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Rabdomiólise: o que é e como investigar a causa?

A rabdomiólise é uma
síndrome aguda causada por destruição e dissolução na circulação de porções do músculo estriado
, seja por injúria direta ou indireta. As substâncias liberadas na circulação são mioglobina, cálcio e potássio. Quando em quantidades elevadas, essas substâncias levam a dano tóxico direto em vários pontos do organismo, promovendo injúria renal aguda (IRA), arritmias cardíacas e óbito.  

A intensidade da apresentação clínica tende a ser correspondente ao grau de injúria muscular e à causa subjacente. Os principais sinais e/ou sintomas que levam à suspeita de rabdomiólise são mialgia aguda (especialmente no grupo muscular acometido), fadiga ou perda de força, edema muscular e urina pigmentada.  

 Neste artigo, trazemos mais detalhes sobre o diagnóstico, causas, tratamento e prognóstico.

Diagnóstico clínico-laboratorial de rabdomiólise
 

Não existem critérios diagnósticos precisos para o diagnóstico, ou seja, ele é feito com base no quadro clínico do paciente.
A principal marca laboratorial da rabdomiólise é a elevação de creatina quinase
(CK), cerca de 5 vezes acima do valor superior do normal para o laboratório em paciente com contexto clínico compatível. 

O pico de CK costuma ocorrer entre 2 e 5 dias do insulto inicial, e o valor de CK tem importância prognóstica. Elevações acima de 100.000 U/L podem ser observadas, e pacientes com dosagens de CK superiores a 15.000 U/L têm maior risco de desenvolver IRA. Características como sexo, idade e raça podem interferir no valor basal de CK: jovens, atletas e negros costumam ter os níveis mais elevados. Valores de CK > 10.000 U/L definem um episódio de rabdomiólise como grave, e pacientes com valores maiores de 60.000 U/L devem ter o potássio monitorado com frequência (até de 4/4 horas). Além da elevação de CK, outras enzimas presentes no músculo podem estar elevadas como aldolase, lactato desidrogenase e as aminotransferases.  

Nem toda elevação de CK indica dano na musculatura periférica. Agora em desuso para o diagnóstico de infarto agudo, a dosagem da fração MB da CK indica dano miocárdico. Outras causas de elevação (usualmente em níveis menores que os encontrados em rabdomiólise) são doenças neuromusculares primárias (miodistrofias, miosites), paralisia hipocalêmica periódica, isquemia cerebral extensa, hemólise e injeções intramusculares.  

Outra causa de elevação de CK sem motivos aparentes é a presença de macroenzima de CK. Trata-se de um agregado protéico que leva a valores persistentemente elevados de CK sem outro sinal clínico ou laboratorial de doença muscular. O significado clínico desta situação é incerto e pode estar associado com uma série de condições, desde hipotireoidismo até neoplasias hematológicas. 

Além do aumento nos níveis de CK, um indicador mais específico para o diagnóstico de rabdomiólise é a presença de mioglobinúria.
A coloração característica da urina é geralmente vermelho escuro ou marrom.
Contudo, a constatação distintiva ocorre ao observar a reação à hemoglobina na fita de teste bioquímica (também conhecida como exame "fita" ou dipstick) da amostra. Vale ressaltar que a avaliação citológica do sedimento urinário não revela a presença de hemácias, uma vez que o reagente na fita de urina interage tanto com a hemoglobina quanto com a mioglobina. No entanto, em casos de lesão muscular, não há eliminação de hemácias na urina, apenas fragmentos da proteína muscular. Apesar de disponível em alguns laboratórios, a dosagem de mioglobina sérica é pouco útil.  

Outros achados laboratoriais são acidose metabólica com
anion gap
aumentado, hipercalemia e hiperfosfatemia; na fase aguda, pode ocorrer hipocalemia por deposição de cálcio no tecido danificado, seguido de hipercalemia na fase de recuperação. Trombocitopenia e coagulação intravascular disseminada também podem ser observados em casos gravíssimos.  

Causas da rabdomiólise
 

A rabdomiólise tem diferentes etiologias, que podem ser herdadas ou adquiridas, causando injúria direta ou indireta. Mecanisticamente, elas promovem depleção de ATP no tecido muscular e ativação de proteases que levam a necrose muscular. As principais causas estão descritas abaixo: 

Trauma ou compressão muscular
 

  • Trauma - especialmente aqueles com esmagamento de membro 
  • Imobilidade prolongada 
  • Cirurgias - ortopédicas ou vasculares 
  • Síndrome compartimental 
  • Choque elétrico (tensão de alta-voltagem ou acidente com raio) 

