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Diagnóstico diferencial em artrites

Paciente feminina, 36 anos, cozinheira, previamente hígida, vem à consulta por queixa de fadiga e dor nas articulações das mãos há 2 meses, especialmente pela manhã, acompanhada de rigidez que só melhora após o primeiro turno de trabalho. Às vezes percebe mãos e joelhos quentes e inchados; tem melhora quase completa por semanas com uso antiinflamatórios não esteroidais. Vem fazendo uso de ibuprofeno na última semana. Refere que mãe e primas têm quadro de "reumatismo". Ao exame, apresenta articulações levemente edemaciadas, mas sem dor. Como investigar essa paciente?
 

Dor articular (artralgia) é uma queixa muito prevalente, reportada por até 3/4 da população, sendo mais comum em mulheres e idosos. O diagnóstico diferencial chega a envolver mais de 100 doenças com graus variados de gravidade. Diversas doenças periarticulares podem inclusive ser confundidas com doenças articulares. Nessa situação clínica desafiadora, o primeiro passo para estreitar a lista de diagnósticos diferenciais é definir se o nosso paciente possui artrite. 

A identificação de artrite nem sempre é fácil, pois alguns sinais podem ser sutis. Pacientes com artrite se manifestam com: 

  • dor ao repouso e à mobilização passiva e ativa, que alivia com o uso da articulação em 30-60 minutos; 
  • edema articular e dos tecidos moles adjacentes, eventualmente com eritema e calor local; 
  • sinal do aperto (
    o examinador aperta suavemente as articulações metacarpofalangeanas ou metatarsofalangeanas com a sua mão
    ) costuma desencadear dor significativa. 

Um importante diagnóstico sindrômico a ser diferenciado é a dor periarticular. Tendinites e bursites costumam estar associadas com atividades laborais ou de lazer. Nesses casos, não há acometimento na articulação, a dor tende a melhorar com a continuidade de uma atividade e a piorar com a mobilização ativa contra a resistência das estruturas envolvidas.  

Por onde começar?
 

Para a maioria dos diagnósticos, não há exames complementares definitivos. Portanto, solicitar um
kit
de investigação de pacientes com artrite não é útil sem considerar a suspeita clínica. A avaliação clínica (anamnese e exame físico) é essencial para a investigação. Os principais aspectos a serem explorados são:  

Inflamação
 

Deve-se avaliar as articulações afetadas e simetria de acometimento, sinais de inflamação ativa (edema, rubor, calor, dor à mobilização), amplitude de movimento e alterações periarticulares. Deve-se lembrar de avaliar os pés, pois podem ter as articulações mais acometidas e são frequentemente negligenciados. O edema de partes moles adjacentes deve ser diferenciado de hipertrofia óssea não-inflamatória, como os nódulos de Heberden e de Bouchard, frequentes em osteoartrite.  

Cronologia
 

Quadros com evolução < 6 semanas levam a suspeita de processo infeccioso ou reacional a uma doença sistêmica. Em casos agudos e autolimitados, deve ser considerada a  triagem para infecções virais, como parvovírus B19 e hepatites. A artrite reacional clássica é encontrada no contexto de infecções bacterianas gastrointestinais (
Salmonella, Shigella, Campylobacter
ou
Yersinia
) e urogenital (
Chlamydia trachomatis
). A artrite gotosa é um diagnóstico diferencial muito prevalente que deve ser considerado em quadros agudos, em especial nos pacientes idosos com osteoartrite. Artrites autoimunes costumam ter instalação insidiosa, mas em alguns casos o primeiro episódio é mais marcado, de evolução subaguda.   

Distribuição
 

Monoartrites, especialmente de instalação aguda, lembram artrite séptica e gota. Pacientes com monoartrite devem ser avaliados para sinais de infecção ativa e sepse. Em caso de dúvida diagnóstica e sempre que o paciente apresentar instabilidade clínica, a articulação deve ser puncionada, e o líquido avaliado para presença de bactérias e cristais. Em pacientes com oligoartrite aguda, a artrite gonocócica também deve ser considerada, especialmente na presença de sinais e/ou sintomas sistêmicos. 

