Insuficiência hepática aguda: etiologias, quadro clínico e manejo
A insuficiência hepática aguda (IHA) é uma condição rara e grave
definida por injúria hepática aguda associada a encefalopatia e distúrbio de coagulação
(alteração do tempo de protrombina) em indivíduo geralmente sem doença hepática prévia. Os termos como hepatite fulminante, necrose hepática aguda ou fulminante também são utilizados. A distinção entre IHA e hepatite aguda grave é um ponto importante, considerando que a primeira está associada a pior prognóstico; pacientes com hepatite aguda grave podem apresentar icterícia e coagulopatia, mas a IHA é diferenciada principalmente pela presença de encefalopatia.
A cronologia do quadro é a característica que distingue a IHA do quadro crônico — cirrose. Define-se como acometimento agudo o quadro com duração menor que 26 semanas. Dentro deste período, a IHA pode ser classificada em hiperaguda (<7 dias), aguda (7-21 dias) ou subaguda (> 21 dias). Embora haja correlação entre prognóstico e temporalidade, a velocidade de instalação tem relação mais íntima com a etiologia. As condições que causam dano hiperagudo (por exemplo, intoxicação por paracetamol) tendem a ter, por si só, melhor prognóstico do que as condições que se instalam de forma subaguda (por exemplo, doença de Wilson).
Apesar de rara (<10 casos por milhão de pessoas por ano), a IHA é tem maior relevância por acometer principalmente adultos jovens e previamente hígidos, o que leva a grande comprometimento de anos de vida. Além disso, é uma condição desafiante, melhor manejada (pelo menos inicialmente) em unidade de terapia intensiva e, preferencialmente, em centros que realizam transplante hepático.
As principais marcas da IHA (
Figura 1
) são alteração de funções mentais e da coagulação, vasodilatação periférica, síndrome da resposta inflamatória sistêmica e disfunção multiorgânica que progridem ao longo de dias ou semanas. O efeito multissistêmico da falência hepática por muito tempo esteve associado a mau prognóstico.
Felizmente, o avanço em tratamentos e a experiência com transplante levaram a melhora importante da sobrevida, que chega a mais de 60% nos melhores centros. Além do suporte clínico, como em outras insuficiências orgânicas, o reconhecimento e o tratamento de etiologias específicas podem alterar desfechos e devem ser buscados.
Figura 1
. Manifestações multissistêmicas da insuficiência hepática aguda. Adaptado de (2).
Etiologias
A IHA tem diversas causas conhecidas (Tabela 1). É importante ressaltar que existem variações sociodemográficas quanto às etiologias de IHA. Nos países de média e baixa renda é uma doença mais comum (principalmente pelos vírus da hepatite A, B e E). Por outro lado, em países desenvolvidos intoxicações são a causa mais comum, uma vez que vacinação, saneamento e educação tem papel protetor contra causas virais.
Os principais responsáveis por IHA em países de baixa e média renda são os vírus de hepatites A e E. O risco individual dos infectado para desenvolver IHA é baixo (menos de 1%), porém a incidência da infecção é elevada. Outra causa comum é o vírus da hepatite B, que pode ser o causador de IHA por primoinfecção ou reativação de infecção prévia subclínica em cenários de imunossupressão (tratamento de câncer, transplante). Outras etiologias virais de IHA são menos comuns, mas devem ser consideradas em casos de difícil diagnóstico e em pacientes imunocomprometidos.
A intoxicação acidental ou intencional por paracetamol é uma importante causa de IHA em países desenvolvidos. O efeito é dose-dependente e em geral a dose para causar IHA é >150mg/kg, o que a diferencia da maioria dos outros medicamentos associados à IHA - que causam dano hepático idiossincrático. Laboratorialmente é quase patognomônica a associação de elevação significativa de transaminases (>3500 IU/L) e apenas e discreta alteração de bilirrubina. Pode haver redução do limiar de toxicidade com o uso de medicamentos (anticonvulsivantes, tuberculostáticos, opioides) ou compostos de ervas que interferem no metabolismo hepático. A desnutrição e o jejum prolongado também são fatores de risco.
