Ultrassom pulmonar: quando solicitar e como interpretar os resultados
O pulmão é um órgão composto primariamente por alvéolos e árvore brônquica que, por sua vez, são na maior parte do tempo aerados. Além disso, os pulmões estão envoltos pela caixa torácica, composta de costelas muito próximas umas das outras. Considerando que o som se propaga mal no ar e no osso, não é de se surpreender que a ecografia pulmonar ficou em segundo plano na avaliação de patologias neste órgão por longos anos.
Apesar disso, iniciando nos anos 1980 e se expandindo marcadamente nos anos 2000, clínicos (intensivistas, emergencistas, internistas) passaram a usar equipamentos de ultrasom móveis para avaliar o pulmão de pacientes com queixas respiratórias agudas. Neste período relativamente curto, muito se aprendeu e se expandiu na ultrassonografia pulmonar. Estas questões históricas também explicam por que o exame de ecografia de pulmão usualmente não é solicitado como um exame complementar, mas sim
realizado diretamente
pelos médicos atendendo pacientes. Junto com outras aplicações, hoje se considera os ecógrafos móveis o "novo estetoscópio" e a avaliação pulmonar é um dos principais recursos das avaliações de POCUS (
point-of-care ultrasound
; do inglês, ultrassonografia à beira do leito).
Em suma, por muitos anos a radiografia simples e a tomografia de pulmão dominaram a avaliação de patologias torácicas. Entretanto, graças a sua versatilidade e acurácica, a ecografia pulmonar está rapidamente mudado esse cenário (para o melhor).
Nesta postagem, focaremos na avaliação pulmonar com ultrassom realizada no contexto de POCUS e exploraremos suas indicações, acurácia, aquisição, achados e interpretação.
Indicações, acurácia e limitações
A avaliação pulmonar e torácica com ultrassom tem diversas vantagens. Trata-se de um exame livre de radiação e de baixo custo. Além disso, tende a ser mais rápido que outras modalidade e, como já discutido, tem sido realizado primariamente pelos médicos diretamente atendendo os pacientes. Tem a possibilidade de avaliar um grande número de possibilidades diagnósticas como pneumonia, edema pulmonar, pneumotórax.
Como regra geral, sua principal indicação, e o contexto que foi mais testada e validada, é para diagnóstico diferencial de
dispneia aguda
. Além disso, ela pode apoiar a realização de procedimentos invasivos (toracocentese) e ser uma útil ferramenta para monitorização de resposta de tratamento. Outros usos potenciais, que ainda estão sendo difundidos, são a avaliação da força diafragmática para potencial risco de reintubação em pacientes críticos e visualização direta do esôfago para identificar erros na intubação.
Quanto à acurácia, os estudos mostram que a ecografia pulmonar tem sensibilidades e especificidades consistentemente acima de 80% para diversas doenças torácicas, mesmo quando realizada por não radiologistas; comparativamente, supera sensivelmente a radiografia de tórax na avaliação de derrame pleural, pneumonia, pneumotórax e edema pulmonar, atingindo sensibilidades e especificidades de 90% ou mais.
Por exemplo, na avaliação de derrame pleural complicado, é capaz de identificar septações e guiar procedimentos melhor que o raio-x e que a tomografia. Além disso, apesar de ser um exame operador dependente, para as principais indicações, a curva de aprendizado não parece ser longa. Ainda assim, treinamento e atualização constantes devem ser parte da rotina do profissional que utiliza essa ferramenta.
Apesar de todas vantagens, da boa acurácia e das potencialidades, como todo procedimento médico, existem limitações para a ecografia pulmonar. A primeira é que condições que afetem o subcutâneo pioram (ou mesmo, impedem completamente) a avaliação. Ou seja, curativos, extremos de peso e enfisema subcutâneo são desafios para aquisição de imagens pulmonares.
Além disso, toda a aquisição de imagens se concentra na interface pleuro-pulmonar (ver a seguir); assim, doenças centrais, que não tocam a pleura não podem ser visualizadas (por exemplo, aproximadamente 10% das pneumonias não são justa-pleurais). Adicionalmente, identificação de drenos, cateteres é mais acurada com outras modalidades. Também há preocupação de transmissão de germes, em especial no ambiente hospitalar, pelo equipamento; ou seja, deve-se ter elevado cuidado com higienização entre um paciente e outro.
Um apontamento importante é que, apesar de preocupação com processos judiciais por erros médicos, dados americanos mostram que não existem ações judiciais de má prática por erros de interpretação de ultrassom pulmonar, mas sim ações por negligência por não ter sido usado. Por fim, deve-se ressaltar que não existe contraindicação absoluta ao exame.
Aquisição e achados
Para aquisição das imagens, o paciente deve ser colocado na posição supina, usualmente com a cabeceira levemente elevada. Pode-se realizar o exame com o paciente sentado ou em decúbito ventral, mas essas são posições menos usuais.
