Infecção do trato urinário em lactentes: como conduzir?

As infecções do trato urinário (ITUs) são uma causa comum de infecções em crianças. Elas podem ocorrer em crianças com trato urinário normal, mas também podem ser um primeiro indicador de anormalidade do trato urinário. O prognóstico da ITU é bom quando a infecção é diagnosticada e tratada precocemente. O tratamento adequado pode prevenir a propagação da infecção e subsequente formação de cicatrizes renais.
Epidemiologia
A ITU é a segunda infecção bacteriana mais prevalente em pediatria, atingindo 8,4% das meninas e 1,7% dos meninos menores de 7 anos de idade, com alto risco de recorrência dentro do primeiro ano do episódio inicial. No primeiro ano de vida, afeta igualmente meninos e meninas. Os picos de incidência ocorrem no lactente, na segunda infância e na adolescência.
Fatores predisponentes em lactentes incluem refluxo vesicoureteral (RVU) e outras anomalias estruturais; por outro lado, em crianças que já adquiriram ou estão adquirindo controle esfincteriano, as alterações funcionais do trato urinário são os principais fatores.
Fatores de risco
- Recém-nascido e lactente;
- Febre por mais de 48 horas;
- Nenhuma outra fonte aparente de febre;
- Febre maior ou igual a 39°C;
- Anomalias estruturais do trato urinário;
- Refluxo vesicoureteral;
- Válvula de uretra posterior;
- Síndrome de Prune Belly;
- Estenose da junção ureteropélvica ou ureterovesical;
- Megaureter;
- Doença renal policística;
- Alterações funcionais;
- Disfunção vesical e intestinal;
- Bexiga neurogênica;
- Outros fatores;
- Sonda vesical de demora;
- Imunossupressão;
- Neonatos;
- Meninos não circuncidados.
Diagnóstico da ITU em lactentes
Figura 1: Quadro clínico em crianças com infecção do trato urinário

Métodos de coleta de urina
Em lactentes, a coleta de urina adequada é muito relevante para o diagnóstico e tratamento correto da infecção do trato urinário (ITU) . Existem diferentes métodos de coleta, cada um com suas particularidades e indicações
- Cateterismo vesical: este é um método rápido e seguro para obter uma amostra de urina confiável, com uma taxa de contaminação de cerca de 10%. É recomendado para crianças sem controle esfincteriano.
- Punção suprapúbica (PSP):considerado o método mais invasivo, oferece a menor taxa de contaminação, aproximadamente 1%. A PSP é recomendada para crianças sem controle esfincteriano, mas é pouco utilizada.
- Clean catch (jato médio):um método possível para lactentes é o clean catch, que envolve a ingestão de líquidos (25ml/kg) e estímulos na região sacral e suprapúbica para estimular a micção e coletar o jato intermediário.
- Saco coletor:método não invasivo, porém com uma alta taxa de falsos positivos devido à contaminação. Sua utilidade é limitada a descartar o diagnóstico de ITU se o resultado for negativo. Em quadros clínicos leves, pode ser usado como triagem, mas um resultado positivo deve ser confirmado por um método invasivo ou urocultura.
- Teste rápido com fita reagente:a fita reagente urinária (dipstick) pode ser útil como triagem inicial para detectar esterase leucocitária e nitritos
A urocultura ainda é o padrão ouro para diagnóstico de ITU, mas necessita de 24h a 48h para o resultado. O sedimento urinário será sugestivo de ITU se apresentar piúria (acima de 5-10 leucócitos por campo de grande aumento), nitrito positivo, esterase leucocitária positiva ou presença de bactérias.
A contagem de colônias bacterianas considerada para o diagnóstico na cultura de urina depende do método de coleta. Na amostra obtida por punção suprapúbica (PSP), qualquer contagem de colônias é válida; no cateterismo vesical, será considerada a contagem acima de 50.000 UFC/ml, e no jato intermediário, se acima de 100 mil UFC/ml.
Achados laboratoriais e exames de imagem indicados
Na pielonefrite, pode ser solicitado hemograma, que em geral mostra leucocitose com neutrofilia com desvio à esquerda, embora esses achados sejam inespecíficos.
Nos casos de sepse pode haver pancitopenia e hemocultura positiva. Observa-se com frequência aumento na concentração da proteína C reativa (PCR > 20) e na velocidade de hemossedimentação (VHS > 25). Os níveis de ureia e creatinina também podem se elevar discretamente, sendo rara a franca insuficiência renal. Alterações eletrolíticas e acidose metabólica podem estar presentes de acordo com a extensão do acometimento parenquimatoso renal.
