Calculadoras de risco cardiovascular: para que e qual utilizar
Doença aterosclerótica cardiovascular é o evento final da aterosclerose que ocorre nas artérias de alguns indivíduos. Como grupo, essa é a principal causa de morte no mundo e também no Brasil. O impacto gigantesco que infarto do miocárdio (IAM), acidente vascular cerebral (AVC) e doença arterial periférica tem nas populações é de amplo conhecimento. Os principais fatores de risco para aterosclerose são parte de incontáveis consultas médicas todos os dias e também da cultura geral. O inconsciente coletivo sabe dos males que glicose e colesterol elevados, hipertensão, tabagismo causam para a saúde. Em suma, pessoas expostas a estes (e outros) fatores correm maior risco de desenvolver um evento cardiovascular.
Como veremos, estimar esse risco é muito útil na prática clínica e uma parte fundamental para prevenção de eventos cardíacos. Também ficará claro que existem pontos de divergência e incerteza na literatura, mesmo sendo um assunto extensamente estudado. Neste artigo, vamos revisar juntos três conceitos sobre doença cardiovascular aterosclerótica e estimativa de risco cardiovascular. Ao longo do texto, você também encontrará
links
para as diferentes calculadoras citadas.
O que é evento aterosclerótico e risco cardiovascular?
Evento aterosclerótico cardiovascular (ou, em inglês,
atherosclerotic cardiovascular disease
- ASCVD) é um termo que agrega diversos problemas de saúde que tem em comum serem desencadeados pela aterosclerose. Usualmente, considera-se um evento aterosclerótico:
- Doença arterial coronariana, seja infarto agudo do miocárdio (fatal ou não), seja angina (cardiopatia isquêmica "crônica");
- Doença cerebrovascular, manifestada por acidente vascular cerebral agudo (fatal ou não) ou acidente isquêmico transitório;
- Doença arterial periférica, expressa por claudicação intermitente ou isquemia crítica de membros;
- Aterosclerose aórtica e aneurisma de aorta torácica ou abdominal.
Pessoas com algum (ou vários) destes eventos são considerados de mais alto risco e candidatos a prevenção secundária (de um novo) evento. Por outro lado, pessoas sem eventos prévios estão potencialmente em risco e podem ser candidatos a prevenção primária (de um primeiro evento) - especialmente aqueles indivíduos com risco mais alto, como veremos a seguir.
Ferramentas para reduzir a chance de desenvolver alguma dessas complicações são o controle da pressão arterial, do
colesterol
e de diabetes, além de uso de AAS, entre outros.
Vale destacar que algumas doenças cardiovasculares não fazem parte dessa definição (e frequentemente não são contempladas pelas calculadoras). Por exemplo, insuficiência cardíaca e valvulopatias compartilham de alguns fatores de risco, mas não são consideradas (diretamente) eventos ateroscleróticos.
Por que e para quem calcular?
De forma bastante direta, calcula-se o risco cardiovascular para
definir quais pacientes tem maior chance de se beneficiar do tratamento de fatores de risco
. Como para qualquer medida preventiva em pessoas assintomáticas, há sempre uma relação de risco e benefício para ser considerada. Usualmente, pessoas de maior risco, tendem também a ter maior benefício. De outro lado, a taxa de efeitos adversos não depende do risco de eventos, ou seja é fixa para todos os indivíduos.
Assim, tratando pessoas de baixo risco, estaremos ofertando pouca proteção que provavelmente será anulada pelos efeitos adversos e custos. Por outro lado, selecionando pessoas de risco mais elevado, tende-se a maximizar o benefício e, assim, o risco de efeitos adversos fica proporcionalmente menos significativo (mesmo que numericamente seja o mesmo).
Entrando na questão de prevenção de eventos cardiovasculares, pacientes de baixo risco devem manter hábitos de vida saudáveis e monitoramento, que são medidas com baixa chance de efeitos adversos e recomendáveis para todos os adultos. Por outro lado, uma parte das pessoas de risco intermediário ou alto devem realizar medidas mais intensivas e considerar uso de medicamentos (antihipertensivos, AAS,
estatina
).
O limiar de risco para indicar cada intervenção (por exemplo, estatina) depende de decisões individuais, disponibilidade e custos, efeitos adversos da intervenção, e mesmo características do sistema de saúde. Vale destacar que diferentes diretrizes e países tem recomendações bastante diversas quanto a esses pontos de corte. Assim, uma discussão aprofundada dos limiares para cada uma das intervenções foge do escopo desta postagem.
Usualmente, recomenda-se a realização de avaliação de risco cardiovascular de forma oportunística em adultos (> 20 anos), quando comparecem em consultas de rotina. Essa avaliação deve ser realizada com entrevista, medida de pressão arterial.
A partir dos 40 anos de idade, usualmente se recomenda dosagem de colesterol e glicose e cálculo formal do risco cardiovascular com alguma das calculadoras discutidas abaixo. Para pacientes entre 20 e 40 anos com um ou mais fatores de risco identificados, deve-se ser mais agressivo e individualizar a abordagem. Por exemplo, pacientes com LDL muito elevado (> 190 mg/dL), tem indicação de uso de estatinas independente de outros fatores.
