Transtornos alimentares: avaliação geral das complicações clínicas
Transtornos alimentares são um grupo heterogêneo de condições psiquiátricas que tem em comum hábitos alimentares disfuncionais com consequências orgânicas de intensidade variada.
As principais doenças incluídas nesta categoria são a anorexia nervosa, a bulimia nervosa e o transtorno de compulsão alimentar periódica (
binge eating disorder
em inglês). Destas, se destaca a anorexia nervosa por seus efeitos sistêmicos mais intensos e sua maior mortalidade.
Estima-se que a chance de morrer de pessoas com a condição seja 6 vezes maior que a população em geral e que até 25% dos pacientes tentem o suicídio em algum momento do seu adoecimento. Em suma, a anorexia nervosa é considerada umas das condições de saúde mental mais mortais.
Apesar do destaque para a anorexia nervosa por sua gravidade, os transtornos alimentares possuem uma grande intersecção entre si — e a maioria deles não é dependente do peso. Por exemplo, bulimia nervosa está associada com complicações relacionadas a hábitos purgativos (e variações rápidas de peso), mesmo que o indivíduo tenha um peso corporal normal. De outra forma, deve-se lembrar que o
binge eating
é a condição mais comum em adultos e não raramente fica não diagnosticada. Por fim, um ponto importante de se ressaltar é que transtornos alimentares não são uma opção das pessoas e, sim, uma condição causada pela combinação de múltiplos fatores biológicos, ambientais e genéticos.
Nesta postagem, iremos focar nas complicações clínicas dos transtornos alimentares. Veremos primeiro como avaliar os pacientes de uma forma geral e depois discutiremos as complicações mais comuns uma a uma.
Pela gravidade e repercussões sistêmicas mais graves, as manifestações de anorexia nervosa são as mais discutidas. Entretanto, o profissional atendendo estes indivíduos não deve negligenciar os problemas clínicos que pacientes com outros transtornos alimentares podem apresentar.
Avaliação geral
Complicações clínicas dos transtornos alimentares podem acometer os mais diversos órgãos e sistemas do organismo. Esses problemas podem ser consequência da inanição, de hábitos purgativos ou do
binging
. Na
Tabela 1
apresenta-se uma seleção de manifestações clínicas mais relevantes e comuns e do principal comportamento causador.
Tipicamente, pacientes com anorexia nervosa tem manifestações de inanição e aqueles com bulimia nervosa tem mais manifestações relacionadas à purgação. Apesar disso, existe sobreposição tanto de comportamentos, quanto de manifestações. Pacientes com comer compulsivo (
binge
) têm menos manifestações.
Tabela 1.
Manifestações clínicas dos transtornos alimentares e o comportamento mais associado com elas.
Vale destacar que a fome auto-induzida leva a catabolismo proteico e lipídico, que leva a lesões celulares e trofia do volume de órgãos como cérebro, coração, fígado, rins, intestino e músculos. Ou seja, apesar de grande parte das manifestações regredirem com o tratamento, alguns danos são perenes.
O número de órgão afetados tende a aumentar quanto maior a perda ponderal. Um dos objetivos da avaliação clínica é determinar a presença de complicações que necessitem de internação hospitalar (
Tabela 2
).
Tabela 2.
Critérios para internação hospitalar na anorexia nervosa.
Apesar das diferentes e graves manifestações sistêmicas, alguns indivíduos podem parecer saudáveis à ectoscopia, apesar de estarem bastante doentes do ponto de vista clínico. Ou seja, o organismo é bastante resiliente aos comportamentos alimentares disfuncionais, mas com um equilíbrio tênue em que pequenos insultos adicionais geram graves consequências. Por fim, vale lembrar que, por mais que pareça uma condição comparativamente mais benigna (em relação a anorexia nervosa), a bulimia nervosa pode causar graves flutuações transitórias de eletrólitos, inclusive em níveis ameaçadores à vida.
Todos os pacientes devem passar por avaliação clínica com história e exame físico. Os sintomas mais comuns são amenorreia, fadiga e intolerância a esforços, fraqueza, intolerância ao frio, palpitações e tontura, constipação, estufamento, dor abdominal e saciedade precoce.
No exame físico, deve-se dar especial atenção ao peso (atentar para técnicas para mascarar o baixo peso, como carregar objetos escondidos na roupa) e aos sinais vitais, incluindo avaliação de hipotensão postural e taquicardia reflexa. Além disso, alterações cutâneas (xerose, lanugo, hipercarotenemia), hipotermia, edema periférico e fraqueza muscular são algumas das manifestações mais comuns.
Quanto a avaliação com exames complementares, recomenda-se realizar para a maioria dos pacientes:
- hemograma completo;
- aminotransferases hepáticas, fosfatase alcalina, tempo de protrombina e albumina;
- creatinina e ureia, bem como eletrólitos (sódio, potássio, calcio, fósforo e magnésio);
- hormônio tireoestimulante, vitamina D, beta-HCG em mulheres, testosterona em homens;
- eletrocardiograma.
