Como e quando iniciar insulina no meu paciente diabético tipo 2?
É essencial estabelecer alvos terapêuticos personalizados para cada paciente com DM2, buscando alcançar o melhor controle da doença, enquanto se avaliam cuidadosamente os riscos e benefícios de diferentes abordagens de tratamento. Este processo deve ser conduzido com empatia, levando em consideração as necessidades individuais e respeitando as preferências do paciente.
O diabetes mellitus tipo 2 (DM2) é uma doença crônica de alta prevalência, marcada por diferentes níveis de resistência à insulina e deficiência insulínica, o que leva à hiperglicemia e danos nos vasos sanguíneos em nível macro e microvascular. Como resultado, o DM2 é uma das principais causas de mortalidade, morbidade e incapacidade.
Muitos pacientes com DM2 eventualmente necessitam iniciar o tratamento com insulina devido à perda de eficácia ao longo do tempo das mudanças no estilo de vida e das medicações orais no controle da doença. Concomitantemente, a progressão do DM2 resulta em declínio na função das células-beta pancreáticas, reduzindo a eficácia de alguns agentes antidiabéticos orais. É importante destacar que, embora a melhora no controle glicêmico não reverta complicações macrovasculares já estabelecidas, pode desacelerar a progressão da doença e prevenir danos adicionais.
Neste artigo, será abordada a definição de metas terapêuticas para diversos perfis de pacientes, os critérios para iniciar a terapia com insulina, os princípios fundamentais do seu uso, além das principais dificuldades enfrentadas no manejo da insulinoterapia em pacientes com DM2.
Definição do alvo terapêutico individualizado
Ainda que a hemoglobina glicada (HbA1c) tenha valores bem definidos para o diagnóstico de DM2, o valor a ser atingido como expressão de adequação do tratamento e de bom controle de doença é variável, de acordo com as características de cada paciente.
Em linhas gerais:
Pacientesmais jovens e / ou com maior expectativa de vidaexigem um controlemais rigorosode doença, comalvos de HbA1c mais baixos.
Pacientesidosos e / ou com menor expectativa de vidanecessitam de um controlemenos rigorosoda doença, comalvos de HbA1c mais altos.
A recomendação de adotar uma abordagem mais flexível no controle glicêmico é motivada pelo potencial impacto negativo na qualidade de vida dos pacientes ao estabelecer metas terapêuticas mais agressivas em comparação com os benefícios alcançados. No tratamento do DM2, há o risco de hipoglicemia, o que está associado a um aumento do risco de quedas e, consequentemente, de morbimortalidade. Além disso, o uso de medicamentos por via subcutânea pode reduzir a qualidade de vida, assim como a complexidade da posologia dos medicamentos pode interferir na rotina diária do paciente. Esses aspectos contrastam com o benefício adicional limitado, especialmente para pacientes com mais de 65 anos, baixa expectativa de vida ou comorbidades já estabelecidas.
As recomendações da Associação Americana de Diabetes são:
- Alvo terapêutico rigoroso (HbA1c < 6,5%): recomendado para pacientes selecionados nos quais é possível atingir sem elevar substancialmente o risco de hipoglicemia ou de outros efeitos adversos do tratamento. Pacientes candidatos ao tratamento mais rigoroso:
- Diabetes de início recente
- Longa expectativa de vida (em geral com menos de 65 anos e ausência de comorbidades)
- Ausência de complicações micro e macrovasculares
- Alvo terapêutico intermediário (HbA1c < 7%):elegível para a maioria dos adultos não-gestantes sem história de hipoglicemia severa. Além dos critérios clínicos (ausência de risco adicional associado à hipoglicemia), considerações individuais devem ser levadas em consideração, como:
- Preferências do paciente
- Presença de problema de saúde mental grave ou dano cognitivo com impacto nas atividades de vida diária e no início de insulinoterapia, por exemplo
- Suporte do sistema de serviços de saúde para monitorização da glicemia capilar, quando indicado
- Habilidades do paciente e rede de apoio
- Alvo terapêutico menos rigoroso (HbA1c < 8%): apropriado para pacientes com:
- História de hipoglicemia severa
- Expectativa de vida limitada (por idade, complicações relacionadas ao DM2 ou outras condições como neoplasia, doença neurológica ou outra)
- Risco de danos do tratamento que superam os potenciais benefícios
Para locais sem acesso a HbA1c, os alvos da glicose plasmática são:
- Glicemia de jejum entre 80 e 130mg/dL
- Glicemia pós-prandial (1 a 2 horas após o início da refeição) < 180mg/dL
Os valores alvo para glicemia plasmática devem ser adequados às mesmas características do paciente consideradas no monitoramento da HbA1c.
