Pielonefrite: quadro clínico e tratamento
Pielonefrite é definida tradicionalmente como infecção no parênquima renal. Seu quadro costuma ser acompanhado de sintomas urinários e sistêmicos, sendo febre uma das principais manifestações.
Apesar dessa classificação anatômica ser útil, mais recentemente tem se optado por uma abordagem mais funcional, agregando pielonefrite em um grupo maior de infecções complicadas do trato urinário. Por essa definição, todo quadro com sinais de acometimento para além da bexiga (cistite simples) é considerada complicado.
Na
Tabela 1,
temos os sinais de infecção urinária alta/complicada. Neste artigo, utilizamos essa classificação, já que ela divide de forma mais simples e direta aqueles pacientes com maior chance de acometimento sistêmico e evolução desfavorável.
Apesar disso, o leitor deve estar atento que algumas situações são de ainda maior risco (por exemplo, infecção urinária em pacientes transplantados ou com alterações anatômicas) e devem ter um acompanhamento mais próximo.
Tabela 1.Sinais de infecção do trato urinário complicada. Elaborado a partir da referência 2.
Febre (>37,7ºC) Tremor, calafrios, fadiga ou mal-estar marcadamente pior que seu estado basal Outros sinais de acometimento sistêmico Dor em flanco Dor à punho-percussão lombar Dor pélvica ou perineal em homens
Avaliação
O primeiro passo para identificar o paciente com infecção urinária alta e pielonefrite é procurar as manifestações da
Tabela 1
em pacientes com sintomas de infecção urinária.
O quadro clássico de pielonefrite é, portanto, sintomas de infecção urinária (disúria, aumento da frequência, urgência, dor suprapúbica), acompanhados de febre (às vezes com calafrios), dor lombar e dor à punho percussão lombar.
O médico deve estar atento aos sinais sistêmicos de deterioração e sepse, como hipotensão, taquicardia ou bradicardia, taquipnéia e má perfusão periférica. A instalação é bastante aguda, mas pode ser precedida de alguns dias de sintomas de cistite.
Na história clínica, é importante também investigar fatores de má resposta ao tratamento, que indicam necessidade de acompanhamento mais próximo. Os principais são diabetes, sexo masculino, instrumentação do trator urinário (cateter ureteral [cateter de duplo J],
stents
, cirurgias prévias), obstruções, imunossupressão e transplante renal.
Além da forma mais usual de pielonefrite, deve-se estar observar sinais adicionais, de outras apresentações mais raras e graves de pielonefrite — todas com maior risco de deterioração clínica e de levarem a insuficiência renal aguda.
A primeira é o
abscesso renal
, que pode ser uma complicação da pielonefrite e deve ser suspeitado em quem tem sintomas mais protraídos, com falha ou pobre resposta aos antibióticos. Pessoas com diabetes, anemia falciforme e nefropatia por analgésicos tem maior risco de
necrose de papila
, que se manifesta com sintomas de obstrução urinária.
Pielonefrite xantogranulomatosa
é uma forma crônica de pielonefrite, com destruição do parênquima renal e infiltração por tecido granulomatoso; costuma se manifestar por pielonefrites recorrentes e sintomas constitucionais como febre arrastada, perda ponderal, mal-estar e anemia. Já a
pielonefrite enfisematosa
, é a formação de gás dentro do parênquima renal, mais comum em pacientes com diabetes e obstrução urinária; o quadro é indistinguível da pielonefrite clássica.
O principal exame complementar é a urocultura com antibiograma.
Além de confirmar o diagnóstico, ela identifica o germe e o perfil de sensibilidade. Isso permite identificar o tratamento antimicrobiano adequado, com ajustes após início de seleção empírica ou revisão em caso de falha terapêutica.
Apesar da importância e utilidade da cultura de urina, o médico atendendo pacientes com suspeita de pielonefrite deve iniciar o tratamento antimicrobiano antes de qualquer resultado de cultura (que levam 24-48 horas), uma vez que pacientes com infecção urinária alta/pielonefrite já tem sinais de acometimento sistêmico e o atraso no início do tratamento leva a piores resultados.
O segundo ponto é que nem todos pacientes com pielonefrite terão urocultura positiva, pois pode não haver comunicação da infecção com o trato urinário, seja por abscesso, seja por obstrução mecânica. Culturas com microbiota múltipla devem ser consideradas contaminação na coleta ou manipulação da amostra, salvo em situações de fístulas entre o trato urinário e digestivo.
