(Novos) critérios para o diagnóstico de obesidade

Nota: esta postagem se baseia em um artigo científico publicado em janeiro de 2025 e que está em franco debate. Existem posições a favor e contra. Aqui apresentamos um resumo da proposição dos autores; uma discussão mais aprofundada da sua adequação foge do escopo deste texto.
A Organização Mundial de Saúde reconhece obesidade como uma doença crônica. O critério de índice de massa corporal (IMC) acima de 30 kg/m2 é utilizado de forma universal para o diagnóstico, porém ele possui limitações para isso. Além disso, se discute se obesidade é uma doença ou um fator de risco para outras condições.
Aqui é necessária uma pequena “volta”. Há uma diferença entre os termos
disease
e
illness
– que pode parecer estritamente filosófica e semântica, mas que está no centro dos debates se obesidade é uma doença. Enquanto doença (
disease
) é o estado capaz de levar ao adoecimento (secundário a disfunções de órgãos e tecidos), adoecimento (
illness
) é um estado de perda de saúde que tem manifestações clínicas (sinais, sintomas, alterações laboratoriais…). O primeiro pode ser um contínuo de risco, enquanto o segundo se manifesta nos indivíduos e é dicotômico (presente ou ausente).
Neste contexto, um grupo de pesquisadores criou uma comissão sobre o tema e recentemente publicou uma proposta de definição de obesidade e de critérios diagnósticos. Para fazer isso, eles utilizaram uma abordagem de consenso, chamada técnica de Delphi, visando contemplar a visão de diferentes pesquisadores, profissionais e pacientes no tema. Nesta postagem, apresentamos um resumo da discussão apresentada por essa comissão, bem como as proposições e recomendações diagnósticas e terapêuticas que foram feitas.
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Contexto e justificativa
A definição atual de obesidade é centrada no IMC, que leva ao mesmo tempo a sub e sobrediagnóstico da condição. Além disso, algumas propostas apresentam “obesidade doença” como a soma do critério de IMC com outras doenças (diabetes, cardiopatia isquêmica, apneia), o que aumenta a confusão e reforça a ideia de obesidade como fator de risco. Assim, para obesidade ser entendida como uma doença
per se
, falta uma definição independente da mesma.
A história do IMC e do diagnóstico de obesidade andam juntas há muitos anos. O índice foi criado no século 19 pelo estatístico belga Adolphe Quetelet como uma forma de descrever a distribuição da composição corporal dos indivíduos. Do índice de Quetelet, saltamos para os anos 1950 e para o vice-presidente de uma grande seguradora norte-americana (Louis Dublin, outro estatístico) que buscava definir o peso "normal”, uma vez que ele notou que clientes acima do peso utilizavam mais o seguro. Assim passou a classificá-los em “pequenos", “médios” e “grandes” de acordo com o IMC. Por fim, nos anos 1970 o famoso pesquisador Ancel Keys notou que o índice de Quetelet era um marcador (impreciso, segundo o mesmo) da adiposidade dos indivíduos.
Está claro que obesidade (
disease
) é o aumento da adiposidade, entretanto a adiposidade por si mesma não indica adoecimento (
illness
). Em suma, há a necessidade de definir o adoecimento (
illness
) causado pelo excesso de tecido adiposo – o que foi chamado de
obesidade clínica
. Assim o objetivo expresso da comissão era criar critérios objetivos para o diagnóstico de obesidade – e assim ajudar nas decisões clínicas e de saúde pública.