Alvos terapêuticos para pacientes idosos (> 65 anos)
Para adultos com mais de 65 anos, o menor alvo terapêutico a ser buscado é o alvo intermediário (HbA1c < 7%), mesmo na ausência de dano cognitivo, com independência funcional e com comorbidades leves e controladas ou ausentes. A ocorrência de episódios que possam sugerir hipoglicemia deve ser ativamente questionada em todas as consultas dos pacientes diabéticos, sobretudo para os idosos.
Quando iniciar insulina para o paciente com DM2
Pacientes diabéticos com bom controle glicêmico devem realizar consultas de rotina a cada seis meses. Enquanto o controle glicêmico não for obtido, as revisões devem ser trimestrais.
Com a progressão de doença, muitos pacientes que obtinham bom controle podem passar a ter níveis mais elevados de HbA1c por falência das células pancreáticas e consequente redução na eficácia dos antidiabéticos orais.
Para pacientes sem adequado controle (ver alvos terapêuticos individualizados, acima), devem ser revisadas a adesão ao tratamento e às medidas comportamentais como alimentação e atividade física como etapa preliminar à revisão do manejo farmacológico.
Ainda que a insulina majoritariamente seja utilizada para pacientes com inadequada resposta aos medicamentos orais, são essencialmente duas as indicações de início de insulinoterapia:
Insulinoterapia no manejo inicial - ao diagnóstico
- Hiperglicemia severa (Glicemia de jejum > 250mg/dL, HGT aleatório > 300 mg/dL ou HbA1c > 9%) como apresentação inicial
Pacientes com diabetes sintomática e sinais de catabolismo (perda de peso) ou hiperglicemia severa com cetonúria - indicar início imediato de insulinoterapia, na ausência de contraindicações.
Pacientes com hiperglicemia severa sem cetonúria e sem perda de peso espontânea, sem probabilidade de diabete tipo 1 (DM1) como diagnóstico - considerar início de insulinoterapia em decisão compartilhada com o paciente.
- Dificuldade diagnóstica entre DM1 e DM2: ainda que o pico de incidência do DM1 seja a puberdade, cerca de 42% dos pacientes com DM1 são diagnosticados após os 30 anos. Manifestações como perda rápida de peso, sintomas de diabetes intensos de rápida instalação e ausência de cetonúria podem indicar diagnóstico de DM1, mesmo em adultos. História familiar de doenças autoimunes, ausência de história familiar de DM2 e eutrofia são outros indicadores de DM1 de início tardio. Nesses pacientes, deve ser iniciada insulinoterapia e referenciamento para endocrinologia para elucidação diagnóstica.
- Insuficiência pancreática: insulina indicada para pacientes com diabetes secundária a insuficiência pancreática, como pacientes com fibrose cística, pancreatite crônica ou pós-pancreatectomia.
Hiperglicemia persistente com o uso de antidiabéticos orais
O alvo terapêutico deve ser sempre identificado para cada paciente, com revisão após cada novo evento de saúde ou novo diagnóstico de comorbidade. Pacientes sem obtenção do alvo devem ter o manejo farmacológico reavaliado em paralelo à revisão da adesão às medidas orientadas.
Pacientes sem obtenção de alvo terapêutico adequado com modificações do estilo de vida e metformina podem precisar de um segundo antidiabético oral ou da adição de insulina.
Para pacientes que não desejam o início de insulina, o uso de agonistas dos receptores GLP-1, como liraglutida, pode ser escolha para diabéticos sem controle glicêmico e sem catabolismo, tendo como principal inconveniente atual o custo financeiro.
Como iniciar a insulinoterapia
O início da insulinoterapia costuma ser um marco na vida dos pacientes, devendo ser reforçada a necessidade pela história natural da doença, desmistificando a sensação de falência individual.
O esquema preferencial para início da insulina é a prescrição de Insulina NPH, de longa ação, cuja utilização costuma estar associada à maior satisfação do paciente em termos de facilidade de uso, a menor risco de hipoglicemia e a maior disponibilidade no sistema público.
A posologia sugerida é similar para início de tratamento ou após falha de antidiabéticos orais isolados:
Dose única diária, antes de dormir, com titulação de 0,2 unidades por kg de peso (mínimo 10 unidades e máximo 15 a 20 unidades no início do tratamento).
Para pacientes com HbA1c inicial superior a 8%, a dose inicial pode ser maior — entre 15 e 20 unidades ou 0,3 unidades por quilo de peso.
