Transtornos Disruptivos: diagnóstico diferencial e caso clínico
Como citar: Anjos Filho, N. C. dos & Neufeld, C. B. (2022, mês data.). Diagnóstico diferencial nos transtornos disruptivos: um estudo de caso clínico. Blog do Secad. [Site]
Os Transtornos Disruptivos envolvem condições clínicas em que os indivíduos compartilham sintomas referentes a dificuldades em modular condutas agressivas, impulsivos e o autocontrole. Desse modo, é frequente a ocorrência de problemas comportamentais que repercutem negativamente nas relações interpessoais, na segurança e bem-estar de outras pessoas e na violação de normas sociais (Milone & Sesso, 2022). Para compreender melhor a complexidade dos Transtornos Disruptivos, confira a descrição de um caso clínico e, em seguida, algumas considerações sobre a realização do diagnóstico diferencial.
Motivo da busca do atendimento
Ian é um adolescente branco, de classe média alta, tem 12 anos de idade e mora com os pais e dois irmãos (uma irmã de 8 anos e um irmão de 3 anos). Ele estuda em uma escola particular da cidade e cursa o 6º ano. Ian foi encaminhado ao ambulatório de saúde mental infantil pelo pronto-socorro do hospital local para uma avaliação emergencial, por ameaçar de morte uma professora.
História da doença atual
No dia de uma avaliação, Ian tirou uma faca do bolso na escola e ameaçou matar sua professora depois que ela lhe deu uma advertência por mau comportamento no intervalo entre as aulas e lhe informou que iria ligar para seus pais para contar da briga que ele se envolveu com outros colegas. Quando os pais de Ian não puderam ser contatados imediatamente, o pessoal de segurança da escola o transportou para uma unidade de saúde de emergência porque ele continuou a ser combativo e desafiador verbalmente com o diretor na secretaria da escola. Uma vez na unidade de saúde, Ian ficou mal-humorado e retraído e se recusou a falar com a equipe médica. Quando seus pais chegaram ao local, eles contaram aos profissionais de saúde a história do comportamento destrutivo de Ian na escola e seu comportamento opositor e agressivo desde tenra idade, escalando para bater nos irmãos e, mais recentemente, brigar na escola e bater e chutar seus pais quando tentavam discipliná-lo. Embora Ian tenha apresentado um comportamento perturbador desde tenra idade, sua mãe relatou um aumento da raiva e agressividade do filho desde o nascimento do irmão mais novo, bem como um aumento correspondente em sua própria raiva e reações mal-humoradas a Ian. Na unidade de saúde, Ian negou ideação ou planos suicidas ou homicidas e, após várias horas, foi liberado sob custódia de seus pais, com consulta marcada para o dia seguinte em uma clínica de psiquiatria e psicologia.
História pregressa da doença
A entrevista e o histórico dos pais de Ian na clínica de psiquiatria e psicologia indicaram uma criança que desde a primeira infância tinha um temperamento difícil, irritabilidade exigente e dificuldade em desenvolver hábitos regulares de sono. Sua mãe relatou que Ian “nunca engatinhou, mas pareceu se levantar e começar a correr um dia e tem corrido desde então”. Ele estava "em tudo", era aparentemente destemido e tinha que ser constantemente vigiado e monitorado por comportamentos perigosos, como estantes e escada. Ele não respondia bem quando os adultos lhe diziam “não” e quando fisicamente impedido de atividades preferidas ou arriscadas. Ele ficava muito chateado, gritava, chorava e fazia birras. Na Educação Infantil, no Grupo 5, aos cinco anos de idade, Ian era agressivo com outras crianças, beliscando e batendo nelas, e impulsivamente pegava brinquedos de seus pares. Ele fazia birras quando a professora intervia para devolver o brinquedo. Ele tinha dificuldade em fazer transições de uma atividade para outra e era incapaz de se acomodar ou descansar em momentos de silêncio. A coordenação pedagógica da escola sugeriu que ele repetisse o Grupo 5 antes de ir para o primeiro ano, embora os pais discordassem. Nos primeiros anos do ensino fundamental, Ian continuou a apresentar um comportamento perturbador. Ele tinha dificuldade para sentar-se em sua cadeira e, frequentemente, ficava andando pela sala. Além disso, tinha dificuldade de prestar atenção nas explicações da professora. Ele também continuou a mostrar agressividade em relação a outras crianças quando frustrado, batendo impulsivamente quando não conseguia o que queria. No terceiro e quarto ano, ele continuou a ser agressivo com os colegas de classe, tinha dificuldade em completar suas atividades em sala de aula e fazia barulhos perturbadores em sua cadeira, que incomodavam outras crianças. Ele parecia ser de inteligência média ou superior, mas tirava notas baixas, principalmente por não completar tarefas ou entregar trabalhos que eram solicitados para serem realizados em casa. Desse modo, sua professora moveu sua mesa para a frente da