Trauma racial: considerações clínicas no tratamento psicológico
Embora o último censo demográfico, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010, tenha revelado que a maioria da população brasileira é composta por negros (com 47,51% de brancos, 50,94% de negros — 7,52% de pretos e 43,42% de pardos — além de 1,10% de amarelos, 0,43% de indígenas e 0,02% sem declaração), dados mais recentes divulgados pelo IBGE em 2019 apontam para as consequências do histórico abandono e exclusão social enfrentado pela população negra ao longo dos anos.
Por exemplo, no que se refere ao campo da educação, em 2018, a proporção de jovens pretos ou pardos de 18 a 24 anos que cursavam o ensino superior era de 55,6%, enquanto a de estudantes brancos com a mesma faixa etária era de 78,8%. Além disso, o período da pandemia da COVID-19 acentuou as diferenças entre os grupos raciais na área da educação. A título de exemplo, em decorrência das escolas brasileiras suspenderam as aulas presenciais, no ano de 2020, entre os estudantes de 6 a 17 anos de idade que não receberam atividades escolares disponibilizadas para realização em casa, 28,7% eram de negros (15,2% de pretos e 13,5% de pardos) e 6,8% de brancos (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2022).
Outros dados preocupantes são referentes ao trabalho e à renda. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2022), no ano de 2021, entre a faixa populacional que representava a força de trabalho do país, 64,1% dos desocupados e 65,6% dos subutilizados eram de pretos e pardos. Por outro lado, 35,2% dos desocupados e 33,6% eram de brancos. Ademais, no mesmo ano, diferenças significativas foram verificadas no rendimento médio mensal de pessoas ocupadas. O rendimento entre os brancos foi R$ 3.099,00, pardos R$ 1.814,00 e pretos R$ 1.764,00.
Informações alarmantes também estão relacionadas aos números de homicídios no Brasil. Por exemplo, apesar da qualidade dos dados ser questionável devido à possíveis falhas no processo de notificação, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 (Bueno & Lima, 2022) apresenta dados relevantes. No ano de 2021, 77,9% das vítimas por morte violentas intencionais era de negros, sendo 77,6% vítimas de homicídio doloso e 84,1% vítimas de intervenções policiais. Especificamente, em comparação ao ano de 2020, a taxa de mortalidade por intervenções policiais entre as vítimas brancas teve uma redução de 30,9% em 2021, enquanto a de vítimas negras cresceu em 5,8%. Por outro lado, a raça dos policiais também está associada ao quantitativo alto de vítimas letais. No mesmo período, 67,7% dos policiais civis e militares que tiveram morte violenta intencional eram negros. No que se refere à população carcerária brasileira, 67,5% eram negros.
Bueno e Lima (2022) revelaram que, do total de vítimas de feminicídio em 2021, 62% eram mulheres negras, enquanto 37,5% eram brancas. Das vítimas de estupro e estupro de vulnerável, a maioria, 52,2%, também eram pessoas negras A composição racial das mortes violentas intencionais de crianças e adolescentes também revela uma expressiva desigualdade. Em 2021, 66,3% das pessoas mortas de 0 a 11 anos de idade eram negras; na faixa etária de 12 a 17 anos as taxas aumentaram assustadoramente para 83,6% considerando o mesmo grupo racial. Além disso, em 2019, 66,1% das crianças e dos adolescentes em situação de trabalho infantil eram negros (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, 2020).
No que ser refere à saúde mental de crianças e adolescentes brasileiras, os dados são escassos, principalmente quando trata de jovens pretos e pardos. De um modo geral, em 2019, a estimativa da prevalência de transtornos mentais entre pessoas de 10 a 19 anos de idade foi de 17,1% (United Nations Children’s Fund, 2021). Contudo, estudos tem revelado que a raça é um determinante de saúde significativo.
