Novas diretrizes de rastreamento do câncer de colo uterino: o que o enfermeiro deve saber?

Panorama do câncer de colo do útero no Brasil
O câncer de colo uterino permanece uma importante causa de morbimortalidade entre mulheres no Brasil, sendo emblemático no cenário das desigualdades em saúde. Segundo o Instituto Nacional de Câncer (INCA), as estimativas indicam que milhares de novos casos são diagnosticados a cada ano, com mortalidade significativa, especialmente nos estados do Norte e Nordeste onde o acesso aos serviços de rastreamento e diagnóstico é mais precário.
Um estudo multicêntrico nacional de pacientes com CCU mostrou que a maioria dos casos no Brasil é diagnosticada em estágios avançados (II a IV), quando as opções terapêuticas são mais custosas, com maior risco de complicações e menor chance de sobrevida. Além disso, observa-se que muitas pacientes são mulheres não brancas, com baixa escolaridade e renda familiar baixa, refletindo vulnerabilidade social.
A pandemia da COVID-19 também impactou negativamente a cobertura do rastreamento por citologia no Brasil, reduzindo o número de mulheres que realizaram Papanicolau nos anos de pico da crise sanitária, o que pode provocar atraso diagnóstico e aumento de casos em estágios mais avançados nos próximos anos.
Certos grupos de mulheres enfrentam maior risco ou barreiras ao rastreamento: mulheres em situação de vulnerabilidade socioeconômica, residentes em áreas rurais ou regiões com infraestrutura de saúde deficitária, mulheres com menor escolaridade, populações indígenas e afrodescendentes, mulheres privadas de liberdade, e aquelas em situação de deficiência ou com mobilidade reduzida. A literatura aponta que tais mulheres frequentemente têm menor adesão ao rastreamento, menos acesso à continuidade do cuidado e maior probabilidade de diagnóstico.
Além disso, mulheres com histórico de imunossupressão e infecções persistentes por genótipos oncogênicos de HPV representam subgrupos com risco elevado de progressão de lesões precursoras.
Importância do rastreamento precoce
O rastreamento precoce de lesões precursoras do câncer do colo uterino é uma das estratégias mais eficazes de redução da incidência e mortalidade dessa neoplasia. Ao detectar displasias (lesões intraepiteliais cervicais) em estágios iniciais ou de baixo grau, é possível intervir antes da progressão para tumor invasor. Em contextos de programas organizados de rastreamento, a mortalidade por CCU caiu substancialmente em muitos países.
No Brasil, a efetividade depende da cobertura adequada, da qualidade das coletas, da leitura/citologia confiável e do seguimento dos achados alterados. Porém, historicamente, o rastreamento no país foi predominantemente oportunístico, com lacunas de continuidade e baixa cobertura em segmentos de população vulneráveis.
Diretrizes atuais de rastreamento
Nos últimos cinco anos, houve um movimento de revisão das diretrizes nacionais de rastreamento para incorporar evidências internacionais e técnicas mais sensíveis. Em 2025, novas diretrizes brasileiras passaram a ser discutidas e foram aprovadas pela CONITEC (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS), marcando um passo importante para modernização do programa de rastreamento cervical.
Essas diretrizes visam transitar do modelo oportunístico para um modelo mais organizado, com convites sistemáticos, monitoramento de cobertura e uso preferencial de teste de HPV para triagem primária, quando possível. O debate nacional reflete experiências bem-sucedidas em outros países, nas quais o teste de HPV substitui ou complementa a citologia, permitindo intervalos mais longos e maior sensibilidade na detecção de lesões de alto risco.
No Brasil, embora o teste de HPV ainda não esteja amplamente incorporado no SUS para rastreamento primário, muitos especialistas defendem sua adoção progressiva, seguindo o consenso internacional e experiências de outros programas. As novas diretrizes tentam articular essa transição, considerando aspectos operacionais, custos e desigualdades regionais.
Idade de início e frequência recomendada para o exame
Nas diretrizes anteriores do INCA (2016), o rastreamento por citologia (Papanicolau) era indicado para mulheres de 25 a 64 anos, com coletas anuais nos primeiros dois anos e, após resultados negativos, com periodicidade trienal (a cada 3 anos).
Com a adoção de teste de HPV como método primário, recomendações internacionais recentes sugerem iniciar a triagem a partir de 25 anos (ou 30 em alguns países), com intervalos de 5 anos se o teste for negativo para HPV de alto risco. Essa estratégia reduz a frequência de rastreamento e o risco de sobrediagnóstico, mantendo sensibilidade.
