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Cognição social: da teoria à aplicação na prática do psicólogo

A cognição social é um constructo multidimensional que abrange os processos cognitivos envolvidos na interpretação e resposta a informações sociais (Corbera et al., 2025). Embora não haja uma definição única e universal (Quesque et al., 2024), ela é geralmente descrita como o conjunto de operações mentais que permitem perceber, interpretar e reagir adequadamente a sinais sociais, como intenções, emoções e comportamentos de outras pessoas (Cardoso & de Mello, 2022). O Social Cognition Psychometric Evaluation (SCOPE) Study propôs quatro domínios principais: processamento de emoções, viés de atribuição, percepção social e teoria da mente (ToM) (Cardoso & de Mello, 2022). Outros modelos incluem componentes como empatia, atenção social, reconhecimento de agentes e aprendizagem social (Happé et al., 2017).

Do ponto de vista neurobiológico, a cognição social envolve áreas como o córtex orbitofrontal, o córtex pré-frontal, a região anterior do córtex cingulado e a amígdala (Figueiredo, 2023). Mais recentemente, o papel da Default Mode Network (DMN) tem sido destacado, devido à sua participação em processos de mentalização e diferenciação entre o self e o outro (Schurz et al., 2020; Menon, 2023).

É fundamental diferenciar cognição social de habilidades sociais. A primeira refere-se aos processos cognitivos subjacentes, enquanto as habilidades sociais dizem respeito ao repertório comportamental emitido em interações (Figueiredo, 2023). Além disso, desempenho em tarefas de cognição social não equivale à competência social, que envolve a adaptação a múltiplos contextos e depende de outras funções cognitivas, como linguagem e funções executivas (Schurz et al., 2021).

Componentes da cognição social

O processamento de emoções é um dos principais domínios, envolvendo o reconhecimento e interpretação de emoções a partir de expressões faciais, linguagem corporal e prosódia (Cardoso & de Mello, 2022). O viés de atribuição refere-se ao modo como os indivíduos explicam as causas de eventos sociais, influenciando suas reações emocionais e

comportamentais (Cardoso & de Mello, 2022). A percepção social envolve a interpretação de estados mentais de terceiros com base em pistas contextuais e comportamentais.

A Teoria da Mente (ToM) compreende a capacidade de inferir pensamentos, crenças e emoções dos outros (Souza & Velludo, 2016). Seu desenvolvimento é gradual, com diferentes níveis de complexidade (Cardoso & de Mello, 2022). Estudos apontam que fatores como interação com os pares e o ambiente escolar são mais determinantes para o desenvolvimento da ToM do que variáveis socioeconômicas (Dias et al., 2021; Lecce et al., 2024; Devine & Apperly, 2021).

A empatia é outro elemento-chave, subdividida em cognitiva (compreensão das emoções alheias) e afetiva (compartilhamento emocional) (Cardoso & de Mello, 2022), com impacto direto no comportamento pró-social.

Cognição social em diferentes condições

Segundo os critérios diagnósticos do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-5) e da Classificação Internacional de Doenças – 11ª edição (CID-11), tanto o Transtorno do Espectro Autista (TEA) quanto a Esquizofrenia envolvem comprometimentos significativos na interação social, com desempenho inferior ao de indivíduos neurotípicos em tarefas de cognição social (World Health Organization-WHO, 2019; APA, 2022; Negrão et al., 2023; Ozbek et al., 2023). Na esquizofrenia, embora os déficits em cognição social não sejam um critério diagnóstico formal, a CID-11 reconhece que dificuldades cognitivas, incluindo o funcionamento social, são características clínicas frequentes (WHO, 2019).

No TEA, as pesquisas apontam déficits marcantes em cognição social, considerados uma das características nucleares do transtorno (APA, 2022; Bölte, 2025). Pessoas autistas tendem a apresentar maiores dificuldades nesse domínio do que indivíduos com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), por exemplo (Bölte, 2025).

No entanto, estudos recentes indicam que dificuldades no reconhecimento de emoções, tradicionalmente associadas ao autismo, podem estar mais ligadas à alexitimia — condição caracterizada por dificuldades em identificar e expressar emoções, com prevalência muito maior em pessoas autistas (cerca de 49,93%) do que na população neurotípica (4,89%) (Cook et al., 2013; Bird & Cook, 2013; Keating et al., 2022). Pesquisas mostram que traços alexitímicos, e não autistas, são os melhores preditores das dificuldades no reconhecimento de emoções faciais (Cook et al., 2013). A "hipótese da alexitimia" reforça que muitas dificuldades emocionais em autistas podem ser atribuídas à comorbidade com essa condição (Bird & Cook, 2013). Traços autistas relacionam-se a dificuldades específicas, como identificar expressões de raiva, enquanto traços alexitímicos influenciam a intensidade das avaliações emocionais (Keating et al., 2022).