Por exemplo, de 2012 a 2016, a taxa de suicídio entre negros entre 10 e 29 anos de idade aumentou em comparação às outas raças, passando de 53,3% para 55,4%, considerando o intervalo de tempo mencionado. Por outro lado, a proporção de suicídio entre os brancos diminuiu no mesmo período, de 40,2% para 39% (Brasil, 2018). Em uma revisão sistemática (Smolen & Araújo, 2017), apesar do número de estudos incluídos ser baixo, somente 14 pesquisas e com apenas cinco delas com análises multivariadas que tiveram resultados estatisticamente significantes, verificou-se uma maior prevalência ou chance de transtornos mentais em indivíduos não brancos quando comparadas aos brancos.
Esse conjunto de dados revelam que o Brasil promove sistematicamente uma série de contextos de degradação da saúde física e mental da população negra, enquanto os brancos têm melhores condições de trabalho, estudo, moradia e saúde, bem como possuem o capital financeiro, poder político e melhores remunerações (Brasil, 2017).
Toda esta situação revela a existência de um racismo estrutural, que pode ser definido como o modo de funcionamento da sociedade que envolve uma fomentação da discriminação racial por meio de sistemas iníquos que se reforçam mutuamente (seja por meio da habitação, educação, emprego, benefícios, renda, crédito, mídia, atenção à saúde, assistência jurídica, cultura etc.). Consequentemente, os sistemas reforçam crenças, valores e disponibilidade de recursos (Bailey et al., 2017). Ou seja,
o racismo estrutural decorre da estrutura social existente e do modus operandi que constituem as relações em diversos campos
(p. ex., político, econômico, jurídico e familiares) (Almeida, 2019).
Diante de tal conjuntura, comumente, a população negra brasileira lida regularmente com Encontros Raciais Discriminatórios (ERDs). Os ERDs incluem formas explícitas e sutis de discriminação racial (Anderson & Stevenson, 2019), que são comportamentos de distinção de grupos raciais dominantes com prejuízo para grupos raciais considerados “inferiores’ (Conselho Federal de Psicologia, 2017). Desse modo, os ERDs podem ocorrer nos níveis interpessoal, institucional e sistêmico, incluindo situações como suspensões e expulsões dentro das escolas, ofensas diretas de outras pessoas, perseguição em estabelecimentos comerciais, assassinatos por policiais, entre outros (Anderson & Stevenson, 2019).
Os ERDs podem ser percebidos como uma ameaça à integridade e segurança do indivíduo afetado, ou seja, eles podem sobrecarregar os recursos individuais e coletivos de enfrentamento existentes, o que configura um estresse traumático relacionado à raça, envolvendo danos emocionais e psicológicos que impactam negativamente a saúde mental e o bem-estar (Anderson & Stevenson, 2019; Polanco-Roman et al., 2016).
No entanto, o quadro pode agravar para uma espécie de lesão mental e emocional causada pelo efeito traumático cumulativo do racismo experimentado ao longo da vida, sendo denominado de trauma racial (Williams et al., 2021).
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Compreendendo o trauma racial
Ao considerar a estrutura do Transtorno do Estresse Pós-traumático (TEPT) definida pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) (American Psychiatric Association, 2014), Williams et al. (2018) propõem um modelo que postula que o trauma histórico e cultural predispõe os indivíduos a níveis elevados de estresse. Experiências perpétuas de racismo aberto (demonstrações abertas de tratamento injusto devido à raça) e oculto (discriminação racial que é mais sutil, encoberta e crônica por natureza) agravam ainda mais essa predisposição. Juntas, essas experiências formam as vulnerabilidades iniciais para o trauma racial.
Neste ponto, um evento racialmente traumático inesperado e incontrolável, que ameaça a segurança ou a humanidade de alguém, pode resultar em uma forte resposta emocional, incluindo medo, raiva, choque e humilhação. Isso é ainda mais exacerbado quando outros invalidam e descartam essas experiências, especialmente profissionais de saúde, e quanto as vítimas têm acesso limitado a oportunidades de suporte para processar esse evento desencadeador.
