O diabetes mellitus tipo 2 (DM2) é uma doença crônica altamente prevalente caracterizada por graus variáveis de resistência e deficiência insulínica, resultando em hiperglicemia e dano macro e microvascular. É causa líder de mortalidade, morbidade e incapacidade.
O tratamento deve focar na definição de alvos terapêuticos individualizados e na busca pelo melhor controle de doença possível, considerando os riscos e benefícios de cada modalidade de tratamento, processo a ser conduzido com empatia e respeito às demandas do paciente.
Além do manejo não-farmacológico e farmacológico direcionado ao controle glicêmico, a consulta do médico de família deve focar na atenção à presença e à prevenção de complicações, realizando ações de prevenção secundária e terciária suportadas por evidências.
Neste artigo, serão revisadas as indicações de rastreamento e prevenção de complicações e as melhores estratégias de condução do cuidado médico geral dos pacientes diabéticos.
Definição do alvo terapêutico individualizado
Ainda que a hemoglobina glicada (HbA1c) tenha valores bem definidos para o diagnóstico de DM2, o valor a ser atingido como expressão de adequação do tratamento e de bom controle de doença é variável de acordo com as características de cada paciente.
Pacientes
mais jovens e / ou com maior expectativa de vida
exigem um controle
mais rigoroso
de doença, com
alvos de HbA1c mais baixos, entre 6,5 e 7%
Pacientes
idosos e / ou com menor expectativa de vida
necessitam de um controle
menos rigoroso
da doença, com
alvos de HbA1c mais altos, entre 7 e 8%
Avaliação da presença de complicações
Pacientes com doença controlada devem consultar duas vezes ao ano para avaliação médica completa (ver quadro 1)
Pressão arterial e inspeção visual dos pés deve ser feita em todas as consultas. A avaliação mais detalhada dos pés deve ser feita uma vez ao ano, preferencialmente em consulta de enfermagem com interconsulta médica se necessário.
A avaliação da hemoglobina glicada é realizada: a cada 3 meses para pacientes fora do alvo terapêutico, a cada 6 meses para pacientes no alvo terapêutico.
Quadro 1: Monitoramento de pacientes diabéticos: frequência de avaliações, solicitação de exames e vacinas recomendadas.
Em pacientes diabéticos, a maior carga de morbidade está relacionada às complicações. As principais complicações são:
Complicações macrovasculares (doença cardiovascular, Acidente Vascular Cerebral (AVC), doença arterial periférica);
Complicações microvasculares (retinopatia, nefropatia, neuropatia);
Outras complicações (metabólicas, câncer, infecções, dermatológicas, musculoesqueléticas).
As complicações podem estar presentes no diagnóstico, principalmente se a apresentação for insidiosa com demora no estabelecimento de doença.
O desenvolvimento das complicações do diabetes pode ser lentificado pelo manejo da hiperglicemia, hipertensão e dislipidemia, bem como sua progressão, quando presentes.
Avaliação, cuidados e manejo para prevenção das principais complicações macro e microvasculares
Complicações macrovasculares
A prevenção de morbidade cardiovascular é uma prioridade absoluta no cuidado de pacientes com diabetes tipo 2
Aterosclerose - doença cardiovascular e AVC
Pacientes diabéticos estão em risco aumentado de morte por doença aterosclerótica cardiovascular - e expectativa de vida 6 a 8 anos inferior à população geral
Rastreamento: Medida anual dos fatores de risco: pressão arterial, perfil lipídico (para pacientes que não estão em uso de estatina), história de tabagismo.
Avaliação cardiovascular se alto risco de doença cardiovascular, como pacientes com dor torácica atípica, doença arterial periférica ou carotídea ou anormalidades no eletrocardiograma como ondas Q.
Redução multifatorial do risco:
Diagnóstico e controle da hipertensão
:
Rastreamento: Medida da pressão em todas as consultas
Considerar tratamento para pacientes com pressão arterial sistólica superior a 140 mmHg e pressão arterial diastólica superior a 90 mmHg
Tratamento precoce e efetivo
é importante para:
Prevenir doença cardiovascular
Minimizar taxa de progressão para nefropatia e retinopatia diabética
Se clinicamente viável, optar pelo uso de
Inibidor da ECA (enzima conversora de angiotensina), como enalapril
Bloqueador do receptor de angiotensina (BRA), como losartana
Manejo não-farmacológico:
Perda de peso se sobrepeso ou obesidade
Uso de dieta do tipo mediterrânea ou dieta DASH (do inglês ‘Abordagem Dietética para controlar a Hipertensão) - ver Capítulo sobre Manejo não-farmacológico do Diabetes Melito tipo 2 no ambulatório;
Redução no consumo de gordura saturada, gordura trans e colesterol
Aumento no consumo de ômega 3, fibras e fitoesteróis
Prevenção primária (pacientes sem doença arterial coronariana sintomática ou evento cardiovascular) de eventos cardiovasculares e de morte:
Estatina em baixa a moderada dose (20 a 40 mg de sinvastatina ou equivalentes) se presentes os três critérios:
(1) Idade entre 40 e 75 anos
(2) 1 ou mais fatores de risco cardiovascular (diabetes, dislipidemia, hipertensão ou tabagismo)
Risco calculado de evento cardiovascular em 10 anos superior a 10%
Discutir individualmente o benefício em pacientes com:
Risco cardiovascular calculado entre 7,5% e 10%
Estatina em dose moderada (40 mg de sinvastatina) para todos os pacientes com evento cardio ou cerebrovascular prévios, independente do nível de colesterol.
