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Tipos de Traumas Psicológicos

Segundo o
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
(DSM-5; APA, 2013), o trauma é definido como exposição a eventos que envolvem ameaça de morte, lesão grave ou violência sexual. A exposição pode ocorrer de maneira direta, como vítima do evento; indiretamente, ao testemunhar a ocorrência; por meio da notícia de que o evento afetou um familiar próximo ou amigo íntimo (desde que tenha sido acidental ou violento); ou, ainda, por exposição repetida ou intensa a detalhes impactantes do  —  como profissionais que lidam com situações extremas, como socorristas, policiais ou trabalhadores da área da saúde. Essa definição tem sido periodicamente revisada e atualizada a cada nova edição do manual, com base em avanços científicos e consensos entre especialistas. 

Classificação dos Traumas
 

Existem diferentes formas de categorizar o trauma psicológico. Algumas apresentam tipologias baseadas na natureza e na cronicidade da exposição ao trauma, enquanto outras mencionam categorias de eventos específicos. 

O DSM exemplifica tipos de eventos dentro das categorias de morte, lesão grave ou violência sexual:  

  • Traumas sexuais (estupro, tentativa de estupro, ser forçado(a) a realizar qualquer tipo de ato sexual mediante força ou ameaça de dano, experiências sexuais não-consentidas e/ou desconfortáveis) 
  • Violência física (ser atacado, agredido, esbofeteado, chutado, espancado) 
  • Acidentes de transporte 
  • Doença/lesão 
  • Violência urbana 
  • Morte de pessoa próxima 
  • Acidentes de veículo motorizado 
  • Exposição a restos humanos 
  • Desastres naturais 
  • Tortura 
  • Sequestro/cárcere privado/prisão 
  • Trauma relacionado à guerra. 

Alguns pesquisadores vão além da classificação oficial. Kira (2001), por exemplo, propõe uma taxonomia baseada em duas classificações: 

 

1. No impacto do funcionamento individual: 

  • Trauma de Apego:
    compromete a conexão afetiva, segurança e confiança, especialmente em relacionamentos íntimos ou cuidador-criança. Pode afetar o desenvolvimento emocional e gerar estilos de apego evitativo, desorganizado ou transtornos de personalidade em adultos. Exemplos: abandono, morte de pais e outros entes queridos, sequestro de bebês, casos extraconjugais, divórcio.  
  • Trauma de Autonomia / Identidade:
    interfere no desenvolvimento de autonomia e identidade saudáveis, levando a sentimentos de incompetência, inadequação, alienação e perda de controle sobre si e o mundo. Exemplos: abuso sexual e físico, violência doméstica, estupro, escravidão, prisioneiros de guerra, tortura e genocídio. 
  • Trauma de Interdependência:
    afeta a capacidade de formar e manter relacionamentos de apoio, especialmente aqueles cruciais para a sobrevivência ou bem-estar, interferindo na sensação de pertencimento, conexão e significado. Exemplos: mudar de cidade/país para uma criança, com perda de relacionamentos de longa data e sistemas de apoio, desraizamento de refugiados, perda de afiliação por suspensão ou exclusão forçada. 
  • Trauma de Autorrealização:
    afeta a busca por objetivos percebidos como centrais para a sobrevivência ou progressão, quando ocorre falha em atingir uma meta considerada essencial para a sobrevivência ou o avanço na vida, como demissão ou mudança de planos de vida com relação a casamento/filhos.  
  • Trauma de Sobrevivência:
    envolve ameaças à própria vida ou de entes queridos. Um sistema de crenças sobre a vida, a morte e o destino — pautado em religião, filosofia ou ideologia — contribui para regular o processamento desses traumas e para lidar com os terrores por eles ativados. 

É importante destacar que, segundo os especialistas responsáveis pelos critérios do DSM, alguns dos eventos incluídos nesta classificação seriam considerados somente estressores, e não traumas propriamente ditos. No entanto, pesquisas indicam que determinados eventos classificados como estressores podem gerar mais sintomas de TEPT do que os chamados “traumas oficiais” (Larsen & Berenbaum, 2017).  

2. Nas características objetivas ou externas do evento traumático: 

  • Trauma “Fictício”:
    acúmulo de estressores não traumáticos que podem criar uma experiência semelhante ao trauma, podendo se somar a traumas oficiais, ampliando seus efeitos. Um exemplo é a traumatização secundária pós-trauma, causada por atitudes socioculturais negativas e falta de apoio, como pode ocorrer em um divórcio litigioso, onde um indivíduo pode sofrer violência psicológica do ex cônjuge, violência institucional e por parte da sociedade. 
  • Trauma vicário:
    experiências que afetam pela exposição indireta. Exemplos incluem crianças que testemunham violência doméstica, saber que um ente querido sofreu violência sexual, profissionais que socorrem vítimas de acidentes, incêndios, etc., transmissão coletiva (ex. escravidão) ou geracional (traumas familiares). 
  • Traumas Diretos:
    eventos traumatogênicos que podem ser induzidos internamente (como doença terminal, dor incontrolável) ou externamente (eventos naturais, como enchentes, ou provocados pelo homem). 

Ainda, os traumas provocados pelo homem podem ser simples (Tipo I), resultantes de um único evento traumático súbito, ou complexo (Tipo II), resultante da exposição repetida ou prolongada a eventos extremos. O Tipo II é mais comumente associado a transtornos de personalidade.  

