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Uso clínico da Escala BDI-II: interpretação e armadilhas comuns

BDI-II: o que é e para que serve na prática clínica

O
Inventário de Depressão de Beck (BDI)
consiste em um instrumento dedicado à avaliação de sintomas depressivos e sua gravidade em adultos e adolescentes. Baseado em observações clínicas e em relatos típicos de pacientes com depressão, o BDI passou por reformulações desde a sua primeira versão, desenvolvida em 1961 por Aaron T. Beck e colaboradores. Na década de 90 surge o BDI-II, versão mais recente do instrumento, renovado para atender os critérios diagnósticos propostos pela quarta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-IV) (Beck, Steer & Brown, 2011).  

Em termos gerais, o BDI-II é composto por 21 itens, cada um representando um sintoma comum a quadros depressivos. Os itens contêm afirmações que refletem diferentes intensidades do sintoma referido, variando em uma escala de 0 a 3 pontos. Assim, para cada item, o respondente deve escolher aquela afirmação que melhor descreve a sua experiência nos últimos 15 dias.  

O BDI-II abrange diferentes sintomas da depressão. Estudos indicam haver duas principais dimensões avaliadas pelo instrumento, a primeira relacionada a sintomas cognitivos, como Pessimismo e Autocrítica, e a segunda a sintomas somato-afetivos, como Irritabilidade e Falta de Energia (Steer, Ball, Ranieri & Beck, 1999). 

Tanto os estudos originais com o BDI-II quanto estudos com amostras brasileiras confirmam as qualidades psicométricas do instrumento (Beck et al, 2011). Além de índices relevantes de fidedignidade, ele também apresenta evidências de validade de conteúdo, de critério, concorrente e discriminante, provando ser uma boa ferramenta para identificar pacientes com depressão e avaliar a gravidade de sintomas depressivos. Desse modo, pode contribuir para a avaliação diagnóstica e o acompanhamento de pacientes em psicoterapia.   

Aplicação adequada: pontos de atenção

O BDI-II deve ser aplicado por psicólogos, preferencialmente treinados em testes psicológicos, e pode ser utilizado em diversos contextos, como consultórios, instituições de saúde e triagens clínicas. A aplicação deve ocorrer em ambientes tranquilos, com a presença do aplicador para garantir a correta compreensão dos itens. Durante a aplicação, é fundamental que o profissional forneça instruções claras e verifique se o paciente está ciente da dinâmica proposta. Para indivíduos com dificuldades de leitura, baixa escolaridade, ou problemas de concentração, podem ser necessárias adaptações, como a leitura das questões pelo aplicador. Essa flexibilidade assegura que os resultados não sejam prejudicados por dificuldades cognitivas ou desregulações emocionais do respondente. 

Interpretação dos resultados: além do escore total

O ponto de partida para a interpretação dos resultados do BDI-II é a classificação clínica proposta por Beck et al (2011), que define diferentes faixas de gravidade da depressão conforme a pontuação final do respondente (soma dos pontos de todos os itens do inventário). Tais faixas são:  

Assim, uma pontuação igual a 12 indicaria um paciente com sintomas de intensidade mínima, possivelmente sem queixas clínicas relativas ao humor. No outro extremo, pontuações a partir de 29 revelam sintomas graves, com maior impacto à saúde mental.  

Uma vez identificada a gravidade dos sintomas, a interpretação dos resultados pode ser complementada mediante análise das respostas aos itens. Nesse sentido, a apreciação dos itens mais relevantes para a pontuação final permite identificar os principais sintomas do paciente e o que eles dizem sobre sua condição. A leitura individual dos itens também fornece subsídios para a conduta profissional, como definir tratamentos e avaliar riscos. Por exemplo, a depender da resposta ao item 9 (Pensamentos ou desejos suicidas), o profissional pode se informar sobre a existência de risco de suicídio e refletir sobre como proceder com seu trabalho clínico.  

Armadilhas comuns no uso do BDI-II

Cabe destacar que, ao interpretar os resultados do BDI-II, o psicólogo deve considerar que este não deve ser utilizado sozinho para fins diagnósticos (Wang & Gorenstein, 2021). Escalas psicométricas facilitam a identificação de transtornos do humor, todavia, não substituem a expertise clínica do psicólogo. Para realizar o diagnóstico é necessário integrar diferentes métodos, como a entrevista clínica, observações e outros testes, empregados em encontros com o paciente ou com terceiros importantes à compreensão do caso (Bastos & Fleck, 2016). As informações coletadas devem ser ponderadas pelo profissional a partir de seus conhecimentos sobre psicopatologia e diagnóstico diferencial para, enfim, tomar uma decisão. 

Atribuir o diagnóstico a partir de uma única medida é uma atitude equivocada, podendo resultar em prejuízos ao paciente, como a medicalização ou a rotulação indevida. Outro potencial equívoco acontece quando o profissional ignora fatores contextuais que influenciam as respostas no teste. Alguns eventos recentes podem ter efeitos provisórios sobre o humor do paciente, produzindo variações nos resultados do BDI-II. Além disso, instrumentos de autorrelato podem ser suscetíveis a vieses de resposta, como a dissimulação de sintomas ou a desejabilidade social (Furnham, 1985). Por isso, a importância de triangular vários métodos e fontes de informação, identificando-se a consistência dos dados obtidos. 

