O MAIOR ECOSSISTEMA DE EDUCAÇÃO EM SAÚDE DO BRASIL

Artmed

O MAIOR ECOSSISTEMA DE EDUCAÇÃO EM SAÚDE DO BRASIL

Artmed

Hepatite B crônica: como navegar no tratamento?

A infecção pelo vírus da hepatite B (HBV, do inglês
hepatitis B virus
) é um problema de saúde pública que afeta mais de 300 milhões de pessoas mundialmente; estima-se que a prevalência no Brasil seja de 6,7 casos a cada 100 mil habitantes.

A principal via de transmissão é materno-infantil no parto em regiões endêmicas e sexual ou uso de drogas em regiões de baixa prevalência. Apesar do empenho na inclusão da vacina no calendário de imunizações na década de 1990 e na informação sobre a doença, cerca de 17 mil novos casos são notificados anualmente no Brasil.  

O diagnóstico precoce tem papel importante para acompanhamento individual e a nível  populacional, e o rastreamento é indicado para grupos de alto risco. A presença de HBsAg positivo indica doença ativa ou recente, e sua presença por mais de 6 meses é marcador de doença crônica.

O curso da infecção varia de infecções assintomáticas com resolução espontânea, quadros graves com insuficiência hepática aguda e pacientes com infecção crônica subclínica. Destes, o quadro crônico com evolução silenciosa é o mais comum e está associado a complicações de longo prazo como cirrose, hepatocarcinoma e outras neoplasias (linfoma, colangiocarcinoma, câncer de pele e de útero, por exemplo).

Considerando essas graves consequências, revisaremos as orientações para o tratamento de pessoas com infecção crônica pelo HBV.   

Quem é candidato ao tratamento?
 

Diante de um paciente com infecção crônica por hepatite B, deve-se avaliar se ele é candidato ao tratamento, conforme apresentado na
Figura 1
. As principais indicações de tratamento são:  

  • (a) presença de cirrose; 
  • (b) elevação de transaminase pirúvica (TGP) em 2 vezes acompanhada de HBeAg reagente; 
  • (c) HBeAg reagente em paciente com mais de 30 anos de idade; 
  • (d) elevação de TGP em 2 vezes acompanhada de carga viral de HBV >2000 UI/mL..  

 
Figura 1
. Indicações de tratamento em paciente com infecção crônica pelo vírus da hepatite B. Adaptado de (2,3). 

Indicações de tratamento em paciente com infecção crônica pelo vírus da hepatite B

TGP, transaminase pirúvica; APRI, do inglês aspartase aminotransferase-to-platelet ratio index.

1 Sinais clínicos de cirrose: hipertensão portal (ascite, sangramento variceal ou encefalopatia), coagulopatia ou insuficiência hepática (icterícia). Outros sinais/sintomas de hepatopatia avançada incluem hepato ou esplenomegalia, prurido, fadiga, artralgia, eritema palmar e edema.

2 Avaliação de risco e indicação de profilaxia conforme presença de HBsAg e terapia proposta. Para mais detalhes, consultar Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Hepatite B e Coinfecções do Ministério da Saúde).

Na ausência de critérios que indiquem tratamento, o paciente deve ser reavaliado a cada 12 meses com TGP, investigação de cirrose (escore APRI é preferencial), HBsAg, HBeAg e carga viral (quando disponível). Pacientes com elevação intermitente de TGP e da carga viral (entre 2 mil e 20 mil cópias) e com coinfecção com HIV (vírus da imunodeficiência humana) têm maior risco de progressão e devem ser monitorados com maior frequência. 

Apesar de não ser o foco desta discussão, deve-se lembrar que pacientes com hepatite aguda grave ou com curso protraído que apresentam coagulopatia ou icterícia após 2-4 semanas do início do quadro deve-se considerar iniciar tratamento independente de HBeAg, transaminases ou carga viral de HBV.   

Quais os tratamentos disponíveis e como selecionar?
 