A hepatotoxicidade decorrente da ingestão de fármacos ou outros compostos além do paracetamol é uma preocupação crescente e já responsável por quase 50% dos casos de injúria hepática nos Estados Unidos. Atenção na revisão de medicamentos e produtos "naturais" é fundamental. Além da
extensa lista de medicamentos
dos quais este efeito adverso é conhecido, o uso inadvertido de produtos como anabolizantes, chás e suplementos dietéticos pode induzir dano hepático.
Quadro clínico e laboratorial
A apresentação clínica da IHA na maioria das vezes é inespecífica e inclui fadiga, letargia, inapetência, náusea/vômito, dor abdominal, prurido e icterícia. Com a progressão do quadro, a encefalopatia se torna marcada e tem importância diagnóstica e prognóstica. Os exames laboratoriais iniciais têm papel de firmar o diagnóstico, estratificar a gravidade do dano hepático e investigar a etiologia provável (
Tabela 2
).
O diagnóstico de IHA requer a evidência de injúria hepática (aguda), geralmente aferida por elevação de transaminases, que são enzimas presentes em maior concentração nos hepatócitos e liberadas na circulação quando há dano à membrana celular. É fundamental que haja elevação de transaminases para diagnóstico, embora em cenários de necrose hepática maciça os níveis possam não ser tão elevados porque a injúria foi tão extensa que resultou em baixa reserva de hepatócitos restantes. Embora sejam importantes para o diagnóstico, as transaminases não avaliam a função de síntese do fígado, que é complementar para o diagnóstico. Assim como as transaminases auxiliam na identificação da intoxicação por paracetamol, na doença de Wilson são esperados níveis reduzidos de fosfatase alcalina acompanhados de níveis elevados de bilirrubinas.
A encefalopatia e os distúrbios de coagulação são os achados que refletem a perda de função hepática. Alterações de consciência devem ser cuidadosamente avaliadas quando se suspeita de injúria hepática. A encefalopatia que se desenvolve pode ser classificada em 4 estágios (Tabela 3) que variam desde distúrbios de comportamento a coma. Qualquer indício de encefalopatia sugere a necessidade de monitorização em terapia intensiva devido ao potencial de progressão rápida. O diagnóstico se completa com a presença de alteração na dosagem do tempo de protrombina >1,5x o controle.
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Manejo
O reconhecimento precoce da IHA, a investigação etiológica e o tratamento de suporte, preferencialmente em centro de terapia intensiva, são as principais intervenções a serem realizadas. A Figura 2 demonstra as complicações mais frequentes e seu manejo. Garantir o equilíbrio de eletrólitos e fluidos é fundamental em estágios iniciais a fim de prevenir novas disfunções orgânicas. Apesar de alteração no tempo da protrombina ser inclusive um critério diagnóstico, ele não é bom marcador do status dos fatores de coagulação; dessa forma sangramento grave é um evento raro.
Figura 2. Principais complicações, avaliações e tratamentos de suporte para pacientes com insuficiência hepática aguda. Adaptado de (2,6).
HIC, hipertensão intracraniana; IOT, intubação orotraqueal; VD, ventrículo direito.
A encefalopatia é uma das principais marcas da falência hepática, e sua progressão está associada a pior prognóstico. Dentre as complicações neurológicas, a hipertensão intracraniana é uma condição muito grave e temida. Está relacionada ao estado de hipotonicidade, que, se de instalação rápida, pode levar a danos neurológicos permanentes ou até à morte por herniação do uncus cerebral. Diante dessa suspeita, deve-se considerar monitoramento invasivo de pressão intracraniana e terapias específicas como manitol, salina hipertônica (com alvo de natremia 145-155 mmol/L) e hiperventilação.
Além do manejo do edema cerebral, deve-se estar atento para ajustar os distúrbios metabólicos que são comuns ao quadro, especialmente hipoglicemia e alterações eletrolíticas. Por fim, perda de função renal e edema pulmonar também acometem mais da metade dos pacientes e devem ser monitorados e manejados adequadamente.