classe, mas parecia não adiantar. Ao longo dos anos, à medida que as expectativas comportamentais na escola aumentavam e a tolerância dos professores diminuía, seu comportamento suscitou níveis cada vez maiores de feedback corretivo, negativo e críticas dos professores. Além do ambiente escolar, no contexto domiciliar, Ian possuía muita dificuldade em obedecer às regras e aos pedidos dos adultos. Em casa, seus pais reagiam ao comportamento do adolescente com crescente frustração, crítica e hostilidade. O pai batia em Ian com frequência e, de acordo com sua mãe, xingava Ian quando ele estava com muita raiva, mas isso não parecia atingir o nível excessivo de abuso físico, embora fosse considerado muito prejudicial para o desenvolvimento infantil. Sua mãe também admitiu gritar, repreender e xingar Ian, enfatizando que sempre depois desses comportamentos se sentia culpada. Ian bateu pela primeira vez em sua mãe em uma dessas interações disciplinares. Depois disso, suas birras aumentaram e incluíam bater e chutar os pais quando ele não conseguia o que queria. Por exemplo, o adolescente agrediu os pais para que eles lhe dessem dinheiro para ir comer em uma rede famosa de fast food. Seus pais admitiram que suas abordagens não pareciam estar funcionando, mas não sabiam o que fazer para que o filho mudasse o comportamento disfuncional. Ian parecia cada vez mais irritado e fora de controle, e seus pais não sabiam como lidar com ele, principalmente por que o adolescente passou a mentir constantemente, quebrar objetos da escola e da casa, furtar dinheiro dos pais para comprar lanches e pertences dos próprios colegas de classe (p. ex., figurinhas para completar seu álbum de futebol e cartas de jogo) e, em alguns momentos, sair de casa por um período sem avisar para onde iria, o que deixava os pais muito aflitos e preocupados. Ademais, ao serem questionados sobre o humor do paciente, os pais relataram que, mesmo em momentos que Ian não estava irritado ou frustrado por algo que ocorreu, ele ainda tinha tais comportamentos socialmente inaceitáveis. Os familiares acrescentavam que parecia que o filho gostava de prejudicar os outros e que não aparentava se sentir culpado quando era descoberto ou demonstrava empatia pelas pessoas que prejudicava. Outro ponto que chamava a atenção dos pais era a indiferença com relação ao baixo desempenho escolar.
Histórico de abuso de substâncias
Ian e seus pais negam que Ian tenha usado álcool, cigarros ou qualquer outra substância psicoativa.
Histórico médico
Ian teve uma amigdalectomia aos 5 anos, mas nenhum outro histórico de problemas de saúde ou procedimentos significativos.
História do Desenvolvimento
Ian foi o produto de uma gravidez e parto normais a termo. Sua mãe, que fumava um maço por dia antes da gravidez, relatou que tentou parar de fumar durante a gestação, mas conseguiu apenas reduzir de um maço por dia para “vários cigarros por dia” (sic).
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História Social
A mãe de Ian trabalha em tempo integral fora de casa. Seu pai está atualmente desempregado e tem um histórico de trabalho de várias mudanças de emprego. Os estressores incluem o desemprego do pai, problemas relacionados a três acidentes automobilísticos que o pai teve nos últimos 3 anos, o irmão mais novo de Ian, uma mãe sobrecarregada e conflito conjugal relacionado a todos esses fatores.
História de família
O irmão do pai de Ian possui histórico de Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) e abuso de substâncias, e vários primos paternos tinham TDAH. O pai nunca se consultou com um psiquiatra ou psicólogo e não tinha diagnóstico formal, mas relatou ter tido dificuldades significativas na escola. Ele relatou que estava “entediado” com o emprego que tinha e, atualmente, não encontra nenhuma ocupação que o interesse, mas sua esposa relatou que ele havia sido demitido de vários trabalhos por “esquecimentos” e desorganização. De acordo com sua esposa, ele bebe de 6 a 12 cervejas por noite. A mãe de Ian tem um diagnóstico de depressão e atualmente está sendo tratada com medicamento antidepressivo.
Hipótese Diagnóstica
De acordo com o Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5 (American Psychiatric Association, 2014), os sintomas prévios e atuais do Ian são compatíveis com:
Transtorno da Conduta do tipo com início na infância (312.81) por Ian apresentar um padrão comportamental que é repetitivo e persistente, no qual são violados direitos básicos de outras pessoas ou normas ou regras sociais relevantes;
Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade com apresentação predominantemente hiperativa/impulsiva (314.01), sendo caracterizado por um padrão persistente de desatenção e/ou hiperatividade-impulsividade;
Transtorno de Oposição Desafiante (313.81) com gravidade atual moderada por apresentar os sintomas em pelo menos dois ambientes.