Definições do grupo
Utilizando a abordagem de Delphi, com múltiplas rodadas de discussão e validação, o grupo apresentou e chegou em um consenso bastante elevado a uma série de definições. Destacamos a seguir as mais relevantes:
- Obesidadeé definida pelo excesso de adiposidade (tecido adiposo aumentado), independente da distribuição e funcionamento deste tecido;
- A obesidade pode causar alterações do funcionamento do organismo (e seus órgãos e tecidos) e levar ao adoecimento (illness) manifestado por sinais, sintomas ou limitações. Este estado é chamado deobesidade clínica;
- Obesidade pré-clínicaé o aumento do tecido adiposo (obesidade) com função tecidual preservada, mas ainda assim com risco aumentado de apresentar obesidade clínica e outras condições associadas;
- Obesidade clínica pode entrar em remissão se as manifestações de obesidade clínica forem controladas. Mas, seguindo as definições de outras condições, está implícito que remissão é diferente de cura;
- Comorbidades são doenças que ocorrem de forma incidental junto com a obesidade, sem relação de causa e efeito. Doenças relacionadas à obesidade são aquelas que tipicamente ocorrem em conjunto e tem etiologia e mecanismos sobreponíveis (diabetes, apneia do sono, esteatose hepática…). Por fim, obesidade pode causar complicações que levam a dano, disfunção ou risco de vida, como infarto, insuficiência renal e AVC.
Aspectos práticos
Do ponto de vista prático, a principal mudança é que o diagnóstico de obesidade não deve se basear exclusivamente no IMC. Este ainda pode ser utilizado para fins de rastreamento, mas é apenas parte do diagnóstico de excesso de adiposidade. A identificação de aumento ou anormalidade do tecido adiposo deve ser diagnosticado através de:
- aferição direta da gordura corporal (por exemplo, através de absorciometria de raios-X de dupla energia - DEXA, bioimpedância, etc.); OU
- IMC elevado associado a pelo menos um critério antropométrico (circunferência da cintura, relação cintura-quadril ou relação cintura-altura); OU
- Independente do IMC se dois critérios antropométricos (circunferência da cintura, relação cintura-quadril ou relação cintura-altura) estiverem alterados.
Nota: Métodos validados e pontos de corte apropriados para idade, gênero e etnia devem ser utilizados para todos os critérios antropométricos.
A partir disto, o diagnóstico de
obesidade clínica se dá pela presença de aumento de adiposidade (acima) associado com
:
- algum dos fatores daTabela 1; ou
- limitações significativas na mobilidade e/ou nas atividades básicas da vida diária (banho, vestir-se, usar o banheiro, continência, alimentação).
Adiciona-se que todas as pessoas com excesso de adiposidade devem ser avaliadas para presença dos fatores acima com base no exama clínico (entrevista, exame físico) e exames complementares pertinentes. No mínimo, deve-se realizar um hemograma, glicemia, perfil lipídico, e exames de avaliação renal e hepática. Exames adicionais devem ser realizados de acordo com a história clínica e suspeitas. Além disso,
pessoas com excesso de adiposidade, mas sem obesidade clínica acabam sendo classificadas como obesidade pré-clínica.
Tabela 1.
Critérios diagnósticos para obesidade clínica em adultos. Traduzido da referência 1.



Quanto ao manejo dos indivíduos, a comissão da recomendações genéricas. Para pessoas com obesidade clínica o foco deve ser oferecer terapia eficazes balanceando risco e benefício e com o enfoque de melhorar as manifestações clínicas e a qualidade de vida, bem como reduzir o risco de progressão da doença e de morte. Já naqueles com obesidade pré-clínica, a recomendação é de aconselhamento e acesso a cuidados de saúde equânimes para reduzir o risco de desenvolver obesidade clínica e as outras condições associadas.
Conclusões
A proposição apresentada pelos autores visa resolver uma série de divergências e criar consenso quanto ao diagnóstico de obesidade. Assim, cria-se os conceitos de obesidade (excesso de adiposidade), obesidade clínica (a doença obesidade) e obesidade pré-clínica (obesidade, porém sem adoecimento). Além disso, os autores propõem critérios para o diagnóstico destas categorias e quais decisões de tratamento elas devem desencadear. Como apresentado no início da postagem, trata-se de um assunto em franca discussão e ainda é incerto se, quanto e como a comunidade científica e os profissionais da saúde irão utilizar estes critérios.
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