Avaliação neuropsicológica: como realizar e interpretar resultados
A avaliação neuropsicológica (ANP) ou exame neuropsicológico consiste em um processo de investigação com objetivo de mapear o funcionamento cognitivo, identificando a integridade ou déficits nas funções cognitivas. Esse tipo de avaliação deriva de estudos com pacientes que sofreram algum dano cerebral, tendo a ANP sido utilizada para compreender a relação cérebro-comportamento/estrutura-função. A ANP então assume um caráter interdisciplinar, uma vez que para sua execução é importante que o profissional utilize de conhecimentos sobre neurobiologia, psicofarmacologia, psicologia cognitiva e transtornos mentais.
A ANP pode ser aplicada visando diferentes objetivos, destacando o papel de descrição de prejuízos ou alterações das funções psicológicas influenciando o processo diagnóstico de condições neurobiólogicas e transtornos psiquiátricos. A ANP é realizada a partir de uma avaliação clínica que envolve a interpretação dos resultados de um conjunto de testes psicométricos e tarefas e entrevistas detalhadas com o paciente e outras fontes, como familiares e escola (Ramos & Hamdan, 2016).
Os resultados da ANP podem ser correlacionados a dados de neuroimagem, fornecendo informações, por exemplo, na avaliação do desenvolvimento dos transtornos neurodegenerativos. Portanto, a ANP pode ser definida como um subsídio para o diagnóstico clínico a partir do mapeamento do perfil cognitivo do indivíduo. Esse mapeamento possibilita uma melhor compreensão do prognóstico e desenvolvimento de condições, servindo como base avaliação dos resultados de intervenções, bem como para construção de programas de reabilitação (Ramos & Hamdan, 2016).
Ao longo de uma avaliação neuropsicológica, algumas funções são fundamentais de serem investigadas, uma vez que fornecem informações sobre o funcionamento do indivíduo e indicam alterações que podem se traduzir em hipóteses clínicas relevantes (Camargo et al., 2014). Entre estas funções, destacam-se a memória, a atenção, a linguagem e as funções executivas. Cada um desses processos cognitivos possui características específicas que, ao serem analisados de maneira integrada, auxiliam na construção de um perfil detalhado do funcionamento do paciente.
Memória
A memória consiste na capacidade complexa do cérebro de receber, arquivar e se recordar de informações. De acordo com Abreu e colaboradores (2014), em função da complexidade dos sistemas de memória, essa função cognitiva pode estar afetada em diferentes patologias e, por essa razão, devem ser consideradas suas características e fases ao longo do exame neuropsicológico (Abreu et al., 2014).
Compreendida como um processo ativo de reconstrução do que foi armazenado, a recuperação das informações pode ser influenciada por alguns estímulos. Sob esse aspecto, Moraleda & Cayetano (2012) pontuam ainda que o esquecimento não consiste na perda da informação, mas sim na dificuldade de acessá-la devido à interferência ou falta de uso. A memória pode ser subdividida em diferentes categorias (Moraleda & Cayetano, 2012):
- Memória de curto prazo:armazena uma pequena quantidade de informações por um curto período e é uma modalidade muito vulnerável à influência de outros estímulos.
- Memória de longo prazo:trata-se de uma modalidade mais estável e durável, preservando a informação por um longo período. Esta categoria pode ser subdividida ainda em memória explícita ou declarativa (caracterizada por conteúdos autobiográficos ou factuais) e memória implícita ou processual (típico de áreas perceptivas e motoras).
- Memória sensorial:apresenta uma duração mais restrita e possibilita ao sistema nervoso reconhecer os estímulos do ambiente percebidos pelos sentidos.
- Memória de trabalho: é caracterizada pela retenção de informações relevantes, permitindo os indivíduos realizarem uma operação cognitiva.
Atenção
A atenção é uma função cognitiva que desempenha um papel fundamental no processamento das informações e é considerada um dos preditores mais importantes para a aprendizagem e a resolução de problemas (Malloy-Diniz et al., 2014). Para ser compreendida, a atenção também pode ser dividida em diferentes modalidades, como a atenção concentrada, dividida e alternada (de Lima, 2005).
O controle executivo da atenção se relaciona à percepção de relevância de um estímulo associada à inibição de outros estímulos concorrentes. Por essa razão, pode-se afirmar que há uma exigência de esforço do processamento atencional (de Lima, 2005). De maneira semelhante às funções executivas, os processos atencionais iniciam o seu desenvolvimento durante a infância, tendem a se estabilizar na vida adulta e tendem a apresentar um declínio na velhice (Malloy-Diniz et al., 2014).