Ainda, por ser um processo bidirecional e dinâmico, influenciado pelas características de ambos os interlocutores, o modelo do Problema da Dupla Empatia (Double Empathy Problem - DEP), proposto por Milton (2012), destaca que as dificuldades de interação entre pessoas autistas e neurotípicas decorrem de uma incompatibilidade mútua nos estilos de processamento social, e não de um déficit exclusivo da pessoa autista (Davis & Crompton, 2021; Milton et al., 2022; Mitchell et al., 2021; Livingston et al., 2025).

Na esquizofrenia, há evidências robustas de prejuízos nos domínios de processamento emocional, mentalização e percepção social (Green et al., 2019). Esses déficits também ocorrem em quadros relacionados, como o Transtorno de Personalidade Esquizotípica (TPE), com desempenho inferior ao de pares sem diagnóstico, mas superior ao de pessoas com esquizofrenia (Goldstein et al., 2025). Fatores como o estresse social têm sido apontados como agravantes, impactando a qualidade de vida e o prognóstico (Kemp et al., 2025).

Outras condições, como transtornos relacionados ao uso de substâncias (Petucco & de Mello, 2025), esclerose múltipla (Cotter et al., 2016) e doenças neurodegenerativas (Setién-Suero et al., 2022) também podem apresentar déficits em cognição social.

Aplicações na prática clínica

Diversas intervenções têm sido desenvolvidas para melhorar habilidades sociais e cognição social em condições como esquizofrenia, TEA e ansiedade social. O Social Skills Training (SST) é uma abordagem estruturada que ensina habilidades verbais, não verbais e de gerenciamento de interações, sendo frequentemente combinado com Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) e farmacoterapia, especialmente na ansiedade social.

Meta-análises recentes apontam que programas sociocognitivos estruturados têm impacto positivo especialmente sobre a Teoria da Mente (ToM), particularmente em crianças pequenas e idosos, embora ainda sejam necessários mais estudos sobre a generalização para outras competências, como o reconhecimento emocional ou a tomada de perspectiva (Roheger et al., 2022). O sucesso dessas intervenções depende de sua adaptação ao diagnóstico, ao estágio de desenvolvimento, às funções cognitivas (como linguagem, atenção e memória de trabalho) e às preferências individuais.

Achados ainda sugerem que intervenções para ansiedade social, tanto em populações neurotípicas quanto em indivíduos com TEA, podem se beneficiar da inclusão de componentes voltados ao desenvolvimento de aspectos específicos da ToM (Pearcey et al., 2021). Além disso, diferentes estratégias podem ser empregadas para estimular habilidades de ToM, como atividades de conversação, uso de histórias, desenhos animados para treino de reconhecimento de emoções e intervenções precoces voltadas à atenção compartilhada em casos de TEA (Mecca, 2024).

Diversos programas de treinamento cognitivo social já estão disponíveis para implementação clínica. No entanto, para garantir melhorias significativas no funcionamento cotidiano, é fundamental que essas intervenções incluam sessões de transição, com foco na aplicação prática das habilidades adquiridas. O acompanhamento clínico deve incluir a reavaliação periódica da cognição social, com ajustes nas estratégias e investigação de causas secundárias caso não haja progresso (Corbera et al., 2025).

Considerações práticas - Avaliação

No Brasil, instrumentos como o Hinting Task e o Facial Emotion Recognition Test (FERT 100) já foram validados para uso em pacientes com esquizofrenia (Cruz et al., 2022). Também se destacam instrumentos como o Strange Stories, que avalia a inferência de estados mentais a partir de narrativas (Velloso et al., 2013), e o próprio Hinting Task (Sanvicente-Vieira et al., 2012). O Faux Pas Test, também validado no Brasil, avalia a capacidade de identificar situações de “gafe” ou deslize social, exigindo a compreensão de normas sociais e de estados mentais de terceiros (Watanabe et al., 2021). No contexto infantil, além do clássico Sally–Anne, usado para avaliar a Teoria da Mente (ToM) em crianças, com desempenho geralmente inferior em participantes com TEA, destaca-se o Teste de Teoria da Mente para Crianças (TMEC), desenvolvido para pré-escolares brasileiros (4 a 6 anos), avalia habilidades como a atribuição de desejos e crenças, inferências de segunda ordem, detecção de mentiras, fingimento, ironia e reconhecimento de gafes sociais (Mecca et al., 2018).

Considerações finais

A cognição social é central para o funcionamento social e emocional ao longo do desenvolvimento. Sua compreensão e avaliação adequadas são fundamentais na prática clínica em psicologia, contribuindo para diagnósticos mais precisos e intervenções personalizadas. A incorporação de estratégias baseadas em evidências, aliada à escolha de instrumentos apropriados, potencializa os ganhos terapêuticos e promove a inclusão social de indivíduos com diferentes perfis de funcionamento.