Os medicamentos disponíveis para tratamento de infecção por HBV no Brasil estão resumidos na
Figura 2.
Deve-se preferir sempre que possível o uso de análogos de nucleos(t)ídeo com alta resistência à mutação. Eles inibem a transcrição de RNA em DNA, conferem elevada eficácia a longo prazo associada a bom perfil de segurança, tolerabilidade, facilidade de posologia (administração via oral uma vez ao dia).

A lamivudina, indicada no passado para tratamento do HBV, tem alto risco de induzir resistência e não é mais recomendada. Além disso, seu uso prévio impacta na seleção do tratamento, levando à preferência pelo tenofovir alafenamida.  

Figura 2.
Tratamentos disponíveis no Brasil para tratamento de infecção pelo vírus da hepatite B. Adaptado de (5)
.
 

 Tratamentos disponíveis no Brasil para tratamento de infecção pelo vírus da hepatite B

Entre os análogos de nucleos(t)ídeo, a primeira escolha para adultos é o fumarato de tenofovir desoproxila (TDF) devido à maior eficácia e segurança, inclusive durante gestação. Em pacientes com perda de função renal (taxa de filtração glomerular <50 mL/min), a dose deve ser ajustada.

Entre os efeitos adversos (incomuns) estão nefrotoxicidade e hipofosfatemia (por perda renal - tubulopatia). Em função disso, em algumas situações seu uso deve ser evitado: 

  • Cirrose hepática; 
  • Uso de didanosina (em pacientes coinfectados com HIV); 
  • Condições renais: TFG <60mL/min, redução de TFG >25% após início do medicamento, microalbuminúria ou proteinúria persistente em 2 dosagens com intervalo de 2-3 semanas, fosfato sérico <2,5mg/dL ou uso de terapia imunossupressora ou quimioterápica nefrotóxico (p.ex., inibidor da calcineurina, micofenolato, metotrexato); 
  • Condições ósseas: osteoporose estabelecida, história de fratura patológica, uso por > 3 meses de medicamentos que reduzam densidade mineral óssea (p.ex., corticoide) ou escore FRAX para fraturas osteoporóticas maiores > 10%. 

Nas situações em que o TDF deve ser evitado (acima listadas), a terapia alternativa preferencial é o entecavir, também com posologia única diária. Este é o medicamento de primeira escolha em pacientes com cirrose descompensada (CHILD B ou C) ou em tratamento de imunossupressão ou quimioterapia. Especialmente em pacientes obesos ou com histórico de dislipidemia/esteatose hepática, o entecavir é considerado uma boa alternativa. Por ter uma barreira menor à resistência e mais sensível à perda de eficácia, a restrição mais comum ao fármaco é a exposição prévia ao uso de lamivudina. Como o uso de lamivudina é comum em pacientes com infecção por HIV, o entecavir é contraindicado em contexto de coinfecção. 

Ainda como alternativa dentro dos análogos nucleos(t)ídeos, temos o tenofovir alafenamida (TAF). Ele tem como vantagem ser um pró-fármaco e, portanto, mais estável no plasma e mais ativos nos hepatócitos. Sua indicação no contexo brasileiro é naquelas situações em que se indicaria entecavir, porém o paciente fez uso prévio de lamivudina. Infelizmente, sua segurança não foi comprovada em gestantes, doença renal crônica com filtração < 15 ml/min (sem diálise), cirrose Child B ou C e menores de 18 anos. Nestes casos TDF deve ser utilizado, com maior atenção às complicações do tratamento. 

O principal uso do interferon é em pacientes jovens que desejam minimizar a chance de necessitar tratamento em longo prazo. Além disso, pelo seu mecanismo de ação, ele não induz resistência. Seu tratamento é com injeção semanal subcutânea com duração de 48 semanas. A principal questão é a seleção adequada dos candidatos, uma vez que seus efeitos adversos podem ser muito limitantes. Ele deve ser ofertado aos pacientes sem contraindicações (
Tabela 1
) e discussão de alvos terapêuticos e riscos deve ser realizada. O uso de contracepção altamente efetiva também é parte do tratamento. Os efeitos adversos mais comuns são fadiga, sintomas gripais, cefaleia, anorexia, perda ponderal, alopecia. Além disso, exacerbação ou surgimento de doenças autoimunes também pode acontecer. 