Linguagem
A linguagem é uma função cognitiva complexa que abrange desde a compreensão do conteúdo até a produção verbal, bem como habilidades relacionadas à leitura, escrita e nomeação. Os componentes de representação da linguagem envolvem o processamento de diferentes níveis, como o semântico; fonético; fonológico; morfológico; lexical; sintático; pragmático e prosódico (Salles & Rodrigues, 2014). É fundamental que cada um desses componentes seja observado na avaliação neuropsicológica, uma vez que a identificação de dificuldades mais específicas auxilia o processo cíclico de levantamento e testagem de hipóteses (Salles & Rodrigues, 2014).
Funções executivas
As funções executivas consistem em um conjunto de habilidades que permite a execução das ações necessárias para alcançar um determinado objetivo (Hamdan & Pereira, 2009). Essas funções são demandadas sempre que se torna necessário direcionar comportamentos a metas, adotar estratégias mais eficientes para a resolução de um problema e formular um plano de ação (Malloy-Diniz et al., 2014).
Este conjunto de habilidades é fundamental para o bom desempenho em atividades do dia a dia, sobretudo, porque ao longo da execução das tarefas, o sujeito precisa manter a sua atenção na atividade realizada, além de regular e monitorar o próprio comportamento e organizar os procedimentos necessários para chegar à etapa final (Malloy-Diniz et al., 2014). Além disso, esse conjunto de processos cognitivos está relacionado à adaptação social e ocupacional e a melhores desfechos de saúde mental em fases posteriores da vida (Malloy-Diniz et al., 2014). Desse modo, durante a avaliação neuropsicológica, as funções executivas também devem ser um foco de investigação, uma vez que prejuízos nestas funções podem sinalizar divergências no desenvolvimento cerebral e podem desempenhar um papel fundamental em fatores causais e de manutenção de transtornos do neurodesenvolvimento (Sadozai et al., 2024).
A análise integrada da memória, atenção, linguagem e funções executivas é crucial para compreender o perfil cognitivo do indivíduo de forma abrangente. Essas funções não atuam de maneira isolada, mas interagem constantemente, formando a base do funcionamento mental e comportamental. Nesse sentido, o perfil cognitivo identificado na avaliação neuropsicológica não apenas orienta o diagnóstico clínico, mas também subsidia intervenções específicas. A seguir, serão descritas as características de alguns dos principais perfis neuropsicológicos estudados.
A seguir são descritos perfis neuropsicológicos de algumas condições clínicas de modo a ilustrar a aplicação prática da avaliação neuropsicológica.
Demências
Alzheimer
A doença de Alzheimer afeta principalmente a memória, em particular a memória episódica, levando a dificuldades significativas para recordar eventos recentes. As habilidades de linguagem também podem piorar ao longo do desenvolvimento da doença, com os indivíduos apresentando dificuldades em encontrar palavras e parafrasias semânticas. As funções executivas, embora geralmente preservadas nos estágios iniciais, podem declinar à medida que a doença progride, impactando as habilidades de planejamento e organização (Guarino et al., 2019; Kavé & Goral, 2018).
Demência frontotemporal
A demência frontotemporal apresenta mudanças significativas no comportamento e na linguagem. Os indivíduos podem exibir funções executivas e atenção prejudicadas, juntamente com déficits linguísticos agudos. A memória pode permanecer relativamente preservada inicialmente, mas anormalidades comportamentais podem surgir (Borosh & Johnson, 2022; Gorno-Tempini et al., 2011).
Afasias
Afasia de broca
A afasia de Broca é caracterizada pela fala não fluente, com compreensão preservada. Os indivíduos têm dificuldades na produção da fala enquanto mantêm a compreensão da linguagem (Gorno-Tempini et al., 2011).
Afasia de Wernicke
Na afasia de Wernicke, os indivíduos produzem uma fala fluente, mas sem sentido, com déficits significativos de compreensão (Kavé & Goral, 2018).
Afasia global
A afasia global envolve comprometimentos severos tanto nas habilidades de linguagem expressiva quanto receptiva, devido a danos extensos nas áreas de linguagem do cérebro (Borosh & Johnson, 2022).
Afasia anômica
A afasia anômica apresenta fala fluente com dificuldade em recuperar palavras. Os indivíduos conseguem compreender a linguagem, mas têm dificuldades em nomear objetos ou conceitos (Gorno-Tempini et al., 2011).
Transtornos do Neurodesenvolvimento
Dislexia
A dislexia é um transtorno específico de aprendizagem caracterizado principalmente por dificuldades na leitura. O perfil neuropsicológico de indivíduos com dislexia é caracterizado por um conjunto de prejuízos cognitivos em funções determinantes para o processamento da decodificação, fluência e compreensão da da leitura. Entre os principais déficits encontrados no funcionamento cognitivo de indivíduos com dislexia, os principais estão relacionados ao processamento fonológico - conjunto de habilidades que inclui a consciência fonológica, a memória verbal de curto prazo e o acesso lexical. Esses déficits dificultam a decodificação precisa e o reconhecimento fluente de palavras (Hulme & Snowling, 2016; Pestun et al., 2019; Taran et al., 2022).
