Autocompaixão e ansiedade: como utilizar essa prática na psicoterapia de transtornos ansiosos

A autocompaixão tem se consolidado como um recurso clínico de relevância crescente no manejo dos transtornos ansiosos. Ansiedade é um estado emocional de antecipação de ameaça futura, acompanhado de apreensão, hipervigilância e respostas cognitivas (preocupação, avaliação de risco), fisiológicas (taquicardia, tensão muscular, hiperexcitação autonômica) e comportamentais (evitação, busca de segurança). Quando persistentes e desproporcionais, esses sintomas configuram transtornos ansiosos, com impacto significativo na vida do paciente (American Psychiatric Association, 2025).
Fundamentos da autocompaixão e sua relevância no tratamento da ansiedade
Embora a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) permaneça como uma das intervenções mais eficazes, parte dos pacientes apresenta dificuldades de adesão ou abandono precoce devido insatisfação com o tratamento ou desejo de um tratamento alternativo (Bentley et al., 2021). Em muitos casos de ansiedade clínica, o núcleo de sofrimento envolve vergonha, autocrítica excessiva e dificuldade de acolher a própria experiência interna, fatores que dificultam o engajamento em técnicas centrais como a exposição, um dos principais componentes do tratamento na TCC. É nesse contexto que a autocompaixão surge como estratégia clínica, contribuindo para regulação emocional e fortalecimento do vínculo.
A autocompaixão é uma postura de gentileza e compreensão diante do sofrimento humano, que envolve três dimensões:
mindfulness
, senso de humanidade compartilhada e autogentileza (Neff, 2023). Esses elementos contrastam diretamente com estilos cognitivos e emocionais caracterizados por fusão com pensamentos negativos, isolamento e autocrítica. A regulação emocional depende do equilíbrio entre três sistemas motivacionais (Gilbert, 2014): ameaça, busca de recompensas e cuidado. Nos transtornos ansiosos, predomina o sistema de ameaça, manifestado por hipervigilância fisiológica e mental, diálogo interno punitivo e padrões de evitação.
As práticas compassivas têm como objetivo fortalecer o sistema de cuidado, favorecendo estados corporais e cognitivos de segurança e reduzindo a dominância da ameaça. O sistema de cuidado pode ser estimulado tanto por práticas corporais quanto por processos cognitivos imagéticos. Ao treinar o corpo em posturas abertas, respirações lentas e gestos de calor, como mãos sobre o peito, o paciente envia sinais fisiológicos de afeto e segurança que modulam diretamente o sistema nervoso autônomo, reduzindo a excitação associada à ameaça.
Em paralelo, o uso de imagens de figuras compassivas com falas amorosas, acolhedoras e validantes para com o self introduzem novas representações mentais que competem com a autocrítica e o medo. Essa combinação de ajustes fisiológicos e cognitivos cria uma experiência emocional de segurança, que atua como contrapeso regulador. Assim, práticas compassivas não anulam a resposta de ameaça, mas expandem a capacidade do paciente permanecer com ela em um estado de maior equilíbrio, possibilitando aprendizado emocional mais flexível e menos punitivo.
Intervenções práticas de autocompaixão na psicoterapia
Na prática clínica, a autocompaixão pode ser trabalhada de forma estruturada, em programas que incluem psicoeducação inicial, exercícios experienciais em sessão e tarefas para casa. A psicoeducação ajuda o paciente a compreender a diferença entre autocompaixão e autoindulgência, desfazendo a crença de que ser compassivo consigo mesmo equivale a “ser fraco” ou “abrir mão de responsabilidades”. Esse esclarecimento inicial é essencial, sobretudo em pacientes que tendem a confundir cuidado interno com permissividade (Neff, 2023). Uma vez estabelecida essa base, o terapeuta pode introduzir exercícios experienciais.
A imagética compassiva é uma das técnicas mais utilizadas. O paciente é convidado a criar e evocar a imagem de uma figura compassiva — real, imaginária ou simbólica — que reúne atributos de sabedoria, força e aceitação. Essa figura se torna uma fonte interna de apoio, usada para enfrentar situações ansiogênicas (Gilbert, 2014). Outra prática comum é a escrita compassiva, na qual o paciente reescreve narrativas de experiências dolorosas sob a perspectiva de um “eu compassivo”, validando emoções e elaborando respostas mais equilibradas (Neff, 2023). O mindfulness compassivo, por sua vez, consiste em práticas breves de respiração e atenção plena orientadas para a sensação de segurança, permitindo que o paciente desenvolva maior tolerância às respostas fisiológicas da ansiedade (Neff, 2023).
Essas intervenções não substituem técnicas clássicas da TCC, como a exposição ou a reestruturação cognitiva, mas funcionam como recursos regulatórios que ampliam a eficácia do tratamento e abre novas possibilidades sobretudo para pacientes onde a autocrítica é uma importante fator mantenedor da ansiedade (Gilbert, 2014). A autocompaixão pode ser aplicada antes da exposição, para preparar o paciente emocionalmente; durante a exposição, como estratégia de encorajamento; e após a tarefa, como forma de validar o esforço e prevenir recaídas. Dessa forma, ela contribui para que o paciente se engaje mais plenamente no processo terapêutico e desenvolva uma relação menos punitiva com seu próprio medo.
