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CagriSema: novo tratamento para diabetes e obesidade

Por que saber sobre CagriSema é importante?

Diabetes
mellitus
(DM) tipo 2
e obesidade são duas das doenças mais comuns em adultos - acometendo aproximadamente 10% e 30% dos brasileiros, respectivamente. Para além desta co-ocorrência, a obesidade tem um papel muito importante na gênese do DM tipo 2, induzindo a resistência insulínica e também promovendo falência da célula beta do pâncreas. Adicionalmente, ambas doenças são altamente dependentes dos hábitos alimentares, da quantidade de comida ingerida e perda de peso leva à melhora do controle glicêmico. E é por atuar nesta interrelação (reduzindo peso e glicose) que os medicamentos que simulam os peptídeos intestinais chamam a atenção. E o mais novo representante desta família é justamente a
CagriSema, uma combinação de cagrilintida e semaglutida
.

Mas o que são peptídeos intestinais e por que eles são tão importantes neste cenário? Esta história é muito curiosa e bonita;
ela começa com a observação de que a administração de glicose intravenosa gera menor secreção de insulina do que a alimentação por via oral
. O nome deste efeito é "efeito incretina" e a partir dele (após longos anos de pesquisas) se descobriu uma série de pequenas moléculas protéicas (peptídeos) com efeitos hormonais no trato digestivo. E, com isso, foi possível desenvolver medicamentos que mimetizam diferentes hormônios que são responsáveis por esse efeito.

Como a ciência busca avançar sempre, após os primeiros medicamentos (exenatida e liraglutida) deste grupo mostrarem efeitos benéficos no peso, buscou-se melhorias neles. Assim, para além dos
análogos do GLP-1
, a indústria farmacêutica está buscando combinações de peptídeos para efeitos mais potentes. Assim, moléculas ou combinações de moléculas são capazes de atuar nos receptores de GLP-1, GIP, glucagon e amilina.

Talvez um dos aspectos mais importantes destes medicamentos é que eles são capazes de melhorar o controle glicêmico, promovendo junto a perda de peso. Com os medicamentos mais recentes (que tem combinações de incretinas), essa redução de peso é extremamente significativa, atingindo mais de 20% de redução de peso em alguns indivíduos - algo que só se conseguia com
cirurgia bariátrica
. Assim, eles têm ganhado muito espaço e mudado o paradigma do tratamento de pessoas com obesidade e/ou DM tipo 2.

Esse efeito está sendo tão rápido e significativo que chegou a afetar marcadamente o produto interno bruto da Dinamarca (sede da fabricante da semaglutida). Enfim, por todos esses motivos, um novo medicamento desta família desperta curiosidade!

Conhecendo o medicamento

Agora que entendemos a importância desse grupo de medicamentos, vamos nos aprofundar na CagriSema. A já conhecida semaglutida é um
análogo do GLP-1
, ou seja, atua se ligando nos receptores deste hormônio. Através disso, estimulam a secreção de insulina, inibem a secreção de glucagon, reduzem a resistência insulínica, atrasam o esvaziamento gástrico e reduzem o apetite. Em conjunto, esses efeitos levam a melhora da hiperglicemia e à redução de peso (e também aos efeitos adversos intestinais).

A novidade do medicamento é a cagrilintida, um análogo da amilina. A amilina é um hormônio peptídico secretato junto com a insulina na célula beta pancreática. O primeiro representante deste grupo de análogos é a pramlintida, disponível para uso clínico desde 2005 nos Estados Unidos da América. Entretanto, seu uso nunca foi significativo e exigia aplicação subcutânea 3 vezes ao dia (junto das refeições). Agora, com a popularização das incretinas e a possibilidade de combinação delas, há novo interesse. A cagrilintida é um análogo da amilina de aplicação uma vez por semana (assim como a semaglutida).

Ela tem efeitos semelhantes aos análogos do GLP-1 de reduzir o esvaziamento gástrico, aumentar a saciedade e reduzir a secreção do glucagon. Esses efeitos estão apresentados de forma esquemática na
Figura 1
. Além desses efeitos benéficos, é sabido que a amilina estimula a secreção de aldosterona, então há apreensão do surgimento de hipertensão com a cagrilintida. Destaca-se que, pelo menos parte destes efeitos, é por vias diferentes das utilizadas pelos análogos do GLP-1. Por exemplo, os efeitos no apetite ocorrem no tronco, ao contrário dos análogos do GLP-1 que são no hipotálamo. Assim, o uso associado dessas duas classes tem um bom potencial de sinergia.

Figura 1.
Mecanismo de ação dos análogos da amilina. Extraída da referência 5.

Resultados clínicos

Como vimos até agora, trata-se de uma área em franca e rápida expansão. Até o momento, dois estudos sobre a associação foram publicados. Um deles foi um estudo de fase 1 (publicado em 2021), buscava identificar a dose ótima e possíveis efeitos adversos graves. O outro foi de fase 2 (publicado no final de 2023) para avaliação preliminar de efetividade.