Classicamente a osteoartrite costuma envolver interfalangeanas distais e proximais, e poupar metacarpofalangeanas, enquanto artrite reumatóide (AR) costuma poupar interfalangeanas distais e acometer com mais frequência as metacarpofalangeanas. Espondiloartropatias costumam envolver as grandes articulações dos membros inferiores, assim como a osteoartrite, porém esta última costuma poupar punhos e tornozelos. 

Doenças sistêmicas como AR e artrites virais costumam cursar com poliartrite simétrica. O lúpus eritematoso sistêmico (LES) tem padrão de acometimento semelhante à AR, porém não costuma evoluir para destruição articular. Espondiloartropatias, como espondilite anquilosante e artrite psoriásica, são diagnósticos diferenciais especialmente em pacientes jovens (< 40 anos) com queixa de dor lombar de caráter inflamatório, e se diferenciam de outras artrites autoimunes por acometer esqueleto axial e causar entesites (tendinite e fascite plantar, por exemplo).   

Manifestações extra-articulares
 

Doenças reumatológicas autoimunes costumam causar sinais e sintomas sistêmicos que devem ser investigados na avaliação do paciente com artrite. Deve-se atentar especialmente para manifestações cutâneas (
rash
, tofos, eritema nodoso, entre outros), pulmonares, renais (proteinúria, edema) e oculares (uveíte).  

Evolução do sintoma
 

Artrite intermitente pode estar relacionada a exacerbação de gota ou artrite reativa. A artrite migratória se apresenta em 1-2 articulações com melhora espontânea e posterior exacerbação em outros sítios em geral de modo assimétrico, e é característica de condições como artrite gonocócica, febre reumática e endocardite infecciosa. Condições como osteoartrite e AR costumam se apresentar com padrão de acometimento aditivo.  

Epidemiologia
 

Antes da menopausa, mulheres são três a nove vezes mais propensas a desenvolver doenças autoimunes como LES e AR; após os 50 anos, essa diferença é menos nítida. Fibromialgia também é uma condição muito mais prevalente no sexo feminino. A idade também contribui para a epidemiologia de artrite gotosa, que se desenvolve mais precocemente em homens do que em mulheres. A história familiar é relevante na investigação de artrite reumatoide e espondiloartropatias, devendo ser questionada. 

Abordagem diagnóstica
 

Nos casos de monoartrite e na suspeita de infecção, a punção articular e o envio de material para cultura e pesquisa de cristais é o principal recurso complementar. Nos casos de acometimento oligo ou poliarticular de instalação aguda e de leve-moderada intensidade, uma opção é a observação clínica; se houver resolução espontânea sem recorrência, o diagnóstico operacional de
artrite inflamatória periférica indiferenciada
pode ser dado. Por outro lado, para pacientes com quadros mais floridos, intensos e de evolução mais prolongada (> 6 semanas) deve-se aprofundar a investigação.  

Pacientes com evolução de até 6 semanas, com acometimento articular (e tendíneo) e com história de infecção recente (diarreia, doença sexualmente transmissível, infecção viral) podem receber o diagnóstico de artrite reativa. Entretanto, deve-se revisar o paciente periodicamente, uma vez que pode se tratar do primeiro episódio de artrite de uma doença primária articular. Para pacientes com poliartrite aditiva, simétrica de evolução mais prolongada (> 6 semanas, às vezes meses), deve-se considerar os diagnósticos de osteoartrite, gota, LES e espondiloartropatias (das quais a artrite psoriática é o principal representante). Em algumas situações o diagnóstico é identificado diretamente (p.ex., paciente com dactilite e psoríase recebendo o diagnóstico de artrite psoriática), mas o mais comum é serem necessários exames complementares.  