No contexto brasileiro, as novas diretrizes aprovadas em 2025 ainda devem definir transições de intervalo e idade de início de forma graduada, considerando as limitações regionais de infraestrutura laboratorial e monitoramento populacional. Ainda assim, a tendência é caminhar para modos de rastreamento mais eficientes e seguros.
Papilomavírus humano (HPV) e testes moleculares
O avanço mais marcante nas diretrizes modernas de rastreamento é o protagonismo do teste de HPV de alto risco como método de triagem primária. Os testes de HPV têm demonstrado maior sensibilidade na detecção de lesões precursoras comparado à citologia apenas, permitindo a extensão dos intervalos de rastreamento e menor incidência de resultados falsos negativos.
As diretrizes brasileiras em revisão avaliam o uso do teste de HPV como método preferencial sempre que disponível, e a citologia como método complementar ou em populações específicas.
Além disso, uma tendência crescente é o uso de autoamostragem (self-sampling) para a coleta de material cervicovaginal para teste de HPV. Estudos recentes no Brasil apontam boa aceitabilidade, sensibilidade razoável e conveniência, especialmente para alcançar mulheres que não aderem ao rastreamento convencional. Essa estratégia pode ampliar significativamente a cobertura nos contextos de barreiras de acesso.
Segundo um estudo de revisão internacional, a autoamostragem para HPV mostra resultados consistentes, confiáveis e comparáveis à amostragem profissional em muitos cenários, sendo recomendada como opção válida para aumentar adesão.
Papel do enfermeiro na prevenção e rastreamento
O enfermeiro desempenha papel decisivo no processo de rastreamento cervical: conduzir consultas, esclarecer dúvidas, obter consentimento informado, coletar citologia (Papanicolau) com técnica adequada e garantir a qualidade da amostra. Em locais onde o teste de HPV for adotado, o enfermeiro pode orientar e executar a coleta para análise molecular.
Nas unidades primárias de saúde, os enfermeiros muitas vezes são os primeiros pontos de contato com as mulheres, podendo organizar agendas de coleta de citologia, buscar mulheres em atraso no rastreamento e realizar visitas domiciliares de mobilização para rastreamento. A profissionalização e treinamento específico em ginecologia e citologia são essenciais para assegurar baixa taxa de insatisfação de amostras e alta qualidade técnica.
Uma das funções centrais do enfermeiro é promover educação em saúde dirigida às mulheres, explicando os objetivos, benefícios, procedimentos e riscos do rastreamento cervical. Ações educativas bem planejadas tendem a aumentar adesão, reduzir medo e preconceitos. O enfermeiro pode utilizar diferentes estratégias: palestras, grupos de convivência, mídias sociais, cartilhas ilustradas, rodas de conversa e mobilização comunitária.
Identificação de fatores de risco e encaminhamentos adequados
Durante a consulta de enfermagem, o enfermeiro deve investigar fatores de risco para HPV persistente e progressão de lesões: início precoce da vida sexual, múltiplos parceiros, histórico de infecções sexualmente transmissíveis, tabagismo, imunossupressão (HIV), falta de vacinação contra HPV, entre outros. Mulheres com fatores de risco podem demandar vigilância mais rigorosa ou encaminhamento especializado.
Quando forem detectados resultados alterados (citologia atípica, HPV positivo de alto risco, colposcopia necessária), compete ao enfermeiro orientar e encaminhar a paciente para serviço de referência (ginecologista, colposcopia, serviço especializado), bem como acompanhar se o encadeamento dos cuidados está ocorrendo adequadamente.
O enfermeiro também pode atuar como agente de vigilância populacional, identificando mulheres em atraso no rastreamento, chamando para nova coleta ou interrupção, e monitorando faltas e seguimento.
Cuidados de enfermagem no acompanhamento das pacientes
Quando o resultado do exame (citologia ou HPV) revela alguma anormalidade (ASC-US, LSIL, HPV de alto risco, etc.), o enfermeiro deve orientar claramente a paciente quanto ao significado do achado, riscos, necessidade de confirmação diagnóstica (colposcopia, biópsia) ou repetição de exame, e prazos para retorno. Essa comunicação deve ser feita com linguagem acessível, assegurando que a paciente compreenda a importância do seguimento.
O enfermeiro deve preparar a paciente para o processo de colposcopia ou procedimentos complementares, oferecer esclarecimentos sobre o que esperar, suporte para temor ou ansiedade, e garantir que a paciente não perca contato com o serviço. Em muitos casos, mulheres interrompem o seguimento por medo ou falta de informação.