Na avaliação no contexto de POCUS, examina-se o pulmão com o transdutor na posição longitudinal, colocando o centro do feixe entre dois arcos costais (
Figura 1
). Utilizando as linhas paraesternal, axilar anterior, axilar posterior e a quarta costela, divide-se cada hemitórax em 6 campos: ântero-superior e ântero-inferior; látero-superior e látero-inferior; póstero-superior e inferior. No mínimo os 4 primeiros campos citados acima devem ser examinados em cada hemitórax.
Pode-se usar praticamente qualquer transdutor, mas prefere-se um com baixa frequência para se atingir profundidade de ~15 cm para aquisição das imagens. Assim, o mais comum é o uso do transdutor convexo ("abdominal"). Ganho, foco e profundidade devem ser ajustados. Por exemplo, ganho não deve ser excessivo, mas deve permitir se enxergar a linha pleural como uma estrutura hiperecóica, bem como as eventuais linhas B que surjam na profundidade. O feixe deve ser mantido em 90 graus (perpendicular) em relação a linha pleural.
Deve-se estar atento alguns conceitos físicos, importantes para a aquisição e interpretação das imagens. Durante a aquisição, a maior parte das ondas que passam os espaços intercostais são refletidas pela pleura em função da grande diferença de impedância entre o tecido subcutâneo e o pulmão.
Ou seja, o pulmão não é visualizado diretamente na maior parte dos pacientes, mas sim o aquipamento gera artefatos de imagem que correspondem a eventos na interface pleuro-pulmonar - usualmente chamado de linha pleural. Dessa forma, boa parte dos achados não representam estruturas anatômicas propriamente ditas (como ocorre na maior parte dos exames radiológicos). Disto, também advém um cuidado importante: para evitar perda de acurácia, filtros de melhoria da imagem, em especial os de redução de ruído e movimento e harmonização devem ser desligados, pois eles justamente reduzem a visualização dos artefatos.
Considerando os aspectos acima e como representado na
Figura 1
, em pessoas sem alterações, a linha pleural é caracterizada como uma imagem hiperecóica que, em função da reverberação do som, se repete na tela do aparelho, criando assim as linhas A.
Acúmulo de líquido dos septos pulmonares faz com que parte do som se propague na profundidade e ao surgimento de linhas B, que são hiperecóicas, se formam na linha pleural, se deslocam com a ventilação, atingem a profundidade da tela e "apagam" as linhas A onde passam. Uma ou duas linhas B por campo podem ser achados em pulmões normais, configura-se uma região acometida quando há 3 ou mais linhas B.
Por fim, consolidações são alterações em que se enxerga o parênquima pulmonar propriamente dito (e não apenas artefatos), quando este perde a sua areação; vemos estruturas hiperecóicas no seu interior, que são chamados de broncogramas aéreos. Além desses achados, deve-se estar atento ao deslizamento pleural e à derrame pleural na aquisição das imagens; estes últimos também visualizados diretamente.
Em suma, os principais achados na ecografia pulmonar são
deslizamento pleural e o aspecto da linha pleural, linhas A e B, consolidação e derrame pleural
.
Figura 1
. Representação esquemática da aquisição e formação das imagens do ultrassom pulmonar. Extraído da referência 1.
Achados e interpretação
Um dos principais desafios da avaliação pulmonar com a ecografia é compreender e diferenciar os achados de processos patológicos. Assim como acontece na ausculta pulmonar, onde crepitantes podem indicar tanto pneumonia quanto congestão pulmonar, o mesmo acontece no ultrassom.
Linhas B, consolidações, ausência de deslizamento pleural não são patognomônicos de doença, mas sim devem ser entendidos em conjunto, levando-se em conta a distribuição, achados associados e, claro, o quadro clínico. Vale ressaltar que padrão normal do pulmão é a presença de linhas A com deslizamento pleural, mas como vimos, uma ou duas linhas B em um campo são achados considerados normais e não indicam processo patológico.
Diferentes diretrizes e grupos de especialistas tem proposto nomenclaturas diferentes; isso é esperado por se tratar de um campo ainda em expansão e desenvolvimento. Aqui neste texto, optamos por uma abordagem mais descritiva, explicando os achados mais comuns em cada situação clínica, como está apresentado na
Tabela 1
. Por fim, na
Figura 2
há uma proposta de abordagem diagnóstica de pacientes com dispneia aguda.
Tabela 1.
Resumo das principais doenças pulmonares e seus achados ultrassonográficos. Adaptado de 1, 2 e 4
Figura 2.
Abordagem diagnóstica com uso de ultrassom pulmonar de pacientes com dispneia aguda. Adaptado de 2.
* deve-se considerar a posição do paciente; pacientes em decúbito dorsal em 30° são os campos ântero-superiores.
COVID-19: coronavírus disease 2019; SARA: síndrome da angústia respiratória aguda; TEP: tromboembolismo pulmonar
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