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Hepatite autoimune: critérios diagnósticos e manejo terapêutico

Hepatite autoimune (HAI) é uma doença rara caracterizada por inflamação crônica do tecido hepático associada a autoanticorpos e ao aumento na produção de imunoglobulinas. É mais frequente em mulheres e a sua distribuição típica é bimodal (entre 15-25 anos e 45-60 anos), mas pode ocorrer em qualquer idade.

É uma doença rara, com prevalência entre 1-5 por 100 mil habitantes. Apesar da compreensão ainda incompleta de seu mecanismo, supõe-se que o desenvolvimento de autoimunidade seja baseado em predisposição genética que, por estímulo de fatores ambientais (vírus, medicamentos), promove injúria celular direta por intolerância a autoantígenos variados presentes no fígado. É descrita forte associação com alguns genes de antígeno leucocitário humano (human leukocyte antigen - HLA), por exemplo.

A história natural compreende períodos de inflamação intensa dos hepatócitos e períodos de remissão; a injúria continuada promove fibrose, que a longo prazo resulta em cirrose e insuficiência hepática. Hepatocarcinoma é uma complicação possível, porém menos frequente do que nas
hepatites crônicas virais
.

O prognóstico é variável: embora cerca de 20% dos casos se apresentem como hepatite aguda grave com alta mortalidade, de modo geral pacientes tratados tem bom prognóstico — sobrevida em 10 anos de 80-98%. A terapia imunossupressora tem como principal objetivo reduzir o processo inflamatório e induzir remissão; ela é eficaz para prevenir o desenvolvimento de cirrose, porém os efeitos adversos podem ser limitantes.

Quando suspeitar e como investigar?

Os sintomas mais frequentes são inespecíficos, como fadiga, mal-estar, anorexia e dor abdominal, e até ¼ dos pacientes são diagnosticados em fase assintomática. Artralgia é um sintoma extra-hepático comum; manifestações cutâneas, hematológicas e pulmonares podem estar presentes e até preceder o diagnóstico de HAI.

A presença de outras doenças autoimunes aumentam a probabilidade do diagnóstico, como
diabetes mellitus tipo 1
, artrite reumatóide e doença celíaca. O início da doença tende a ser insidioso e com períodos silentes clínica e laboratorialmente pela alternância de períodos de atividade inflamatória com remissão.

De modo geral, a HAI deve ser incluída como diagnóstico diferencial de outras hepatopatias agudas ou crônicas. Menos frequentemente, a abertura do quadro pode ser aguda com insuficiência hepática: icterícia, encefalopatia e alargamento do tempo de protrombina são marcadores desta forma.

Uma das primeiras manifestações laboratoriais é o dano de padrão hepatocelular, com aumento moderado de aminotransferases (100-1000 U/L) e predominando sobre alteração de fosfatase alcalina e bilirrubinas, que estão pouco alteradas. Laboratório com padrão colestático deve levar a suspeita de doença da via biliar, colangite esclerosante primária ou colangite biliar primária ou doenças de sobreposição.

O primeiro passo na investigação consiste em excluir outras causas de hepatopatias: hepatites virais (hepatites A, B e C; Epstein-Barr; citomegalovírus; e vírus da imunodeficiência humana), etilismo, doença hepática gordurosa não-alcoólica, reação a medicamentos e outras causas genéticas.

Uma das marcas da HAI é o aumento policlonal expressivo de imunoglobulinas (>2,5 g/dL), especialmente IgG. Tardiamente, podem ser observados também aumentos de bilirrubina direta e de fosfatase alcalina. Baixos níveis de albumina e aumento do tempo de protrombina indicam evolução para cirrose.

A presença de autoanticorpos faz parte do diagnóstico e define dois padrões de doença (Tabela 1); enquanto o tipo I é mais comum em mulheres jovens provenientes do Norte da América e da Europa, o tipo II é mais frequente em crianças, e cada um está associado a diferentes gene de HLA de risco.

Alguns anticorpos podem ser comuns a outras doenças e, portanto, menos específicos. Especialmente em pacientes com anticorpo antinuclear positivo, é comum a comorbidade com outras condições autoimunes como tireoidite, artrite reumatoide, Sjögren, vasculite cutânea, anemia hemolítica e colite ulcerativa. O anticorpo do anti-músculo liso está mais associado com HAI (tipo 1) se em títulos > 1:80, mas pode ser positivo em casos de hepatite viral.

Tabela 1. Características dos tipos de hepatite autoimune. Adaptado de (1–3).

Características dos tipos de hepatite autoimun

A biópsia hepática é parte importante da abordagem diagnóstica e seguimento. A manifestação clássica na histologia hepática é a presença de infiltração plasmocitária. Ela é determinante para a identificação da doença, uma vez que até 20% dos pacientes têm auto-anticorpos negativos e através dela é possível identificar HAI ou outras causas de dano hepático. Além disso, ela permite o estadiamento da doença e auxilia na indicação de tratamento (vide abaixo) e no seguimento.

Como o diagnóstico é complexo, existe uma série de critérios clínico-laboratoriais que favorece ou afasta a suspeita de HAI. Alguns critérios foram desenvolvidos para realização de estudos com fins de padronização. O mais utilizado está apresentado na Tabela 2.