Resultados alterados podem gerar apreensão, medo de câncer, culpa ou vergonha. O enfermeiro, ao acompanhar essas mulheres, desempenha função de escuta qualificada, acolhimento e apoio psicossocial. Estimular redes de suporte, conectar com grupos de apoio, oferecer encaminhamento psicológico ou de serviço social quando necessário faz parte do cuidado integral.
Reduzir o estigma é fundamental: muitas mulheres evitam o exame por vergonha, constrangimento ou receio de diagnóstico. O enfermeiro deve trabalhar com sensibilidade cultural, empatia e respeito à intimidade da paciente, contribuindo para que ela se sinta segura e confiante no processo.
A continuidade é condição essencial para que o rastreamento e o manejo de lesões tenham impacto real. O enfermeiro deve manter registros atualizados, monitorar se as pacientes retornaram para colposcopia, intervenção ou novas coletas, enviar lembretes e realizar busca ativa quando houver abandono.
Além disso, o enfermeiro pode participar de estudos de monitoramento de efetividade, qualidade das coletas e taxas de perda de seguimento, gerando feedback para melhoria contínua.
Desafios na prática clínica
As barreiras de acesso são múltiplas: distância geográfica, deslocamento, falta de transporte, sobrecarga familiar ou de trabalho, horários incompatíveis, falta de infraestrutura de coleta (salas, insumos, laboratórios), escassez de profissionais treinados, deficiências no sistema de regulação e encaminhamento e desigualdades regionais.
Em regiões remotas ou rurais, muitas mulheres ficam fora da cobertura, agravando disparidades. O modelo oportunístico reforça essas lacunas, pois depende da procura espontânea. Migrar para modelo organizado exige recursos, planejamento, logística de transporte e monitoramento populacional.
O exame ginecológico (inserção de espéculo, coleta endocervical) pode gerar desconforto, dor, vergonha ou constrangimento, especialmente para mulheres com histórico de violência, trauma ou condicionamento cultural adverso. Isso pode ser barreira importante à adesão persistente.
Algumas mulheres acreditam que não precisam do exame se não têm sintomas, ou associam o procedimento à perda de virgindade, à promiscuidade ou à doença grave, o que gera receio em muitas populações. Estratégias de sensibilização, educação em saúde e diálogo empático são fundamentais para vencer essas resistências.
A autoamostragem para HPV representa uma alternativa muito promissora para superar parte dessas barreiras, pois confere privacidade, comodidade e menos constrangimento. Estudos recentes demonstram boa aceitação e desempenho, especialmente em mulheres não rastreadas.
Para ampliar cobertura e adesão, é necessário combinar múltiplas estratégias:
- Implantar modelo organizado de rastreamento com convites sistemáticos, recall e chamada ativa.
- Utilizar autoamostragem (self-sampling) para HPV como alternativa em mulheres que não acessam o serviço.
- Realizar campanhas comunitárias, mobilização social, parcerias com agentes comunitários de saúde.
- Ampliar a oferta de horários flexíveis, coleta em domicílio ou em unidades móveis.
- Capacitar enfermeiros e técnicos para coleta de qualidade, reduzir taxa de insatisfação de amostras.
- Monitorar indicadores de desempenho e perda de seguimento, instituir auditoria local.
- Integrar tecnologia e sistemas de informação para rastreamento populacional e lembretes eletrônicos.
Conclusão
O câncer de colo uterino permanece um problema de saúde pública expressivo no Brasil, marcado por desigualdades regionais e sociais. As novas diretrizes nacionais aprovadas recentemente representam uma oportunidade de modernizar o rastreamento, incorporando testes de HPV como método primário e evoluindo para modelos organizados.
Para o enfermeiro, conhecer essas diretrizes, bem como atuar de forma proativa no rastreamento e no acompanhamento das mulheres, é essencial para transformar essas diretrizes em resultados práticos de prevenção e redução de mortalidade. A competência técnica, a educação em saúde, a empatia e a gestão do seguimento são responsabilidades fundamentais.
A atuação do enfermeiro pode fazer a diferença na adesão, no acolhimento, na continuidade e na equidade do rastreamento. A atualização profissional contínua em ginecologia, oncologia e políticas de saúde é requisito para que o enfermeiro esteja preparado para os desafios desse cenário.
Quando o enfermeiro assume papel central e bem informado no rastreamento cervical — não apenas como executor técnico, mas como educador, articulador e agente de mudança — ele contribui para a detecção precoce, redução da progressão de lesões e, por consequência, para a redução da mortalidade por câncer de colo uterino no Brasil.