A ultrassonografia de rins e vias urinárias é o exame de maior facilidade de execução e na fase aguda da doença está indicado apenas nos pacientes com evolução desfavorável nos primeiros dias de antibioticoterapia, em ITU com quadro sistêmico grave, doença renal prévia, história de litíase ou cirurgias recentes de trato urinário.
É um exame não invasivo e permite visualizar dilatação de ureteres, tamanho e posição renal, presença de cálculos maiores, massas e abscesso renais, espessamento vesical e retenção urinária.
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Manejo clínico da ITU em lactentes
Recomenda-se iniciar o tratamento empiricamente com um medicamento de menor espectro antimicrobiano possível, com base na coloração de Gram, se disponível. Caso contrário, deve-se priorizar a cobertura para
Escherichia coli
, conforme o padrão de sensibilidade bacteriana local (resistência inferior a 20%). A revisão da terapia precisa ocorrer em 48 a 72 horas, apoiada no antibiograma, avaliando a possibilidade de descalonamento antibiótico.
O tempo de terapia antibiótica na ITU febril é de 10 dias de acordo com as diretrizes inglesa (NICE), italiana (ISPN) e australiana (KHA-Cari). As diretrizes canadense e americana (AAP) sugerem de 7 a 14 dias, e a Colaboração Cochrane afirma serem necessários novos estudos para definir tempo de terapia. Solicitar creatinina sérica antes do tratamento, especialmente se utilizar aminoglicosídeo.
Figura 2: Algoritmo de conduta terapêutica inicial para avaliação de suspeita diagnóstica de infecção urinária febril em menores de 2 anos de idade.

Antibióticos comumente utilizados
Pielonefrite
Drogas parenterais:
- Cefuroxima 150mg/kg/dia (8/8h)
- Gentamicina 5-7,5mg/kg/dia, 1x ao dia IV ou IM
- Amicacina 15mg/kg/dia, 1x ao dia
- Cefotaxima 100-200mg/kg/dia (6/6h ou 8/8h)
- Piperacilina/Tazobactam 300mg/kg/dia (6/6h ou 8/8h)
Drogas via oral:
- Cefuroxima 30mg/kg/dia (12/12h)
- Cefaclor 40mg/kg/dia (12/12h)
- Amoxicilina-Clavulanato* 20-40mg/kg/dia (8/8h)
- Ciprofloxacina 20 a 30mg/kg/dia(12/12h)
*última opção, devido à maior alteração de flora intestinal
Tratamento de cistite (via oral)
- Nitrofurantoina 5-7mg/kg/dia (6/6h)
- Cefalexina 50mg/kg/dia (6/6h ou 8/8h)
- Sulfametoxazol – Trimetoprima 6-12mg TMP/kg/dia (12/12h)
Critérios para internação
- Lactentes com menos de dois meses de idade
- Suspeita de urosepse
- Intolerância à ingestão de líquidos, alimentos ou medicação oral .
- Vômitos persistentes
- Desidratação
- Febre alta (>39°C)
- Comprometimento do estado geral.
- Ausência de resposta ao tratamento ambulatorial evidenciada em falta de melhora clínica em 48 horas
Prevenção e seguimento
Para evitar a recorrência da infecção do trato urinário (ITU) em crianças, diversas orientações e medidas preventivas podem ser implementadas, focando tanto em hábitos diários quanto em intervenções médicas específicas
As ITUs em lactentes podem estar associadas a malformações do trato urinário ou distúrbios da bexiga. A investigação dessas condições é crucial para prevenir recorrências. Tratar a constipação pode levar a uma diminuição no número de ITUs.
É importante excluir disfunção vesico-intestinal em qualquer criança com controle esfincteriano que apresente ITU febril e/ou recorrente, e tratar adequadamente. Para crianças maiores outras medidas comportamentais associadas a micção regular podem ser implementadas.
Quimioprofilaxia
É importante considerar profilaxia em crianças com alterações na ultrassonografia (antenatal ou atual), ITU febril com PCR positivo, RVU graus 4 ou 5, uropatias obstrutivas, ou ITUs recorrentes (dois ou mais episódios de pielonefrite, um episódio de cistite e um de pielonefrite, ou 3 ou mais episódios de cistite), até o término da investigação.