Discalculia
A discalculia é um transtorno específico de aprendizagem que afeta principalmente a capacidade de um indivíduo de fazer cálculos e entender quantidades. O perfil neuropsicológico da discalculia revela déficits cognitivos que podem impactar o desempenho educacional e o funcionamento diário, tendo como principais prejuízos o senso numérico (capacidade de compreender e manipular quantidades), a precisão e fluência de cálculos e a memorização de fatos aritméticos (Dehaene, 1997). Desse modo, os principais componentes cognitivos deficitários na discalculia são a memória de trabalho, as habilidades visuoespaciais e o processamento numérico-aritmético. (Ashkenazi et al., 2009; Attout et al., 2015; McCloskey et al., 1985; Pestun et al., 2019).
Transtorno do Espectro Autista (TEA)
Indivíduos com TEA podem apresentar perfis cognitivos extremamente diversificados, com múltiplas combinações de déficits e habilidades bem desenvolvidas. Porém, as pessoas autistas compartilham o mesmo cerne de dificuldades principais, que são: a comunicação, a interação social e os padrões rígidos e repetitivos de comportamento. Essas dificuldades são evidentes em domínios cognitivos específicos como a cognição social, a flexibilidade cognitiva e o controle inibitório. Esses prejuízos podem ser observados no cotidiano como a dificuldade de compreensão de pistas sociais e na capacidade de tomar a perspectiva do outro (Happé, 1994; Baron-Cohen et al., 2000) e desafios com a gestão de atividades diárias e com a adaptação a mudanças na rotina (Hill, 2004).
Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH)
O perfil neuropsicológico do Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) é caracterizado por déficits cognitivos que afetam atenção, memória, funções executivas e regulação emocional. Indivíduos com TDAH apresentam dificuldades na retenção e manipulação de informações em curtos períodos, além de tempos de reação mais lentos, comprometendo seu desempenho em diversas tarefas. A inibição de respostas é frequentemente prejudicada, resultando em comportamentos impulsivos. Embora esses déficits não sejam estáticos e geralmente melhorem com a idade, muitos adultos continuam a enfrentar desafios relacionados aos sintomas do TDAH (Kofler et al., 2018; Barkley, 2015; McAuley et al., 2021). Esses déficits podem levar a desafios acadêmicos significativos e afetar interações sociais.
Altas Habilidades/Superdotação
Apesar de não ser um diagnóstico nosológico, o perfil de Altas Habilidades/Superdotação possui critérios bem definidos para sua caracterização. De acordo com a literatura científica, para ser considerado “superdotado”, o indivíduo deve cumprir três requisitos: habilidade cognitiva acima da média, bom engajamento com as tarefas nas quais possui desempenho acima do esperado e criatividade superior à norma. Esse perfil se reflete em habilidades cognitivas normalmente com desenvolvimento neuropsicomotor precoce e desempenho acima do esperado em instrumentos psicométricos de avaliação da inteligência (Asensio et al., 2023; Cambridge University Press, 2022).
Conclusão
Podemos concluir que a ANP desempenha um papel crucial na compreensão do funcionamento cognitivo, fornecendo importantes informações para o diagnóstico, o prognóstico e a intervenção em diversas condições clínicas. Ao longo deste artigo, foi discutido a importância de avaliar e compreender funções cognitivas como memória, atenção, linguagem e funções executivas de forma integrada, bem como o funcionamento neuropsicológico associado a diferentes transtornos e condições. A ANP possui caráter interdisciplinar, permitindo não apenas identificar déficits e habilidades, mas também orientar estratégias de reabilitação e acompanhamento, promovendo uma compreensão mais ampla e individualizada do paciente.
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Como citar este artigo: Silveira, M. M. P., Neto, A. C. S., Vilela, B. O., Lobo, B. O. M., & Neufeld, C. B. (Dez., 2024).
Fundamentos da Neuropsicologia: avaliação, diagnóstico e intervenções
. Blog do Secad.
Autoras
- Bianca Olímpio Vilela
Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Aluna de Iniciação Científica do Laboratório de Neuropsicologia do Desenvolvimento (LND/UFMG)
- Beatriz de Oliveira Meneguelo Lobo
Psicóloga e Mestra em Psicologia (área de concentração Cognição Humana) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Doutoranda em Psicologia em Saúde e Desenvolvimento pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da Universidade de São Paulo (USP), com bolsa pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Especialista em Terapias Cognitivo-Comportamentais e com Formação em Terapia do Esquema. Pesquisadora e Supervisora no Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental (LaPICC) da Universidade de São Paulo (USP). Associada à Federação Brasileira de Terapias Cognitivas (FBTC).