Por fim, uma discussão não deve ser esquecida. Poucos estudos primários (ensaios clínicos randomizados), investigando medidas preventivas de fato incluiu pacientes de acordo com seu escore de risco. A grande maioria fez isso com base em outros fatores (limiar de colesterol, pressão, presença de diabetes).
Ou seja, grande parte das decisões de tratamento geradas a partir dos escores são indiretas, inferências sobre o potencial benefício da intervenção e não uma generalização direta dos resultados dos estudos primários. A referência número 2 desta postagem traz uma discussão mais aprofundada (e muito interessante) sobre este assunto.
Leia mais:HDL baixo: o que fazer?
Calculadoras: qual utilizar?
Existem diversas calculadoras de risco cardiovascular disponíveis na literatura e (na internet). As mais populares possuem também aplicativo para
smartphone
. Invariavelmente, todas foram desenvolvidas a partir de coortes de pacientes seguidos por longo tempo (10-30 anos) e combinam fatores de risco clássicos (idade, pressão arterial, colesterol, diabetes, sexo, entre outros) para realizar a estimativa de risco.
Algumas incorporam também raça e/ou região de origem do paciente, para considerar fatores socioeconômicos e genéticos na estimativa. O resultado de risco pode ser numérico e/ou estratificado (baixo, médio, alto) e os eventos incluídos dentro deste risco tem alguma variação. A grande maioria delas também tem limitações, como por exemplo não incluir fatores de risco relevantes como perda de função renal e ter um horizonte de estimativa limitado (usualmente 10 anos). A seguir. listamos e debatemos as principais calculadoras disponíveis:
- Framigham:trata-se do principal escore de risco já desenvolvido. Apesar de antigo e geograficamente restrito (uma cidade de um estado dos EUA), diversos fatores de risco cardiovascular foram identificados graças a sua coorte de origem. Por longos anos, foi o único escore de risco disponível e o mais utilizado. Em suma, atualmente, tem valor histórico e seus dados estão incorporados em outras calculadoras de risco. Ainda é a calculadora recomendada pelas sociedades brasileira de cardiologia e endocrinologia; entretanto, como veremos a seguir, existem limitações para essa decisão.
- ASCVD Risk Estimator Plus:é a principal calculadora utilizada nos EUA. Foi construída e é recomendada pelas sociedades de cardiologia do país e está presente em boa parte da literatura internacional. Tem como vantagem também estimar a redução de risco com diferentes intervenções (controle de tabaco, controle pressórico, uso de estatinas…). Foi validado em diversas subpopulações dos EUA, de diferentes etnias. Uma nova calculadora para a população dos EUA foi lançada recentemente (PREVENT) com dados mais atualizados e, potencialmente, com melhor capacidade preditiva.
- Europa: a sociedade de cardiologia da Europa recomenda utilização de duas calculadoras, uma para pessoas entre 40 e 69 anos e outra a partir dos 70 anos. Além desta divisão por faixa etária, tem como vantagem detalhar o risco por região, o que aumenta a precisão dos resultados. Assim como a calculadora dos EUA, a generalização para outras populações é limitada.
- CalculadoraHEARTSda Organização Mundial da Saúde (OMS) / Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS):a OMS tem uma iniciativa mundial de prevenção de doença cardiovascular, focada na atenção primária e alinhada com oGlobal Burden of Disease. Como parte desta iniciativa foi desenvolvida uma calculadora de risco cardiovascular com base em dados de todas as regiões do mundo. Recentemente, esses dados foram transformados em aplicativo ewebsitepara facilitar a utilização. Há também no mesmo sistema recomendações de como realizar medidas adequadas de pressão arterial e recomendações de tratamento de hipertensão e de uso de estatina e AAS para prevenção primária de eventos cardiovasculares. Porém, esse protocolo de tratamento precisa ser adaptadas e endossado pelos ministérios da saúde dos países, o que ainda não ocorreu no Brasil.
O problema central do uso de calculadoras de risco é a dúvida se elas se aplicam para outras populações. Apenas como exemplo, a calculadora de Framingham foi construída com dados de uma população do interior do nordeste dos EUA, com suas particularidades genéticas e de hábitos de vida. Existem incontáveis diferenças desta população com a população do Brasil.
Ou seja, é informação central para utilizarmos essas calculadoras saber se a estimativa de risco que ela dá é acurada na pessoa que estamos atendendo. Felizmente, há poucos meses resultados preliminares de dados prospectivos brasileiros foram publicados. A calculadora
HEARTS da OMS/OPAS é a mais acurada para população brasileira
, com menor taxa de superestimativa de risco do que o escore de Framingham ou calculadoras das sociedades norte-americana e europeia de cardiologia. Assim, salvo que surjam novos dados, provavelmente esta será a calculadora utilizada no Brasil nos próximos anos.
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