Cessação do tabagismo potencialmente mais benéfica que outras estratégias de redução do risco cardiovascular
Oferecer tratamento para cessação do tabagismo para todos os pacientes tabagistas.
Apresentação de 100 mg ou apresentações com dose reduzida (81 ou 88 mg) e menores efeitos gastrointestinais
Prevenção primária: pacientes com risco calculado de evento cardiovascular em 10 anos superior a 10%.
Prevenção secundária (infarto do miocárdio agudo ou prévio, AVC agudo ou prévio, angina instável ou doença arterial periférica): uso de aspirina para
todos os pacientes
, exceto se contraindicações (alergias, sangramento prévio).
Uso de medicações para tratamento do diabetes
como agonistas dos receptores GLP-1 e inibidores da SGLT2 (ver artigo sobre Tratamento farmacológico do diabetes melito tipo 2 no ambulatório)
Complicações microvasculares
Condições associadas: risco aumentado de perda de visão, por problemas de refração, catarata, glaucoma e retinopatia.
Avaliação de fundo de olho:
Frequência das avaliações:
Avaliação inicial: 5 anos após o diagnóstico para pacientes com mais de 10 anos de idade.
Acompanhamento: Bienal se retinopatia ausente, anual (ou mais frequente) se presente.
Avaliação inicial: Ao diagnóstico
Acompanhamento: Bienal se retinopatia ausente, anual (ou mais frequente) se presente.
Gestante com diabetes prévio:
Avaliação inicial: Anterior à concepção e durante o primeiro trimestre. Orientar sobre a possibilidade de piora da retinopatia.
Acompanhamento: Consultas frequentes (trimestrais) durante a gestação e ao longo do primeiro ano pós-parto.
Manejo para redução do risco: Controle glicêmico e de pressão arterial.
Até 50% dos pacientes com neuropatia periférica são assintomáticos - risco de dano e lesão se não realizada avaliação detalhada.
O rastreamento sistemático para alterações neuropáticas e vasculares nas extremidades inferiores e a inspeção dos pés pode reduzir a morbidade por problemas nos pés em pacientes diabéticos.
Autonômica, com taquicardia em repouso, hipotensão postural, gastroparesia, diarreia ou constipação. disfunção erétil e disfunção sexual masculina e feminina, alteração na sudorese (anidrose e hipohidrose)
Nervo craniano ou periférico: Ulnar, mediano, 3º par craniano
Pode acometer simultaneamente mais de um nervo periférico: mononeurite múltipla
Radiculopatia ou polirradiculopatia
Envolvendo plexos, principalmente lombossacro e torácico
Avaliação do pé diabético
Questionar história de ulceração, amputação, ‘pé de Charcot’, angioplastia ou cirurgia vascular prévia, tabagismo, outros danos microvasculares (retinopatia, doença renal) e presença de sintomas de neuropatia (queimação, dor, parestesia) ou de doença vascular (cansaço nas pernas)
Inspecionar os pés a cada consulta de rotina para avaliar problemas nas unhas, uso de calçados apertados com barotrauma, intertrigo micótico e calos, que podem resultar em lesões mais graves
Realizar avaliação detalhada anualmente, incluindo:
Avaliação de fatores de risco preditores de úlceras ou amputação, como ulceração prévia, neuropatia, deformidade e doença vascular
Avaliação dos pulsos periféricos
Teste de perda de sensação protetiva
Realizar 2 testes diferentes:
Primeiro teste: Monofilamento ou teste de toque nos dedos dos pés (ipswich touch test):
Região plantar, falange distal do hálux e 1ª, 3ª e 5ª cabeças de metatarsos.
Teste positivo (com perda de sensibilidade protetiva) se redução ou ausência de percepção do toque em um ou mais pontos
Teste de toque nos dedos dos pés / Ipswich touch test:
Região plantar, toque leve com dedo indicador em ponta de 1º, 3º e 5º dedos de ambos os pés
Toques não devem seguir sequência lógica
Teste positivo (com perda de sensibilidade protetiva) se redução ou ausência de percepção do toque em dois ou mais pontos
Segundo teste: Sensibilidade vibratória / reflexo aquileu / sensibilidade dolorosa - teste da ponta romba ou ponta fina (pinprick test) - escolher um:
Sensibilidade vibratória:
Paciente com olhos fechados, encostar diapasão 3 vezes no lado dorsal da falange distal do hálux e pedir para paciente sinalizar quando parar de sentir vibração
Em um dos toques, encostar diapasão sem vibrar
Perda de sensibilidade se paciente deixar de sentir vibração enquanto diapasão ainda vibrando em um dos testes
Paciente sentado na maca, com os pés pendentes.