Tabela 1
. Contraindicações ao tratamento da hepatite B crônica com interferon. Adaptado de (5).

Quando considerar suspender o tratamento?
 

O tratamento com interferon deve durar 48 semanas conforme apresentado acima. Para pacientes em terapia oral (análogos nucleos(t)ídeos), a recomendação é de que aqueles com cirrose devem continuar a terapia com análogo de nucleos(t)ídeo durante toda a vida, com risco de reativação da doença e descompensação da cirrose.

Em pacientes sem evidência de cirrose a asuspensão do tratamento é discutível e está acompanhada com alta taxa de reativação (mais que 50% em 24 meses da suspensão). A segurança dessa decisão é maior em pacientes com negativação sustentada do HBsAg (além dos critérios abaixo) e que fizeram tratamento por mais que 24 meses.

Pode-se considerar suspender a terapia desde que atendam todos critérios abaixo abaixo: 

  • Possibilidade de seguimento e monitorização clínico-laboratorial em longo prazo para monitorar reativação; e 
  • Carga viral indetectável em 2 exames com intervalo de um ano; e 
  • Negativação de HBsAg (ideal) ou conversão de HBeAg para anti-HBe em 2 exames com intervalo de um ano; e 
  •  Normalização persistente de transaminases. 

 
Coinfecções
 

Algumas coinfecções por HIV, HCV (vírus da hepatite C) e HDV (vírus da hepatite D) podem impactar a evolução e o cuidado dos pacientes com acometimento crônico pelo HBV.

O HIV aumenta a chance de cronificação e a replicação do HBV e reduz a chance de negativação espontânea do HBeAg. Além disso, a associação entre os vírus leva a uma menor resposta ao tratamento com interferon. Considerando que tanto lamivudina, quanto tenofovir são úteis para o tratamento de ambas infecções e devem ser utilizados. Por outro lado, didanosina, pela sua interação com tenofovir, não deve ser utilizada.  

Já na associação entre HCV e HBV, pode-se optar por tratamento simultâneo ou por dar preferência ao vírus predominante (usualmente o HCV). Quando se optar por tratar inicialmente o HCV, deve-se atentar ao risco de reativação do HBV com o uso de antivirais de ação direta.  

Por fim, a infecção pelo HDV tem íntima relação com o HBV - o primeiro necessita da infeção pelo segundo para completar seu ciclo viral. No Brasil ela é mais comum na região norte, na bacia amazônica.

Do ponto de vista clínico, a coninfeção faz com que o HDV "domine" a replicação viral; na maioria dos casos há curso agudo, bifásico de hepatite. Deve ser investigado com a dosagem de anti-HDV IgG em paciente com HBV e vínculo epidemiológico. No Brasil recomenda-se o tratamento associado com interferon e análogo nucleos(t)ídeo por 48 semanas e com renovação por mais 48 semanas, se houver sinais de atividade viral. Ao final do tratamento, deve-se manter o análogo nucleos(t)ídeo em uso (TDF ou entecavir).    

Resumo

  • A infecção crônica pelo HBV eleva o risco do indivíduo a desenvolver cirrose, hepatocarcinoma e outras amnifestações extrahepáticas. O seu tratamento visa reduzir esse risco. 
  • As principais opções de tratamento são análogos nucleos(t)ídeos (tenofovir e entecarvir) com alta barreira a mudações. Todos pacientes com cirrose devem ser tratados, bem como pacientes com sinais de dano hepático ativo. 
  • O uso de interferon deve ser considerado em pacientes jovens, com baixo risco de efeitos adversos, com desejo de evitar tratamento em longo prazo e sem contraindicações. 
  • A maioria dos indivíduos necessitará tratamento com análogos de nucleos(t)ídeos por longo prazo, mas para alguns pacientes selecionados pode-se discutir suspensão.  

Gostou desse conteúdo e quer seguir se atualizando? 
No PROCLIM (Programa de Atualização em Clínica Médica)
, você recebe uma seleção de conteúdos indicados pela SBCM que não podem ficar de fora da sua rotina. 
Conheça mais
!