Os pacientes devem ser inicialmente revisados a cada 3 dias e a dose ajustada a partir da glicemia em jejum, com aumento de 2 a 3 unidades a cada revisão. Na ocorrência de sintomas de hipoglicemia, a dose deve ser reduzida em 10% ou em 4 unidades (o que for maior).
Quando o alvo da glicemia em jejum é atingido (80 a 130 mg/dL), devem ser aferidas as glicemias pré-almoço e pré-janta, buscando outros momentos de hiperglicemia para avaliação da necessidade de aplicações adicionais de insulina ao longo do dia. Nas situações em que a dosagem de NPH estiver superior a uma unidade por kg de peso do paciente, este deve ser referenciado ao endocrinologista.
Ao iniciar a insulinoterapia, o paciente deve idealmente ser encaminhado para uma consulta com farmacêutico clínico para orientações para aplicação da insulina. Nos casos de indisponibilidade, as principais orientações são:
- Locais de aplicação: parede abdominal, perna, braço ou nádega; realizar rotação de áreas de aplicação ao longo dos dias.
- Aplicar em pele íntegra, seca e limpa.
- Pinçar com o indicador e o polegar parte da pele da área escolhida e inserir a agulha. Empurrar o êmbolo, contar até 5, soltar a pele e remover a agulha, descartando em local específico para seringas.
- Utilizar sempre materiais individuais — não compartilhar agulhas ou caneta de insulina com outra pessoa.
- Manter a insulina NPH guardada na geladeira e observar o período de validade.
Barreiras comuns no início da insulinoterapia
Cerca de 25% dos pacientes com prescrição de insulinoterapia não iniciam o uso, por múltiplas razões. Fatores relacionados ao profissional também podem retardar o início da insulinoterapia. Algumas das barreiras para a insulinoterapia são revisadas abaixo:
- Risco de hipoglicemia:pode impactar na qualidade de vida do paciente, piorar a performance cognitiva e aumentar o risco de quedas, com aumento da mortalidade. O risco é minimizado a partir da individualização do alvo terapêutico, com a titulação cautelosa da dose e acompanhamento frequente. Educação do paciente em relação ao reconhecimento dos sinais e sintomas da hipoglicemia, técnicas de prevenção e manejo devem ser reiteradas a cada consulta.
- Risco de ganho de peso:frequente com uso de Insulina NPH, pode ser reduzido com o uso de análogos de insulina (como glargina e detemir, de ação longa) e é causado pelo anabolismo e pela ingesta mais frequente de alimentos para prevenir hipoglicemia. Estratégias de mitigação do risco são a dose única diária e o reforço das orientações de alimentação saudável e prática de atividade física regular.
- Tempo gasto para manejo da insulinoterapia e complexidade do regime:pacientes têm receio do impacto da insulinoterapia na rotina ao mesmo tempo que médicos podem acreditar que a introdução da insulinoterapia demandará muito tempo de treinamento e de orientações. Uso de canetas de insulina, posologias simplificadas, entrega de materiais impressos, uso de vídeos e outros materiais educativos e participação da equipe multiprofissional são indispensáveis para a otimização do tratamento minimizando tais impactos.
- Autopercepção de incapacidade:a necessidade de insulina pode gerar crenças de falha individual, com sentimentos de culpa e de tristeza. Orientar pacientes e familiares sobre o curso de doença e os benefícios da insulinoterapia pode auxiliar no manejo desses sentimentos, bem como o auxílio de acompanhamento psicoterápico quando necessário.
- Ideias erradas com relação a insulinoterapia:alguns pacientes acreditam que a insulina pode ser tóxica, ter potencial aditivo ou levar a doença cardíaca. Ouvir o paciente e suas dúvidas pode auxiliar a sanar tais mitos pode aumentar a adesão ao tratamento.
- Falta de confiança na capacidade ou habilidade do paciente:muitos profissionais subestimam a capacidade do paciente de manejar doenças e cuidar de sua saúde. O referenciamento a programas de suporte, consultas clínicas de enfermagem e a utilização de aplicativos para smartphone, bem como o acionamento da rede de apoio, são importantes para viabilizar a utilização de insulina com minimização dos riscos.
- Aspectos sociais:o estigma do uso de insulina é barreira para os pacientes, em parte pelo receio da necessidade de utilização em público. Orientar uma posologia adequada à rotina do paciente pode ser estratégia de aumento de adesão.
- Medo da dor da agulha:o medo de agulha ou dor intensa com injeções e com o monitoramento diário da glicemia podem ser entraves à insulinoterapia. Mostrar dispositivos com agulhas mais finas como canetas de insulina e a revisão da técnica de injeção podem aumentar a qualidade de vida do paciente.