Cuidados e desafios na aplicação clínica
Um desafio importante é o medo da compaixão, fenômeno relativamente comum em pacientes com transtornos ansiosos, especialmente aqueles com histórico de invalidação ou crítica parental (Matos et al., 2023). Esses indivíduos podem reagir com desconfiança, desconforto ou até angústia diante de práticas compassivas, interpretando-as como ameaçadoras. Clinicamente, recomenda-se uma introdução gradual, com micropráticas de regulação corporal — como gestos simples de cuidado, respiração compassiva e foco em sensações físicas de calor e relaxamento — antes de se avançar para exercícios imagéticos mais complexos (Matos et al., 2023). A progressão deve ser ajustada ao ritmo emocional de cada paciente, respeitando limites e evitando sobrecarga.
Apesar da consolidação crescente da literatura, é necessário reconhecer limitações. Meta-análises recentes apontam efeitos positivos consistentes da autocompaixão sobre sintomas de ansiedade, estresse e autocrítica, mas destacam que a magnitude dos resultados varia de pequena a moderada (Brown & Ashcroft, 2025). Além disso, muitos estudos apresentam heterogeneidade metodológica, amostras reduzidas ou ausência de seguimento de longo prazo. Isso significa que a autocompaixão deve ser compreendida como ferramenta complementar e não substitutiva, das terapias baseadas em evidências já consolidadas como a TCC. O vínculo terapêutico permanece sendo o principal mediador da mudança (Norcross & Lambert, 2018; Wampold & Imel, 2015), e a introdução de práticas compassivas deve ocorrer dentro de um contexto seguro e colaborativo.
Do ponto de vista das implicações clínicas, a integração da autocompaixão ao tratamento dos transtornos de ansiedade oferece ao psicoterapeuta uma via para lidar com autocrítica e vergonha, fatores frequentemente negligenciados, mas centrais para o sofrimento desses pacientes. Ela também promove maior resiliência emocional, ampliando a capacidade de enfrentar situações ansiogênicas sem recorrer a estratégias evitativas (Neff, 2023). O terapeuta atua não apenas como instrutor de técnicas, mas como facilitador de um processo de reconexão emocional, no qual o paciente aprende a cultivar uma postura interna mais amorosa e encorajadora. Essa mudança de atitude frente ao sofrimento próprio tem implicações profundas, não apenas na redução de sintomas, mas também na qualidade de vida e no desenvolvimento de habilidades de enfrentamento para desafios futuros.
Além de aplicações individuais, há crescente interesse na utilização da autocompaixão em formatos grupais e online, que permitem maior alcance e redução de custos. Estudos recentes têm indicado que esses formatos mantêm boa eficácia e aceitabilidade, sugerindo que programas de autocompaixão podem ser integrados à rotina de serviços de saúde mental em larga escala (Brown & Aschcroft, 2025). Essa perspectiva dialoga com a necessidade contemporânea de oferecer intervenções acessíveis e sustentáveis, sem abrir mão da base científica.
Considerações finais
Por fim, cabe destacar que a autocompaixão não deve ser vista como prática contemplativa isolada, restrita a contextos de bem-estar. Na clínica, seu valor reside na integração com protocolos estruturados, no suporte ao engajamento em tarefas desafiadoras para os pacientes e na regulação de estados emocionais que frequentemente comprometem a adesão ao tratamento. Para que isso se concretize, é fundamental que psicólogos clínicos busquem formação continuada e se mantenham atualizados em relação às evidências mais recentes, garantindo que o uso da autocompaixão se dê de forma técnica, ética e fundamentada.
Conclui-se que a autocompaixão representa uma estratégia clínica relevante e em expansão no tratamento dos transtornos de ansiedade. Ao oferecer um caminho para reduzir a autocrítica, aumentar a tolerância ao medo e fortalecer a resiliência emocional, ela amplia a eficácia das terapias tradicionais e contribui para um cuidado psicológico mais humano, ético e sustentável.
Autores
Mário Glória Filho:
Psicólogo pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub); Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Católica de Brasília (UCB); Mestre em Psicologia Social pela Universidade de Brasília (UnB); Especialista em Terapia Cognitivo Comportamental pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS); Atende adultos em consultório particular e é colaborador do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo Comportamental (LAPICC) da Universidade de São Paulo (USP – Ribeirão Preto).
Eloha Flória Lima Santos:
Psicóloga pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da FFCLRP-USP. Membro do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental (LaPICC). Especialização em Psicologia da Saúde no Contexto Hospitalar com ênfase em Psicologia Pediátrica pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP-RP (HCFMRP-USP). Formação em Terapia Cognitivo-Comportamental e TCC para obesidade e emagrecimento.
Carmem Beatriz Neufeld:
Professora Titular do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - FFCLRP da Universidade de São Paulo – USP e orientadora dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia e em Psicobiologia do DP-FFCLRP-USP. Livre docente pela FFCLRP-USP. Pós-doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Doutora e Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Formação em Terapia dos Esquemas pelo LaPICC-USP. Formação em Ensino e Supervisão pelo Beck Institute. Terapeuta Certificada em TCC pela Federação Brasileira de Terapias Cognitivas – FBTC. Psicóloga pela Universidade da Região da Campanha - URCAMP. Fundadora e coordenadora do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental – LaPICC-USP. Bolsista Produtividade do CNPq. Presidente Fundadora da Associação de Intervenções Psicossociais para Grupos - APSIG. Past-President da Federação Latino-Americana de Psicoterapias Cognitivas e Comportamentais - ALAPCCO. Representante do Brasil na Sociedade Interamericana de Psicologia - SIP. Ex-Presidente Fundadora da Associação de Ensino e Supervisão Baseados em Evidências – AESBE. Ex-Presidente da Federação Brasileira de Terapias Cognitivas - FBTC.