A repetição do BDI-II também pode ser problemática, principalmente quando não há um propósito clínico claro para a reaplicação, como o monitoramento do progresso terapêutico. Nesses casos, é essencial refletir que as mudanças nos escores nem sempre indicam melhoras ou pioras no quadro clínico, sendo necessário um acompanhamento mais detalhado para evitar interpretações simplistas.  

O BDI-II como aliado no acompanhamento terapêutico

O BDI-II é um instrumento valioso para monitorar a evolução do tratamento, permitindo que o terapeuta avalie mudanças no quadro depressivo do paciente ao longo do tempo. Nesse contexto, é importante que o psicólogo utilize os escores para identificar áreas específicas que podem necessitar de mais atenção ou intervenção.  

A integração do BDI-II ao plano terapêutico deve ser bem fundamentada, reavaliando o paciente em momentos estratégicos, como após a introdução de novas abordagens terapêuticas ou mudanças no tratamento. O profissional também pode reaplicar o instrumento ao concluir alguma etapa pré-definida do plano terapêutico, ou ainda, ao perceber mudanças clínicas relevantes no quadro do paciente. De toda forma, aplicações espaçadas, em momentos bem definidos e que respeitem o ritmo da terapia são indicadas. A utilização contínua da escala permite não apenas um acompanhamento mais preciso, mas também a adaptação das intervenções conforme a resposta do paciente, garantindo uma prática clínica mais assertiva e personalizada. 

Após a administração, discutir os resultados com o paciente de forma ética e construtiva é essencial para que ele compreenda a dinâmica da psicoterapia, sem que isso gere estigmatização ou frustração. Uma comunicação objetiva, evitando uma linguagem muito técnica, é recomendada. Esclarecer dúvidas e receios, bem como, psicoeducar sobre os sintomas, o diagnóstico e o foco do tratamento são passos importantes. Lembrando que as opiniões e ideias do paciente também devem ser levadas em conta nesse processo, aliando sua genuína curiosidade aos saberes técnicos do profissional. 

Considerações finais

Em conclusão, o BDI-II é uma ferramenta útil para o trabalho nos contextos de avaliação psicológica (AP) e psicoterapia. Mesmo assim, o profissional que o empregar deve estar atento a seus alcances e limites, de modo a fazer o melhor uso da informação obtida. 

A atuação com técnicas de AP depende de um conjunto de competências gerais, que vão desde a correta a aplicação e interpretação dos instrumentos até o conhecimento de fundamentos em Psicologia, Psicopatologia e Psicometria (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2013). Assim, o trabalho com AP demanda contínuo aprimoramento profissional para que possa ser conduzido com responsabilidade.   

A inclusão de procedimentos de AP em contextos de psicoterapia é recomendada, contanto que o profissional se mantenha atualizado sobre os instrumentos clínicos de que fará uso. O cuidado ético e qualificado pressupõe competências técnicas e ações fundamentadas na ciência psicológica e na legislação profissional (CFP, 2005). 

Autores

  • Francisco P. M. Pereira:
    Graduação em Psicologia pela FFCLRP - USP. Especializando em Reabilitação Neurológica no HCFMRP/USP. Possui experiência na área de Avaliação Neuropsicológica com diferentes públicos e demandas. Contribuinte do Laboratório de Pesquisa e Medidas em Neurodesenvolvimento Infantil (NeuroMetrix) e do Centro de Pesquisa em Psicodiagnóstico (CPP) do Departamento de Psicologia da USP de Ribeirão Preto. 

 

  • Raphael L. Sartori:
    Psicólogo pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Mestrando no programa de Pós-Graduação em Psicobiologia da FFCLRP-USP. Membro do Laboratório de Pesquisa e Medidas em Neurodesenvolvimento Infantil (NeuroMetrix). Especializando em Terapia Cognitivo-Comportamental e Avaliação Neuropsicológica. 

 

  • Eloha Flória Lima Santos:
    Psicóloga pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da FFCLRP-USP. Membro do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental (LaPICC). Especialização em Psicologia da Saúde no Contexto Hospitalar com ênfase em Psicologia Pediátrica pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP-RP (HCFMRP-USP). Formação em Terapia Cognitivo-Comportamental e TCC para obesidade e emagrecimento. 

 

  • Carmem Beatriz Neufeld:
    Professora Associada do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - FFCLRP da Universidade de São Paulo – USP e orientadora dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia e em Psicobiologia do DP-FFCLRP-USP. Livre docente pela FFCLRP-USP. Pós-doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Doutora e Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Formação em Terapia dos Esquemas pelo LaPICC-USP. Formação em Ensino e Supervisão pelo Beck Institute. Terapeuta Certificada em TCC pela Federação Brasileira de Terapias Cognitivas – FBTC. Psicóloga pela Universidade da Região da Campanha - URCAMP. Fundadora e coordenadora do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental – LaPICC-USP. Bolsista Produtividade do CNPq. Presidente Fundadora da Associação de Intervenções Psicossociais para Grupos - APSIG. Past-President da Federação Latino-Americana de Psicoterapias Cognitivas e Comportamentais - ALAPCCO. Representante do Brasil na Sociedade Interamericana de Psicologia - SIP. Ex-Presidente Fundadora da Associação de Ensino e Supervisão Baseados em Evidências – AESBE. Ex-Presidente da Federação Brasileira de Terapias Cognitivas - FBTC.