Considerações sobre o processo de diagnóstico diferencial
Diante do quadro complexo e repleto de nuances como o caso do Ian, faz-se necessário realizar um diagnóstico diferencial a fim de descartar outras possibilidades de quadro psicopatológicos e confirmar a hipótese diagnóstica proposta. First (2015) estabelece um modelo de seis etapas básicas para realização do diagnóstico diferencial:
- descartar transtornos factício ou simulação;
- descartar uma etiologia de substância (incluindo abuso de drogas e medicamentos); 3) descartar um transtorno devido a uma condição médica geral;
- determinar qual entre os transtornos mentais primários do DSM-5 melhor explica a sintomatologia apresentada;
- diferenciar os transtornos de adaptação das outras condições residuais especificadas e não especificadas;
- estabelecer a fronteira entre um transtorno e nenhum transtorno mental.
Entretanto, para fins didáticos, confira abaixo algumas considerações importantes sobre o caso de Ian que podem auxiliá-lo na realização do diagnóstico diferencial quando envolve a hipótese de Transtorno da Conduta (TC), Transtorno de oposição desafiante (TOD) e Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH).
- Transtorno de oposição desafiante e Transtorno de Conduta: tanto no TC quanto no TOD verifica-se sintomas que envolve o indivíduo apresentar conflitos com adultos e outras figuras de autoridade. Ian constantemente desafiava, questionava e se recusava a aderir às ordens e regras estabelecidas pelos pais e professores. Contudo, poderia ser descartar o diagnóstico de TOD devido aos comportamentos de oposição desafiante do adolescente serem de natureza mais grave, diferentemente do que é encontrado nos casos de TOD. Além disso, neste quadro, não está presente agressão a pessoas, destruição de propriedade, padrão de furto e falsidade, como comumente acontece no TC. Porém, Ian apresenta um sintoma característico do TOD que são os problemas de desregulação emocional (por exemplo, ele apresenta um humor raivoso e irritável). Desse modo, ambos os diagnósticos de TOD e TC são considerados diante do preenchimento dos critérios para os dois transtornos.
- Transtornos depressivo e bipolar:para realizar o diagnóstico diferencial envolvendo os transtornos depressivo e bipolar é necessário avaliar o curso e o padrão dos sintomas. Sabe-se que problemas de irritabilidade, agressividade e de conduta podem também estar presentes em adolescentes com transtorno depressivo maior, bipolar ou disruptivo da desregulação do humor. Contudo, verifica-se no caso de Ian que significativamente os problemas de conduta agressivos ocorriam durante períodos em que não era observado nenhuma alteração do humor, o que reforça a desconsideração da presença de transtornos do humor.
- Transtorno explosivo intermitente: embora Ian apresente níveis intensos de agressividade em diversas situações, verifica-se que o adolescente não possui uma agressividade impulsiva, o que é comum no transtorno explosivo intermitente. Por exemplo, Ian bateu nos pais para conseguir dinheiro para comida, revelando uma agressividade de forma premeditada e para atingir determinada finalidade, sendo esta característica comum do TC. Ademais, verifica-se que existem outros sintomas no quadro do adolescente que não faz parte dos critérios diagnósticos do transtorno explosivo intermitente, como furtos, mentiras e danos aos pertences de outras pessoas.
- Transtorno de déficit de atenção/hiperatividade: Ian apresenta desde os anos pré-escolares sintomas de desatenção e hiperatividade/impulsividade. Por exemplo, possuía dificuldade para manter a atenção nas aulas e nas tarefas escolares, para permanecer sentado em sala de aula, era agitado em diversos ambientes, evitava se envolver em atividades que precisava de esforço mental prolongado, entre outros. Desse modo, uma das hipóteses é que ele tivesse ambos os diagnósticos, preenchendo os critérios tanto para TDAH quanto para TC e TOD.
Diante do exposto, ressalta-se a indispensabilidade da realização de uma avaliação para fins diagnósticos por profissionais qualificados e especializados com a aplicação de entrevistas, questionários, escalas e testes psicológicos, bem como ampliação da quantidade de informante acerca dos sintomas apresentados por Ian.
Tal processo é essencial para que os psicólogos clínicos realizem uma adequada formulação de caso, que possibilite um plano terapêutico com a definição de metas e seleção de intervenções que aumentem a probabilidade de sucesso terapêutico.
Editoria de Psicologia
Editora-chefe: Carmem Beatriz Neufeld.Psicóloga. Livre docente em TCC pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - USP. Pós-Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutora e Mestra em Psicologia pela PUCRS. Fundadora e Coordenadora do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental – LaPICC-USP. Professora Associada do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – USP. Presidente da Federação Latino Americana de Psicoterapias Cognitivas e Comportamentais - ALAPCCO (2019-2022). Presidente-fundadora da Associação de Ensino e Supervisão Baseados em Evidências - AESBE (2020-2023). Bolsista Produtividade do CNPq.
Referências
American Psychiatric Association. (2014). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5 (5 ed). Porto Alegre: Artmed.
First, M. B. (2015). Manual de Diagnóstico Diferencial do DSM-5. Porto Alegre: Artmed.
Milone, A., & Sesso, G. (2022). Disruptive Behavior Disorders: Symptoms, Evaluation and Treatment. Brain sciences, 12(2), 225. https://doi.org/10.3390/brainsci12020225