Esforço não-traumático
 

  • Exercício intenso - com ou sem insolação 
  • S
    tatus
    epilético ou asmático 
  • Hipertermia maligna 
  • Síndrome neuroléptica maligna 
  • Miopatias  
  • Anemia falciforme ou traço falciforme 

Não-traumática não relacionada a esforço
 

Medicamentos e toxinas 

  • anticolinérgicos 
  • anfetaminas 
  • anti-histamínicos 
  • etanol, opioides, cocaína 
  • estatinas 
  • succinilcolina 
  • corticoide 
  • ciclosporina 
  • itraconazol 
  • canabinoides 

Infecções 

Distúrbios eletrolíticos (hipocalemia, hipo/hipernatremia, hipofosfatemia) 

Doenças endócrino / metabólicas 

  • pancreatite 
  • cetoacidose diabética ou estado hiperosmolar não-cetótico 
  • acidose tubular renal 
  • hipo e hipertireoidismo 

Doenças inflamatórias e autoimunes - polimiosite, dermatopolimiosite 

O primeiro passo na identificação etiológica é
anamnese e exame físico
. O principal aspecto é atentar para traumas, em suas diversas formas (desastres naturais, acidentes de transporte, violência, imobilização). A própria injúria traumática pode desencadear um processo em pacientes com outros fatores de risco para rabdomiólise, como uso alterações genéticas ou uso de medicamentos. 

A prática de atividade física intensa e repetida, assim como as condições em que esse esforço se desenvolveu, devem sempre ser questionadas; treinamentos militares são cenários comuns de desenvolvimento de rabdomiólise. Ao exame físico, deve-se pesquisar a injúria de grupos musculares que, recobertos por uma fáscia protetora (pernas, braços), podem sofrer síndrome compartimental e dano isquêmico muscular e/ou neural irreversíveis. 

O inquérito sobre uso de medicamentos, suplementos ou exposição a toxinas é fundamental. Apesar da grande preocupação relacionada a estatinas, é mais comum o efeito adverso de mialgia, e a incidência de rabdomiólise ao uso da droga é raro.  O abuso de substâncias ilícitas, especialmente heroína e cocaína, é causa de lesão muscular. Outra condição que se deve ressaltar é a hipertermia maligna. Trata-se de um evento grave caracterizado por um estado hipermetabólico em indivíduos suscetíveis, geralmente associado a alterações genéticas predisponentes, com evidente agregação familiar. Este evento impacta diretamente no metabolismo energético e/ou no influxo celular de cálcio, especialmente sob estímulos desencadeantes, como anestésicos voláteis ou relaxantes neuromusculares, notadamente a succinilcolina. O quadro clássico é de aumento de temperatura e rigidez muscular sem sinais de infecção ativa após um procedimento com anestesia geral. Apesar do forte componente genético, a maioria dos pacientes com hipertermia maligna tem história negativa em exposições prévias, e toda cirurgia deve ser considerada uma exposição de risco. 

Diversas infecções podem estar relacionadas à incidência de rabdomiólise, e, além da suspeita clínica, pode ser necessária investigação microbiológica e/ou sorológica . Dentre elas, deve-se considerar infecções virais (Epstein-Baar, vírus da imunodeficiência humana, influenza A e B, coronavírus, citomegalovírus, Coxsackie) ou bacterianas (
Mycoplasma pneumoniae,
polimiosite bacteriana
, Legionella, Streptococcus, Staphylococcus, E. coli,
leptospirose); malária também deve ser considerada em regiões endêmicas.
 
  

Tratamento e prognóstico de rabdomiólise
 

Os principais pilares do manejo de pacientes com rabdomiólise são
remoção do fator causador
(por isso a importância de revisão cuidadosa de possíveis etiologias), hidratação vigorosa e correção de distúrbios eletrolíticos.
O objetivo é manter uma diurese aproximada de 1-3 mL/kg/h.
Pela necessidade de monitorização constante clínico-laboratorial, a internação em leito de terapia intensiva pode ser necessária. Medidas adicionais podem ser consideradas em casos específicos: 

  • hidratação com solução de bicarbonato para alcalinizar a urina deve ser considerada se houver acidose persistente; 
  • dantrolene se suspeita de hipertermia maligna; 
  • procedimentos cirúrgicos de descompressão muscular se houver evidência de síndrome compartimental. 

 Uma das principais complicações é a IRA, e
o prognóstico depende da extensão do dano muscular e do tempo até o início do tratamento
. Os maiores preditores de necessidade de terapia renal substitutiva ou morte são idade > 50 anos, creatinina inicial > 1,4 mg/dL, nível sérico de cálcio inicial < 7,5 mg/dL, fósforo inicial > 4 mg/dL e bicarbonato inicial < 19 mEq/L. Síncope, convulsão, exercícios, uso de estatina e miosite são etiologias associadas com melhor prognóstico.