O primeiro aspecto que se destaca nestes dois estudos com CagriSema é o perfil de pessoas incluídas: em um dos estudos foram selecionados pacientes com IMC 27-39,9 kg/m2 sem doenças associadas e com baixo risco de eventos cardiovasculares; no outro eram elegíveis pessoas com DM tipo 2, IMC ≥ 27 kg/m2 e HbA1c 7,5-10%.

Quanto aos procedimentos dos estudos, o aumento de dose foi bem paulatino, com duplicação de dose a cada 4 semanas de ambos os fármacos e em injeções separadas uma vez por semana. Além disso, destaca-se que no estudo de fase 2 não havia recomendação ou programa alimentar ou de exercícios. Essa abordagem potencializa a identificação do efeito isolado do medicamento. No estudo de fase 1 diferentes doses alvo de cagrilintida foram comparadas contra semaglutida isoladamente. Já no estudo de fase 2 havia 3 braços: um com a combinação e outros dois com semaglutida e cagrilintida separadamente com a dose alvo de 2,4 mg para ambos fármacos.

Seguindo o objetivo dos estudos de fase 1, os resultados publicados em 2021 não identificaram nenhum efeito adverso inesperado ou grave e demonstraram que a dose teto do medicamento é 2,4 mg/semana, mesmo que dose de até 4,5 mg tenha sido avaliada. De forma esperada, os efeitos adversos mais comuns foram do trato digestivo com náuseas, vômitos, além da esperada saciedade precoce e redução do apetite. Reação no local da aplicação, com hiperemia e equimoses também foram comuns, assim como fadiga. É digno de nota que houve redução na pressão arterial e não houve alterações no sódio e potássio (apesar do aumento dos níveis séricos de aldosterona). O metabolismo dos fármacos também não parece ser influenciado pela administração conjunta.

Já o estudo mais recente foi direcionado para avaliar dados iniciais de eficácia e tem maior aplicabilidade clínica. Neste estudo, todos os indivíduos tinham DM tipo 2, e foi avaliado como desfecho primário a melhora da HbA1c e, como um dos desfechos secundários, perda de peso. Outros parâmetros, como colesterol, pressão arterial e tempo com glicemia no alvo também foram avaliados.

HbA1c e peso reduziram significativamente mais com a combinação do que com os medicamentos isolados. Por exemplo, enquanto a semaglutida isolada levou a perda de 5% do peso, a CagriSema levou a uma perda de 15%. Destaca-se também potenciais efeitos benéficos na pressão arterial com a combinação (-13 mmHg de pressão sistólica, comparado com efeitos neutros dos medicamentos isoladamente).

Quanto aos eventos adversos, destaca-se uma taxa de descontinuação de 10% para a combinação, semelhante entre os braços e de acordo com a maioria dos estudos com análogos do GLP-1. Por outro lado a taxa de efeitos gastrointestinais (leves a moderados) foi quase o dobro com a acombinação (58% vs 32%).

Em resumo, com o que vimos aqui, trata-se de um medicamento com bom potencial de redução de peso (e controle glicêmico)
adicional ao efeito isolado da semaglutida
e que, até o momento, não mostrou ter efeitos adversos inesperados ou graves.

Se esses resultados favoráveis se confirmarem, o medicamento será mais utilizado por pessoas com sobrepeso com complicações ou com obesidade. Indivíduos com DM tipo 2 também estarão no publico alvo, mas é provável que o principal determinante para seu uso seja o excesso de peso. Também, como é comum nestas situações, deverá ter um preço elevado. Portanto, provavelmente será utilizado por pessoas com obesidade que não responderam à semaglutida (ou outros análogos do GLP-1) isoladamente.

Para ficar de olho

O ponto mais importante sobre a CagriSema é que é um medicamento ainda em desenvolvimento. Não está disponível para uso clínico no Brasil ou mesmo fora do país - exceto em contextos de pesquisa. Os medicamento já está sendo testado em estudos de fase 3 (estudos de grande porte), onde será verificada a eficácia e segurança em médio prazo - informações ainda não são sabidas. Deve-se destacar que nas fases 1 e 2 de estudos clínicos (fase dos estudos apresentados acima) os pacientes incluídos nos estudos são mais saudáveis, portanto seus efeitos em um grupo mais heterogêneo de pacientes são incertos. Assim, recomendações de uso, contraindicações e demais aspectos ainda não são sabidos. De todas as formas, é muito provável que sejam semelhantes às recomendações dos análogos do GLP-1.

Além do desconhecimento sobre os efeitos e efeitos adversos em um grupo maior e mais variados de pessoas, fica a curiosidade de como este medicamento irá se comportar em termos de segurança (e benefício?) cardiovascular. Essa pergunta ganha maior peso mais recentemente, uma vez que um estudo divulgado recentemente mostrou que a semaglutida reduziu o risco de eventos cardiovasculares em pacientes com obesidade sem DM tipo 2 - efeito que nenhum medicamento para tratamento da obesidade havia atingido até agora.

Por fim, uma das questões centrais para o uso dos medicamentos incretínicos é o preço. Mesmo os representantes mais antigos chegam a um custo mensal de mais de R$500,00 (em especial nas doses para obesidade). Logo é esperado que, quando lançado, este fármaco seja acessível apenas para uma pequena fração da população.