Além da urocultura, o exame de urina, com fita e revisão do sedimento são úteis, uma vez que a piúria está quase sempre presente. Ou seja, na sua ausência, explicações alternativas ao quadro devem ser investigadas.
Exames de imagem não são obrigatórios em todo paciente com suspeita de pielonefrite. Contudo, devem ser utilizados nos pacientes que não respondem adequadamente após 72 horas de tratamento, especialmente naqueles em que há fatores de risco para pior resposta ao tratamento conhecidos (ou em que se suspeita deles), como cálculos, obstruções, procedimentos prévios, sexo masculino. Tomografia é o exame preferencial pelas diretrizes, mas a ultrassonografia também é útil e mais disponível em algumas localidades.
Tratamento
Como já discutido, o início do tratamento deve ser imediato; a partir dos dados de tratamento de sepse, sabe-se que para cada hora de atraso no início do antimicrobiano há aumento expressivo da mortalidade. Salvo nas situações em que o paciente tenha uma cultura de urina prévia, o antibiótico inicial é selecionado de forma empírica. Ele deve ser dirigido contra germes gram negativos entéricos, que são os principais responsáveis por infecções urinárias. Além disso, deve-se levar em conta fatores que podem mudar a seleção inicial:
- Fatores de risco para germes multirresistentes.Os principais são diagnóstico de germe multiresistente, infecção relacionada a instituições de longa permanência ou internação hospitalar recente e uso de quinolona, sulfametoxazol-trimetripim, ou beta-lactâmico de amplo espectro.
- Padrão de resistência local, se disponível.
- Fatores de pior resposta do indivíduo, como alterações anatômicas, cálculos urinários e cirurgias prévias.
O tratamento deve ser mais agressivo em pacientes com sepse e com maior risco de evolução desfavorável. Usualmente, isso significa a escolha de uma cefalosporina de terceira ou quarta geração, beta-lactâmico com inibidor da betalactamase ou mesmo carbapenêmicos, se há suspeita de resistência estendida a beta-lactâmicos (germes ESBL).
Em pacientes com quadros de menor risco e gravidade, em que se opta por regime ambulatorial, pode-se optar por quinolonas ou mesmo sulfametoxazol-trimetropin ou amoxicilina-clavulanato, após uma dose inicial de um antibiótico parenteral. A
Tabela 2
apresenta alguns esquemas de tratamento e comentários para sua seleção.
Tabela 2. Antimicrobianos selecionados para tratamento de infecção do trato urinário complicada. Elaborado a partir da referência 2.
- Meropenem 1 grama endovenoso a cada 8 horas, preferencialmente em infusão estendida
Comentários:
para situações de gravidade e com alta suspeita de resistência estendida a beta-lactâmicos (bactérias ESBL).
- Vancomicina 15-20mg/kg endovenoso a cada 8-12 horas
Comentários:
alguns autores sugerem tratamento por até 7 dias. Taxa de cura entre 80-100%.
- Cefepime 2 gramas a cada 12 horas por via endovenosa
Comentários:
Cefalosporina de quarta geração com ação antipseudomonas.
- Piperacilina-tazobactam 3,375 gramas a cada 6-8 horas via endovenosa; preferência por infusão estendida a cada 8 horas.
Comentários:
evitar esquemas mais curtos.
- Ceftriaxona 1g por via intramuscular em dose única
Comentários:
deve ser seguido de tratamento via oral.
- Sulfametoxazol-troimetropim 400 mg/80 mg 2 comprimidos duas vezes ao dia por via oral, 7 a 10 dias
Comentários:
para complementação após dose parenteral inicial.
- Ciprofloxacina 500 mg por via oral durante 5 a 7 dias
Comentários:
para pacientes menos graves e com baixo risco de resistência e complicações com quinolonas.
Após os resultados do exame de cultura de urina, deve-se ajustar o espectro, evitando uso de antibióticos com espectro excessivamente amplo ou sem cobertura para o germe identificado. A duração do tratamento é usualmente de 7-14 dias.
Os principais fatores para indicar internação são sepse, alta chance de não adesão, baixa aceitação de via oral, presença de comorbidades (em especial se descompensadas) e idade elevada. Como vimos, em pacientes que se opta por tratamento ambulatorial, recomenda-se realizar a primeira dose na emergência durante um período de observação de 12-24 horas.