentos de uso contínuo, considerando inclusive produtos fitoterápicos e suplementos dietéticos. Quando for necessário algum ajuste nas medicações de uso contínuo, realizar em coordenação com os demais profissionais assistentes.2,3
Os grupos de medicamentos abaixo devem receber especial atenção quando utilizados em associação à TARV em virtude de interação significativa ou necessidade de ajustes de dose:2 - Contraceptivos hormonais;
- Medicações anti tuberculosas, em especial a rifampicina;
- Estatinas;
- Inibidores da bomba de próton (IBP) e antiácidos;
- Anticonvulsivantes e antidepressivos;
- Medicações para hepatite C;
- Antimaláricos.
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Falha ao tratamento antirretroviral
- A falha virológica é o principal parâmetro para caracterizar falha do tratamento, e é caracterizada por:2,3
- Carga viral plasmática detectável após seis meses do início ou modificação da TARV
- ou
- Detecção da CV nos indivíduos que a mantinham indetectável (<50 cópias/ml), na vigência de tratamento
- Nessas condições, confirmar a carga viral com nova coleta em quatro semanas em relação à prévia, com avaliação da necessidade de troca de TARV ou manutenção da dosagem semestral.2,3
- A principal causa de falha da TARV é a má adesão ao tratamento, em geral causada por fatores psicossociais, uso de substâncias psicoativas, dificuldade de acesso e comorbidades, bem como fatores associados a efeitos adversos e posologia de difícil compreensão. Os níveis séricos reduzidos dos medicamentos em períodos de uso irregular atuam seletivamente na população viral, promovendo a emergência de subpopulações resistentes aos medicamentos. 2,3
- É definido abandono de tratamento quando o paciente fica mais de 100 dias sem a retirada dos antirretrovirais, sendo a adesão insuficiente a tomada de medicamentos com frequência inferior a 80% das doses. Em ambos os casos, deve ser reiniciado o esquema anterior do paciente, solicitar carga viral antes do reinício da TARV e após 8 semanas, além de avaliar a necessidade de solicitação de LT-CD4, a depender da imunossupressão prévia e do tempo desde o abandono. 2,3
- Situações para troca da TARV2,3
- Falha virológica comprovada por dois exames de CV;
- Efeitos adversos graves ou intoleráveis;
- Comorbidades, uso de medicações ou situação que contraindique o esquema em uso.
FATORES QUE FACILITAM A ADESÃO AO TRATAMENTO
FATORES QUE DIFICULTAM A ADESÃO AO TRATAMENTO
Esquemas terapêuticos simplificados, como doses fixas combinadas,
que permitam o uso de diferentes medicamentos em um mesmo
comprimido
Complexidade do esquema terapêutico (diferentes drogas,
quantidade de doses)
Conhecimento e compreensão sobre a enfermidade e o tratamento
Faixa etária do paciente (criança, adolescente e idoso)
Acolhimento e escuta ativa do paciente pela equipe multidisciplinar
Baixa escolaridade
Vínculo com os profissionais de saúde, a equipe e o serviço de saúde
Não aceitação da soropositividade
Capacitação adequada da equipe multidisciplinar
Presença de transtornos mentais, como ansiedade e depressão
Acesso facilitado aos ARV, mediante o funcionamento e localização
adequados da UDM
Efeitos colaterais do medicamento
Educação entre pares, em parceria com Organizações da Sociedade Civil
Relação insatisfatória do usuário com o profissional de saúde e os
serviços prestados
Apoio social
Crenças negativas e informações inadequadas em relação ao
tratamento e à doença
Dificuldade de adequação à rotina diária do tratamento
Abuso de álcool e outras drogas
Dificuldade de acesso ao serviço
Medo de sofrer com a discriminação
Precariedade ou ausência de suporte social/exclusão social
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Profilaxia primária das infecções oportunistas
- Pacientes com sinais e sintomas clínicos ou marcadores laboratoriais indicando imunossupressão avançada devem ser encaminhados ao serviço de referência. No entanto, no papel de coordenadores do cuidado, o início de profilaxias para infecções oportunistas deve ser realizado pelo MFC ainda na APS, objetivando evitar o desenvolvimento dessas infecções.2,3
- O principal parâmetro para a realização de profilaxias é a contagem de LT-CD4, e as indicações estão sumarizadas abaixo:2,3
- Quadro 5. Profilaxia primária de infecções oportunistas de acordo com a contagem de LT-CD4.
FONTE: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Faculdade de Medicina. Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia. TelessaúdeRS (TelessaúdeRS-UFRGS). TeleCondutas: HIV: acompanhamento e tratamento de pessoas vivendo com HIV/AIDS na Atenção Primária à Saúde: versão digital 2021. Porto Alegre: TelessaúdeRS-UFRGS, 10 jul. 2020 [atual. 15 set. 2021]. Disponível em: https://www.ufrgs.br/telessauders/teleconsultoria/0800-644- 6543/#telecondutas-0800. Acesso em 01, nov, 2021.