Trauma e Adoecimento Mental
 

Traumas são comuns. 87% da população brasileira já passou por uma experiência potencialmente traumática, sendo as mais comuns violência urbana e morte de um ente querido (Luz et al., 2016).  Contudo, felizmente, a maioria das pessoas expostas a esses eventos (cerca de 65.1%) se recupera sem a necessidade de intervenção (Bonanno et al., 2006). O que determina quem irá adoecer e quem será resiliente envolve fatores individuais e ambientais. Um desses fatores é o tipo de trauma. Em brasileiros, pessoas que passaram por traumas de guerra são os que mais desenvolveram TEPT (risco condicional de 67,8%). Na sequência, 49,1% das vítimas de abuso sexual na infância desenvolvem TEPT, o que ocorre com 44,1% das vítimas de violência sexual na idade adulta (Luz et al., 2016).  

Apesar de o TEPT ser o principal desfecho, outros transtornos também podem emergir após um trauma. Após o furacão Andrew, que ocorreu em 1992 na Flórida, pesquisadores rastrearam o desenvolvimento de transtornos mentais em quem não apresentava sintomas seis meses antes do trauma e constataram que 36% das vítimas desenvolveram TEPT, 30%, Depressão Maior, 11% desenvolveram Transtorno de Ansiedade Generalizada e 10%, Transtorno do Pânico (David et al., 1996).  

Implicações Clínicas
 

A avaliação clínica do trauma deve ir além da definição estrita dos Critérios do DSM, podendo incluir diferentes tipos de evento, reconhecendo que alguns têm riscos condicionais mais altos para TEPT do que outros (ex: trauma de guerra e sexuais vs. acidentes ou desastres naturais). É fundamental considerar traumas cumulativos e o acúmulo de estressores ao longo da vida, além da idade no momento do evento, experiência subjetiva do trauma e as reações peritraumáticas (durante o evento) e pós-traumáticas, pois seus efeitos aditivos podem ser semelhantes a um trauma e influenciar o adoecimento mental. 

Conclusão
 

O aprofundamento na compreensão dos diferentes tipos de traumas psicológicos é essencial para uma prática clínica mais sensível, eficaz e fundamentada. Eventos que adoecem não se restringem a risco de morte, lesão grave ou violência sexual, como definido pelo DSM-5. A literatura científica amplia essa perspectiva ao considerar traumas relacionais, cumulativos, sociais e estruturais, que muitas vezes são negligenciados nas classificações diagnósticas tradicionais, mas têm impactos significativos sobre o funcionamento psíquico e emocional. Essa diversidade de manifestações e classificações reforça a necessidade de uma avaliação clínica cuidadosa, que considere a história de vida do paciente, sua experiência subjetiva e a presença de fatores de risco e proteção. Em suma, a escuta clínica deve estar atenta às histórias de exclusão, negligência, violência invisível e sofrimento persistente que não cabem nos critérios diagnósticos convencionais, mas que deixam marcas profundas no psiquismo. 

Autoras
 

Raquel Gonçalves
 

Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Possui mestrado em psicologia pelo Instituto de Psicologia da UFRJ (IP/UFRJ) e doutorado em Saúde Mental pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ (IPUB/UFRJ). Durante o período do doutorado, foi pesquisadora visitante na Universidad de Granada (Espanha), com bolsa de estudos pelo Programa de Doutorado Sanduiche no Exterior (PDSE- CAPES), onde atuou na área de psicofisiologia. Atualmente cursa o pós-doutorado em ciências biomédicas (fisiologia e farmacologia) no Laboratório de Neurofisiologia do Comportamento (Universidade Federal Fluminense). É terapeuta certificada pela Federação Brasileira de Terapias Cognitivas (FBTC) e membro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP). Atualmente é representante dos egressos do Programa de Pós-graduação em Psiquiatria e Saúde Mental (PROPSAM - IPUB/UFRJ). Atua como pesquisadora colaboradora na equipe do Laboratório Integrado de Pesquisas sobre Estrese (LINPES) do Programa de Pós-graduação em Psiquiatria e Saúde Mental (PROPSAM - IPUB/UFRJ). 

Tânia Fagundes Macedo
 

Psicóloga pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestra, Doutoranda e Representante Discente pelo Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria e Saúde Mental do Instituto de Psiquiatria da UFRJ (PROPSAM/IPUB/UFRJ). Terapeuta certificada pela FBTC. Formação em Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), Terapia do Esquema e Terapia do Esquema para casais. Pesquisadora com foco em trauma e violência sexual contra mulheres. Vice-coordenadora da equipe de Psicologia do Laboratório Integrado de Pesquisa em Estresse (LINPES/UFRJ). Supervisora Clínica. Professora em cursos de Pós-Graduação em TCC e Terapia do Esquema. 

Beatriz de Oliveira Meneguelo Lobo
 

Psicóloga e Mestra em Psicologia/Cognição Humana pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Especialista em Terapias Cognitivo-Comportamentais e com Formação em Terapia do Esquema. Professora em cursos de Pós-Graduação em Terapia Cognitivo-Comportamental, Terapia Cognitivo-Comportamental na Infância e Adolescência e Terapia do Esquema. Supervisora Clínica. Pesquisadora Colaboradora no Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental - LaPICC da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da Universidade de São Paulo (USP). 

Editora-chefe: Carmem Beatriz Neufeld
 

Psicóloga. Livre docente em TCC pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - USP. Pós-Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutora e Mestra em Psicologia pela PUCRS. Fundadora e Coordenadora do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental – LaPICC-USP. Professora Associada do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – USP. Presidente da Federação Latino Americana de Psicoterapias Cognitivas e Comportamentais - ALAPCCO (2019-2022). Presidente-fundadora da Associação de Ensino e Supervisão Baseados em Evidências - AESBE (2020-2023). Bolsista Produtividade do CNPq.