Figura 3: Gradação refluxo vesico-ureteral

Preferir drogas com alto nível urinário e baixo nível sérico, menos efeitos colaterais, baixo custo, bom sabor, ecológica (poucos efeitos na flora intestinal), ativa contra uropatógenos e pouca resistência bacteriana. Utilizar de um terço à metade da dose terapêutica, uma vez ao dia (preferencialmente à noite).
As drogas atualmente mais efetivas são nitrofurantoína, sulfametoxazol e trimetoprima (nos maiores de 6 semanas de vida) e cefalexina (nos menores de 6 semanas). Sempre se deve considerar a sensibilidade bacteriana local devido à oscilação no perfil de resistência antimicrobiana. O uso prolongado de profilaxia antibacteriana tem sido associado ao aumento da resistência microbiana .
Outras medidas profiláticas
- Suplementos dietéticos:cranberry pode diminuir o risco de ITUs em crianças saudáveis e com anomalias urogenitais, mostrando-se tão eficaz quanto a profilaxia antibiótica, embora os resultados variem entre estudos. Probióticos mostram resultados promissores em crianças com anatomia urogenital normal, mas ainda são necessários mais estudos para confirmar sua utilidade.
- Prevenção:o uso de creme de esteroide no prepúcio em meninos com fimose fisiológica e ITU reduziu significativamente as ITUs recorrentes. A circuncisão em recém-nascidos com anomalias anatômicas também pode prevenir ITUs
Indicações de investigação de anomalias estruturais
A investigação de anomalias estruturais do trato urinário em crianças envolve uma série de exames de imagem específicos com o objetivo de identificar condições que possam predispor a recorrência, pielonefrite e cicatrizes renais. Não há evidência científica que suporte um protocolo de investigação específico. A maioria das diretrizes concorda na indicação da ultrassonografia como avaliação inicial em pacientes menores de 2 anos que apresentem pielonefrite. Os demais exames são solicitados em situações específicas.
- Ultrassonografia (US) de rins e vias urinárias:exame não invasivo que fornece uma imagem anatômica dos rins, incluindo o tamanho, e avalia a presença de dilatações na pelve renal ou ureter. Permite verificar o esvaziamento da bexiga e a espessura da parede vesical. É recomendada após o primeiro episódio de ITU febril em crianças menores de 2 anos. Deve ser feito após a resolução dos sintomas agudos para evitar resultados falso-positivos devido à inflamação renal .
- Uretrocistografia Miccional (UCM):é indicada se a ultrassonografia detectar alguma anormalidade ou em casos de ITUs recorrentes. É realizado após cateterização, preenchendo a bexiga com contraste radiopaco e obtendo radiografias durante a micção, dura aproximadamente 30 minutos e pode envolver exposição à radiação. As diretrizes da National Institute for Health and Care Excellence (NICE) recomendam a UCM para crianças menores de 3 anos com ITU atípica ou recorrente.
- Cintilografia Renal com DMSA (Ácido Dimercaptosuccínico):este exame utiliza DMSA injetado intravenosamente para detectar pielonefrite aguda e cicatrizes renais através da diminuição na captação do DMSA. Pode ser realizada em duas fases: precoce (até duas semanas após a ITU) para avaliar o envolvimento do parênquima renal ou tardia (4 a 12 meses após a infecção aguda) para detectar cicatrizes renais. As diretrizes do NICE recomendam a cintilografia tardia para crianças menores de 3 anos com ITUs atípicas ou recorrentes, e para crianças mais velhas com ITUs recorrentes. Este exame é especialmente útil em crianças com alto risco de cicatrizes renais, como aquelas com RVU de alto grau e múltiplos episódios de ITU febril.
A escolha do exame de imagem apropriado depende da apresentação clínica do paciente, dos resultados da ultrassonografia inicial e do histórico de ITUs. A interpretação dos resultados deve ser realizada por um especialista, considerando os riscos e benefícios de cada procedimento, especialmente a exposição à radiação.
Conclusão
O diagnóstico de ITU em lactentes pode ser desafiador devido aos sintomas inespecíficos. É necessário que a coleta de urina seja adequada e que a antibioticoterapia seja direcionada pela urocultura após 48h. Exames de imagem serão necessários em casos específicos e podem ajudar a diagnosticar malformações do trato urinário e orientar terapia profilática a fim de evitar cicatrizes renais futuras.