Referenciamento para atenção especializada
Pessoas com as condições abaixo devem ser acompanhadas em conjunto pela atenção especializada pelas particularidades do tratamento, devendo ser encaminhadas o mais breve possível para o serviço de referência em HIV/Aids:2,3- Imunodeficiência avançada ou moderada e/ou CD4 < 200 céls/mm3 (inclui pacientes com doenças definidoras de aids e doenças oportunistas)
- Neoplasia não definidora de aids com indicação de quimioterapia ou radioterapia;
- Contraindicação ao esquema antirretroviral de primeira linha (por resistência evidenciada em genotipagem, histórico de uso prévio de esquema de segunda ou terceira linha, comorbidades ou interações medicamentosas);
- Falha terapêutica comprovada após trabalhada a adesão;
- Intolerância ao esquema antirretroviral de primeira linha por efeitos adversos, após tentativa de manejo do efeito adverso;
- Coinfecção com vírus da Hepatite C ou B;
- Coinfecção com tuberculose ou indicação de ILTB com rifampicina;
- Suspeita ou diagnóstico de neurossífilis (após avaliação em serviço de emergência, se necessário);
- Pessoa com HIV e comorbidades graves, como doença renal crônica (TFG < 60 ml/min/1,73m2 ou proteinúria) ou cardiomiopatia (insuficiência cardíaca classe III e IV, cardiomiopatia isquêmica, outras cardiomiopatias) ou alterações neurológicas ou psiquiátricas – quadros demenciais, depressão grave, transtorno de humor bipolar, esquizofrenia, outras condições neurológicas ou psiquiátricas incapacitantes ou de difícil manejo medicamentoso por interações com a TARV;
- Gestantes (cuidado compartilhado entre atenção básica e SAE);
- Mulheres em idade fértil com plano de gestar;
- Crianças até 12 anos;
- Preocupação do paciente relativa ao sigilo da doença e local de atendimento na APS (após explicado sobre questões éticas e reforçado o ambiente de segurança da unidade de saúde).
- Em casos de imunossupressão grave comprovada por infecções oportunistas ou outras doenças definidoras de aids, o paciente não necessita aguardar o resultado da contagem de CD4/CV para encaminhamento ao serviço especializado.2,3
- Pacientes em acompanhamento no SAE com as condições abaixo podem receber alta, com orientação de acompanhamento e tratamento exclusivo na Atenção Primária:2,3
- Comorbidades possíveis de serem acompanhadas na APS; e
- 2 cargas virais indetectáveis consecutivas com intervalo de 6 meses; e
- CD4 ≥ 200 céls/mm
Editoria de Medicina de Família e Comunidade
Editor-chefe: Erno Harzheim.
Médico de Família. Doutor em Medicina Preventiva e Saúde Pública pela Universidad de Alicante, Espanha. Pós-Doutor em Epidemiologia pela UFRGS. Professor de Medicina de Família e do Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia da Faculdade de Medicina da UFRGS. Criador do TelessaúdeRS-UFRGS. Foi Secretario Municipal de Saúde de Porto Alegre, 2017-2018. Foi Secretário de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde 2019-2020. É atualmente Gestor de Atenção Primária à Saúde na Salute.
- Referências:
- 1- Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis (DCCI). Relatório de monitoramento clínico do HIV / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis (DCCI) - Brasília : Ministério da Saúde, 2020, p 14. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2020/relatorio-de-monitoramento-clinico-do-hiv-2020
- 2 - Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Manejo da Infecção pelo HIV em Adultos / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. – Brasília : Ministério da Saúde, 2018. Disponível em http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2013/protocolo-clinico-e-diretrizes-terapeuticas-para-manejo-da-infeccao-pelo-hiv-em-adultos
- 3 - UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Faculdade de Medicina. Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia. TelessaúdeRS (TelessaúdeRS-UFRGS). TeleCondutas: HIV: acompanhamento e tratamento de pessoas vivendo com HIV/AIDS na Atenção Primária à Saúde: versão digital 2021. Porto Alegre: TelessaúdeRS-UFRGS, 10 jul. 2020 [atual. 15 set. 2021]. Disponível em: https://www.ufrgs.br/telessauders/teleconsultoria/0800-644- 6543/#telecondutas-0800. Acesso em 01, nov, 2021. https://www.ufrgs.br/telessauders/documentos/telecondutas/telecondutas_hiv.pdf
- 4 - https://www.dynamed.com/evaluation/initial-evaluation-of-the-patient-with-hiv-2 - acesso em 01 de Novembro de 2021.