Golpe suave com martelo de reflexos no tendão aquileu bilateral
Teste alterado se reflexo ausente ou diminuído
Sensibilidade dolorosa - Teste da ponta romba ou ponta fina (pinprick test):
Aplicar a ponta romba da agulha (local de inserção na seringa) e a ponta fina em local do corpo do paciente como mão ou braço para que identifique a diferença dos estímulos)
Aplicar proximal à unha do pé na superfície dorsal do hálux, com pressão suficiente para deformar a pele.
Aplicar nos dois hálux, intercalando a ponta romba e a ponta fina
A incapacidade de perceber o toque e diferenciar as superfícies em qualquer momento do teste é considerado resultado alterado.
Pacientes com teste de sensibilidade alterado ou com calosidades e outras deformidades devem ser acompanhados por profissional com experiência em pé diabético / equipe de enfermagem especializada em curativos.
Complicação do diabetes em 20 a 40% dos pacientes, pode progredir para doença renal crônica
Fatores de risco: Tabagismo, tempo de diabetes, controle glicêmico parcial, hipertensão, proteinúria, dislipidemia e idade avançada
Medida da relação albumina/creatinina em amostra urinária
Frequência: anual ou mais frequente, quando alterado.
Se Diabetes tipo 1: 5 anos após o diagnóstico
Se Diabetes tipo 2: ao diagnóstico
Repetir exames alterados 2 a 3 vezes em período de 3 a 6 meses pela taxa de falso-positivos - febre, atividade física, insuficiência cardíaca e mau controle glicêmico podem causar elevações transitórias.
Relação albumina-creatinina amostra urina entre 30 e 300 mg/g: albuminúria moderada (previamente denominada microalbuminúria)
Relação albumina-creatinina amostra urina acima de 300 mg/g: albuminúria severa (previamente denominada macroalbuminúria)
Diagnóstico de nefropatia diabética se:
Retinopatia diabética associada a microalbuminúria
Investigar doença cardiovascular associada em pacientes com nefropatia
Otimizar controle glicêmico
Ofertar Insulina, principalmente em pacientes com doença renal crônica moderada a avançada
Se possível, prescrever inibidores da SGLT2 para pacientes com relação albumina-creatinina na urina superior a 300mg/g
Otimizar controle de pressão arterial
Usar inibidor da ECA ou bloqueador do receptor da angiotensina se ausência de complicações se:
Relação albumina-creatinina na urina > 300mg/g e taxa de filtração glomerular < 60 mL/minuto/1,73m² (doença renal crônica estágio 3 e 4)
Doença renal crônica estágios 1 a 4 (lesão renal com TFG normal ou taxa de filtração glomerular < 90 mL/minuto/1,73m²), mesmo na ausência de albuminúria.
Usar em combinação com diurético
Considerar inibidor da ECA ou bloqueador do receptor da angiotensina se ausência de complicações se:
Relação albumina-creatinina na urina 30-299 mg/g
Mulheres com doença renal crônica prévia à gestação - suspender se atraso menstrual ou gestação diagnosticada.
Medidas preventivas em pacientes normotensos:
Não prescrever inibidor da ECA ou bloqueador do receptor da angiotensina se relação albumina-creatinina na urina < 30 mg/g e taxa de filtração glomerular normal
Considerar prescrição se relação albumina-creatinina na urina > 30 mg/g e fatores de risco para nefropatia diabética
relacionada a piora da função cognitiva e risco de quedas
Prevenção com definição de alvo glicêmico adequado para idade e comorbidades, revisão frequente do esquema terapêutico
Aumento do risco de câncer de fígado, pâncreas, endométrio, colon e reto, mama e bexiga
Realizar rastreamento conforme faixa etária para cancer de colon e mama
Pele e tecidos moles: Foliculite, abscessos, infecções nos pés, fasciite necrotizante e gangrena de Fournier
Respiratórias: Pneumonia por streptococcus pneumoniae, influenza, tuberculose
Lesões Dermatológicas: Dermopatia diabética: máculas atróficas e hiperpigmentadas na face anterior das canelas
Redução na mobilidade articular
Lesões ósseas, incluindo risco aumentado de fraturas, principalmente quadril
Aumento no risco de quedas, em associação a hipotensão ortostática, perda visual, neuropatia periférica e episódios de hipoglicemia
Neurológicas, em especial declínio cognitivo e demência
Complicações obstétricas maternas e fetais