O diagnóstico de HAI é definido por escore >15 pré-tratamento ou >17 após tratamento, é sugerido como provável por escore 10-15 pré-tratamento e 12-17 pós-tratamento. Apesar de serem úteis, pacientes individuais com HAI podem não ser identificados por escores. Portanto, deve-se lembrar que este é um diagnóstico em que um quadro clínico, laboratorial e histológico devem ser compatíveis, e diagnósticos alternativos devem ser excluídos.

Critérios diagnósticos propostos para avaliação de paciente com suspeita de HAI.
Critérios diagnósticos propostos para avaliação de paciente com suspeita de HAI.

Tratamento

O cuidado global do paciente é semelhante a outras hepatopatias. É fundamental a prevenção de novos fatores de injúria, tais como evitar consumo de álcool e vacinar contra hepatites A e B. Cerca de ⅓ dos pacientes podem apresentar cirrose já ao diagnóstico, e o cuidado nessa etapa inclui também prevenção e diagnóstico precoce de complicações. Quanto ao tratamento específico, recomenda-se imunossupressão e acompanhamento com especialista focal.

O tratamento com imunossupressores está indicado para pacientes com hepatite de interface e com algum grau de cirrose; pacientes com hepatite periportal apenas, outros fatores devem ser considerados para indicar tratamento, como alterações laboratoriais e sintomas. Outras indicações de tratamento são sintomas graves hepáticos ou extra-hepáticos e quadros agudos com elevação de transaminases > 10 vezes o limite superior do normal.

Corticoide via oral costuma ser o primeiro tratamento, sendo a droga de escolha a prednisona em diferentes regimes de doses que variam entre 20-60mg/dia para indução e 5-20 mg para manutenção. Sua ação promove melhora sintomática, laboratorial e possivelmente algum grau de recuperação histológica.

É esperada redução de bilirrubinas após 2 semanas do início da terapia, e a persistência de exames alterados indica pior prognóstico; idosos costumam apresentar resposta mais rápida ao tratamento. A elevação de aminotransferases, porém, pode persistir por 1-3 meses, e, se não houver melhora laboratorial, o diagnóstico de HAI deve ser reavaliado.

A longo prazo, preconiza-se associar uma terapia que permita a redução de corticoide, e o tratamento de manutenção usual é a azatioprina em dose inicial de 50-100mg/dia com progressão até 2mg/kg/dia quando for se considerar suspensão da corticoterapia. Sugere-se a manutenção de azatioprina associada ou não a prednisona em dose baixa (10 mg/dia) para evitar recorrência, sendo que a primeira é a droga mais efetiva no tratamento de manutenção.

Budesonida oral associada com azatioprina pode ser uma alternativa para minimizar os efeitos dos glicocorticoides sistêmicos. A azatioprina pode ser iniciada concomitante ao uso de corticoide ou após 2-4 semanas, já antecedendo a redução progressiva deste e a prevenção de efeitos adversos da corticoterapia, como hipertensão, diabetes e osteoporose.

Como regra geral, os pacientes necessitarão de tratamento em longo prazo, a suspensão de imunossupressores pode induzir reativação da doença. Para considerar a suspensão, o paciente deve estar controlado por 2 anos e a redução deve ser gradual.

Tabela 3. Principais efeitos adversos dos fármacos utilizados no tratamento de hepatite autoimune (4,6,7).

Principais efeitos adversos dos fármacos utilizados no tratamento de hepatite autoimune

Cerca de 10-15% dos pacientes não apresentarão melhora clínica ou laboratorial em 6 meses após o início da terapia. Nesses casos, podem ser considerados uso de corticoide em alta dose (prednisona 1mg/kg) em associação a azatioprina, ou troca de esquema imunossupressor para ciclosporina, tacrolimus e micofenolato; a indicação de imunobiológicos como anti-CD20 ou anti-TNF alfa pode ser considerada.

O transplante hepático é utilizado em pacientes com falha a múltiplos esquemas medicamentosos; apesar da possibilidade de recidiva de HAI ser descrita em até 40% em algumas séries, a sobrevida em 5 anos após transplante é em torno de 80%.

Resumo

  • Hepatite autoimune (HAI) é uma doença rara, que pode acometer todas faixas etárias, caracterizada por inflamação crônica do tecido hepático que pode evoluir para insuficiência hepática e cirrose.
  • Ela deve ser suspeitada em pacientes com outras doenças autoimunes com dano hepático, pacientes com dano de padrão hepatocelular sem etiologia determinada e mesmo em pacientes com falência hepática aguda.
  • A avaliação do paciente com suspeita de HAI inicia por excluir outras causas mais frequentes de hepatopatia (hepatites virais, etilismo, doença hepática gordurosa não-alcoólica, reação a medicamentos).
  • Algumas características específicas da HAI são a produção de autoanticorpos (que caracterizam padrões da doença) e de imunoglobulinas, além de achados de infiltração hepática por plasmócitos.
  • A base do tratamento é a imunossupressão com glicocorticoide e azatioprina em combinação. Outros medicamentos podem ser considerados em casos refratários, e o transplante hepático é um recurso terapêutico em casos selecionados.

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