Tratamentos para etiologias específicas
Algumas condições de IHA são passíveis de tratamento específico. Dentre elas se destaca a intoxicação pelo paracetamol, que é etiologia comum em países desenvolvidos. Se for suspeitado de ingestão recente de sobredose de paracetamol, deve-se administrar imediatamente carvão ativado (dose padrão 1g/kg via oral). Apesar de o benefício ser mais evidente em até 1h da ingesta, pode ser administrado em até 3-4h, e só é eficaz se a intoxicação for por via oral ou enteral.
A terapia específica que atua como antídoto do paracetamol no restabelecimento da via da glutationa é a n-acetilcisteína. O fármaco deve ser administrado tão rapidamente quanto possível diante da suspeita de IHA por esta causa, por via endovenosa (preferencialmente). O evento adverso de maior preocupação é reação anafilactóide, que exige monitorização constante. A maioria dos pacientes tem reações leves, mas se houver surgimento de urticária ou, mais grave, angioedema, a infusão deve ser suspensa temporariamente. Hipotensão e sintomas persistentes são a única contraindicação à completar o tratamento.
Quando se trata de causa infecciosa, também há tratamento direcionado para algumas condições. Embora os vírus de hepatite A e E sejam causas frequentes de IHA, não há recomendação de uso de terapia antiviral direcionada no quadro agudo. Discute-se o uso de ribavirina em hepatite E aguda grave, porém o fármaco não é seguro na gestação e gestantes são as mais acometidas por IHA por esse vírus.
Pacientes com hepatite aguda grave causada pelo vírus da hepatite B têm indicação de tratamento independente de HBeAg, transaminases ou carga viral. Os análogos de nucleosídeo (entecavir ou tenofovir) são a primeira escolha.
Avaliação prognóstica e indicação de transplante
A identificação precoce dos pacientes que terão evolução desfavorável é fundamental, considerando que disfunções de múltiplos órgãos podem se encadear e levar a óbito antes da possibilidade de avaliação de transplante - que, por vezes, é a única alternativa para evitar o óbito. A decisão de indicar o transplante leva em conta a chance de recuperação espontânea.
Principais fatores prognósticos são a idade, o grau de disfunção hepática e a gravidade da encefalopatia. Pacientes com encefalopatia grau 1 ou 2 tem até 70% de chance de recuperação espontânea, enquanto paciente com grau 4 tem menos de 20%.
O instrumento mais utilizado para avaliação prognóstica (e portanto, para apoiar a decisão de indicar transplante hepático) é o conjunto de critérios do
King's College
. Do total de transplantes hepáticos, apenas 10% são em pacientes com IHA. O procedimento é de maior risco do que em pacientes eletivos devido à gravidade da doença aguda. Apesar de piores desfechos durante o primeiro ano (sepse e complicações neurológicas), a sobrevida estimada após este período se iguala e até mesmo supera a de pacientes submetidos a transplante por causas eletivas / crônicas.
Resumo
- A insuficiência hepática aguda (IHA) é uma condição rara e grave definida porinjúria hepática(elevação de transaminases)aguda(< 26 semanas)associada a perda de função hepática(encefalopatia e elevação do tempo de protrombina). Esse quadro costuma ocorrer em indivíduos jovens e sem doença hepática prévia.
- Dentre as variadas etiologias, destacam-se as causas virais (especialmente os vírus de hepatite A, B e E) e intoxicação intencional ou acidental (p.ex., paracetamol, anabolizantes, chás).
- A apresentação clínica é com sintomas inespecíficos: fadiga, náuseas, prostração e confusão. Os exames laboratoriais iniciais (Tabela 2) têm papel de firmar o diagnóstico, estratificar a gravidade do dano hepático e investigar a etiologia provável.
- O reconhecimento precoce da IHA, monitorização de deterioração neurológica e correção de distúrbios metabólicos associados são fundamentais. Algumas condições (intoxicação por paracetamol, hepatites virais) são passíveis de tratamento específico. Em pacientes com baixa chance de recuperação espontânea, deve ser considerado transplante hepático de urgência.