À medida que as experiências se acumulam, os indivíduos apresentam sintomas de TEPT por um longo período. Clinicamente, o trauma racial pode ser capturado por quatro grupo de sintomas que resultam em um sofrimento psicológico e funcionamento prejudicado não atribuível a outra causa (Heard-Garris et al., 2018; Polanco-Roman et al., 2016). Confira:
- Reviver o evento:reexperimentar o evento racialmente traumático pode incluir memórias angustiantes e lembretes do trauma, pensamentos intrusivos e até mesmo flashbacks ou pesadelos;
- Evitar lembretes do trauma:evitar lembranças do trauma, não pensar no evento, manter-se afastado de grupos associados ao evento traumático, como indivíduos brancos ou policiais, ou autoisolar-se;
- Alterações negativas em cognições e no humor:sintomas de depressão, ansiedade, cognições de que o mundo é inseguro, autoculpar-se e ter dúvida, bem como emoções e cognições de culpa e raiva;
- Alterações marcantes na excitação e na reatividade:padrões de hipervigilância, sendo facilmente assustado e sono de má qualidade e concentração limitada.
O tratamento de indivíduos que sofrem com o trauma racial
Implementar tratamentos baseados em evidências e que sejam adaptados culturalmente para lidar com traumas interpessoais e raciais é essencial para aumentar a probabilidade de resultados positivos para os clientes, além de evitar mais danos para estes. Desse modo, segundo Williams et al. (2021), algumas sugestões são indicadas para os psicólogos clínicos:
- Os profissionais devem se sentir à vontade para abordar o tema da raça e do racismo no espaço terapêutico. Por mais óbvio que pareça, muitos terapeutas se sentem desconfortáveis ao discutir tal temática, especialmente os brancos.
- É preciso investir na formação para ampliar o conhecimento acerca do racismo a fim de proporcionar o reconhecimento do racismo na sociedade, nas instituições e no campo da psicologia. Além disso, dado que os psicólogos clínicos são humanos e produtos de seus contextos racistas, isso requer descobrir pessoalmente e confrontar preconceitos explícitos e implícitos dentro de si mesmo. Para isso, vale realizar cursos acerca do antirracismo e de competência cultural, ler extensivamente sobre o tema e se aproximar dos movimentos sociais que discutem sobre a raça e o racismo na comunidade.
- Buscar supervisões especializadas.
- Compreender que mesmo o psicólogo clínico mais sintonizado racialmente, ele às vezes cometerá microagressões raciais. Quando tais erros acontecem na sessão, é importante que os profissionais estejam preparados para agir de maneira humilde e não defensiva e fazer o que for necessário para reconquistar a confiança do cliente.
- Caso possua uma cliente com raça não dominante, o psicólogo deve ter uma maior compreensão do background cultural do cliente a partir de própria perspectiva deste, focando em suas necessidades e identificando pontos fortes e suportes relevantes.
- É essencial reconhecer a demonstração de respeito da cultura e aprender as atitudes culturais, tradições e suportes interpessoais e ambientais do cliente. Direcionar a atenção para as influências culturais, identificando problemas cognitivos e ambientais no início do tratamento, é fundamental, bem como validar as experiências de opressão do cliente.
- Relatos de clientes sobre racismo e discriminação não devem ser contestados, mas sim validados.
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Como citar:
Anjos Filho, N. C. dos & Neufeld, C. B. (2024, 18 mar.). Considerações clínicas no tratamento psicológico de indivíduos que sofrem com o trauma racial. Blog do Artmed [Site]
SOBRE A EDITORA-CHEFE
Carmem Beatriz Neufeld:
Psicóloga. Pós-Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenadora do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental – LaPICC-USP. Professora Associada do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – USP. Presidente da Associação Latino-Americana de Psicoterapias Cognitivas - ALAPCO (2019-2022). Presidente da Associação de Ensino e Supervisão Baseados em Evidências - AESBE (2020-2023).