Hemograma, dosagem de proteína C reativa (PCR) e velocidade de hemossedimentação (VSG) são marcadores pouco específicos, porém úteis em diferenciar condições inflamatórias de não-inflamatórias. O ácido úrico elevado pode corroborar o diagnóstico de gota, porém a dosagem em uma crise aguda não auxilia no diagnóstico, pois pode estar reduzida ou normal nesse contexto. 

A solicitação de fator anti-nuclear e fator reumatoide (FR) é útil para diferenciação de osteoartrite de AR. Porém, na ausência de sinais compatíveis, não se deve basear o diagnóstico apenas em exames complementares: fator anti-nuclear e FR podem ser positivos até em 5-10% da população adulta saudável.  

Outros exames úteis em casos selecionados são a pesquisa de anticorpo anti-peptídeo citrulinado, que tem maior especificidade que o FR para o diagnóstico de AR. Por outro lado, pacientes com quadro clínico compatível com AR que têm autoanticorpos negativos recebem o diagnóstico de artrite soronegativa. Nestes pacientes deve-se ficar atento para artrite como manifestação paraneoplásica, artrite psoriática e para a possibilidade de um diagnóstico de AR muito precoce com autoanticorpos ainda negativos. Por fim, a pesquisa do HLA B27 auxilia nos pacientes com suspeita de espondiloartropatias se manifestando com artrite e entesite.  

Alguns achados à radiografia simples de mãos, pés e esqueleto axial são sugestivos de etiologias específicas, como sinais de sacroileíte e diagnóstico de espondilite anquilosante, erosões com osteopenia periarticular em AR, e deformidades tipo "lápis na xícara" em artrite psoriásica. Entretanto, estes achados em sua maioria são tardios no curso das doenças, e os exames de imagem tendem a ser normais em fases iniciais.   

Voltando ao caso clínico
 

Diante de uma paciente jovem com poliartrite simétrica de pequenas e grandes articulações há mais de 6 semanas e com história familiar positiva para provável doença reumatológica, deve ser considerado o diagnóstico de artrite reumatoide, sendo o principal diagnóstico diferencial osteoartrite.
 

Neste caso, marcar um retorno sem que a paciente esteja usando anti-inflamatórios é fundamental, uma vez que a artrite não foi objetivamente documentada na avaliação inicial.
 

A paciente retornou em 8 semanas com edema articular e restrição do movimento, dor à palpação e sinal do aperto positivo. Seu FR apresentou título de 38 UI/mL (fracamente reagente), VSG de 48 mm/h PCR de 18 mg/dL. A paciente não apresentava lesões cutâneas ou nódulos subcutâneos, sintomas respiratórios ou queixas oculares.
 

Assim, foi iniciado tratamento com corticoide para alívio imediato e metotrexato como droga modificadora de doença. Após 6 meses, a paciente percebeu melhora marcada do quadro e da qualidade de vida, estava sem corticoide sistêmico e adaptada ao tratamento.
 

Resumo 

  • Queixas articulares são muito comuns e podem estar relacionadas a diversas doenças com graus variados de gravidade. A diferenciação entre artralgia e artrite é fundamental, mas por vezes difícil. Mais de uma consulta e exames complementares podem ser necessários para uma conclusão. 
  • Na maioria dos pacientes o principal recurso é a história clínica. Exames complementares não devem ser pedidos de forma indiscriminada, mas são úteis para confirmação das hipóteses. 
  • Monoartrites sem causa estabelecida têm indicação de análise do líquido sinovial e investigação complementar para infecção. 
  • Poliartrites de curta duração costumam estar relacionadas a eventos sistêmicos e, na ausência de sinais marcados, observação clínica pode ser suficiente. 
  • Poliartrites de evolução mais prolongada normalmente exigem investigação diagnóstica. Os principais diagnósticos são AR, osteoartrite, LES, espondiloartropatias e artrites soronegativas.