Além destes exames, os achados do exame clínico devem ser investigados com exames adicionais — com especial atenção para manifestações de acomentimento cardiovascular e um baixo limiar para investigação com ecocardiograma.
Mulheres com amenorreia por mais de 9 meses, deve-se realizar densitometria óssea. E, por fim, manifestações atípicas, como progressão constante (apesar do tratamento) e comprometimento cogntivo, deve-se considerar imagem do sistema nervoso central para descartar causa secundária.
Adicionalmente, deve-se estar atento a diagnósticos diferenciais de transtornos alimentares. São diagnósticos a serem considerados neoplasias, tuberculose e HIV, hipertireoidismo e diabetes, bem como doenças do trato digestivo, como doença Celíaca e de Crohn.
Órgãos e sistemas acometidos
Sistema cardiovascular
Boa parte da mortalidade relacionada aos transtornos alimentares se dá pelos eventos cardiovasculares associados. Do ponto de vista estrutural, pode haver redução da massa cardíaca, com fibrose miocárdica e prolapso da válvula mitral, bem como eventual derrame pericárdico. Trata-se de alterações identificáveis ao ecocardiograma e que, em conjunto, levam a menor tolerância a esforços físicos, comprometimento da função sistólica e do débito cardíaco. A maioria dessas manifestações só surgem quando há redução para menos de 80% do peso ideal.
Já quanto a manifestações funcionais, se destaca o aumento do intervalo QT (que pode induzir à temida taquicardia ventricular com
torsades de pointes
), usualmente relacionado a distúrbios eletrolíticos e não primariamente ao transtorno alimentar. Apesar da apreensão com aumento do intervalo QT, o achado mais comum é bradicardia sinusal, mas bloqueios atrioventriculares já foram descritos. Além das manifestações eletrocardiográficas, como já discutido, deve-se estar atento a hipotensão, hipotensão postural e taquicardia reflexa, pois são marcadores de acometimento miocárdico e tende a melhorar com a recuperação do peso.
Sistema endócrino
O evento endocrinológico mais comum é o hipogonadismo, que tipicamente se manifesta com amenorreia, mas também com redução do volume mamário, atraso puberal ou puberdade completa em adolescentes e redução das características sexuais secundárias em homens. Amenorreia tende a surgir com perda de 20% do peso corporal, mas exercícios intensos podem contribuir mesmo com quadros menos intensos de emagrecimento.
Na maioria das pacientes, a menstruação reinicia com recuperação do peso, mas em até 30% das pessoas pode haver persistência da amenorreia. Apesar da amenorreia, redução da libido e da fertilidade, mulheres com anorexia nervosa (e outros transtornos alimentares) podem engravidar e contracepção deve ser estimulada até melhor controle do quadro, para maior segurança tanto da criança quanto da mãe.
Outra manifestação endócrina muito relevante é o comprometimento da massa óssea, uma vez que transtornos alimentares tendem acometer mulheres no momento que estão constituindo o pico de massa óssea. Ou seja, trata-se de uma complicação de efeitos duradouros para saúde do indivíduo. Dessa forma, deve-se buscar recuperação nutricional, manter níveis adequados de vitamina D, cálcio. Naquelas mulheres que não recuperam ciclos menstruais, deve-se optar pela reposição de estrógenos em doses fisiológicas. Além disso, pode haver alterações nos exames de função tireoidiana como ocorre em outras doenças sistêmicas (antigamente denominado "eutireoideo doente").
Distúrbios eletrolítcos
Como apresentado na
Tabela 1
, podem ocorrer diferentes alterações eletrolíticas e ácido básicas. Primariamente, a anorexia nervosa leva a disfunção do hormônio antidiurético, comprometimento da concentração urinária e hipo ou hipernatremia.
Além das alterações no sódio, hipomagnesemia, hipofosfatemia e hipocalemia são marcadores de desnutrição e podem ser exacerbados por vômitos e uso de laxativos e diuréticos. Assim, também estão presentes em pessoas com bulimia nervosa. No processo terapêutico e de alimentação, pode ocorrer a síndrome de realimentação e exacerbar as alterações. Idealmente, elas devem ser corrigidas antes de iniciar o tratamento da desnutrição calórica.
Outras manifestações
Além das principais manifestações apresentadas acima, diversos outros sistemas podem ser acometidos:
- No sistema gastrointestinal pode havergastroparesia, constipação, comprometimento do paladar, pacreatite e hepatite, refluxo e síndrome da artéria mesentérica superior.
- Do ponto de vista ventilatório, pode haver hipoventilação, aspiração nos episódios de vômitos, além de acometimento mediastinal e pneumotórax em casos graves.
- A restrição calórica em longo prazo leva a danos cerebrais irreversíveis, com atrofia cerebral. Além disso, encefalopatia de Wernicke e síndrome de Korsakoff foram descritas como consequência de anorexia nervosa.
- Manifestações dermatológicas são bastante variadas, como betacarotenemia, xerose, desenvolvimento de lanugo, acne, dermatite seborréica e cicatrização mais lenta.
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