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Tratamento da hepatite C: do interferon aos antivirais de ação direta

A infecção crônica pelo vírus da hepatite C (HCV, do inglês
hepatitis c virus
) é um problema global e é considerada uma prioridade de saúde pública no mundo. Estima-se globalmente mais de 58 milhões de pessoas com hepatite crônica, 1,5 milhão novas infecções ao ano e quase 300 mil óbitos em função desta doença.

No Brasil, 0,7% da população tem anticorpos positivos e 632 mil pessoas tem viremia detectável. O tratamento contemporâneo tem taxas de cura acima de 90% e é eficaz para interromper da história natural da doença (progressão para cirrose e hepatocarcinoma). Em função disso a Organização Mundial de Saúde (OMS) propôs que até 2030 o HCV deixe de ser um problema de saúde pública, reduzindo a taxa de novas infecções em 90% e as mortes em 65%. 

Antes da identificação do vírus em 1989, a transfusão inadvertida de hemocomponentes infectados era o meio de contágio mais comum. Felizmente esse risco foi praticamente anulado em países que instituíram métodos eficazes de triagem de doadores. Atualmente, o uso de drogas injetáveis é um meio frequente de transmissão.

Apesar de haver casos em que se identifica a infecção aguda pelo HCV, a maioria dos pacientes é identificada na fase crônica e a as principais consequências da infecção ocorrem em longo prazo. Destaca-se a cirrose hepática, que é a responsável primária pela morbimortalidade decorrente do HCV. Com a progressão da fibrose hepática (por vezes independente dela), aumenta a incidência de hepatocarcinoma, que incide em 2-3% por ano dos pacientes com cirrose já estabelecida. Além destas, outras múltiplas complicações extrahepáticas incluindo autoimune, linfoproliferativa, renais e metabólicas estão associadas com o HCV.  

A história rápida da construção do conhecimento sobre esta infecção é digna de nota. Em menos de 40 anos foi-se de um tipo de hepatite de causa desconhecida (chamada de "não-A não-B"), passou-se pela identificação do agente etiológico, pelo tratamento com medicamentos inespecíficos e pouco tolerados (com eficácia de 40-60%) até chegarmos ao cenário atual com propostas de controle mundial da doença através de identificação e acesso universal a antivirais de ação direta (
direct acting antivirals
- DAA).

Os DAA são medicamentos amplamente tolerados, tem taxa de cura (resposta viral sustentada - RVS) acima de 90% e, em abordagens mais recentes, permitem tratamento de primeira linha independente do genótipo (abordagem pangenotípica). Neste texto, vamos explorar um pouco mais do tratamento do HCV e das opções atuais para o seu tratamento. 

A evolução do tratamento da hepatite C
 

Antes mesmo da identificação do vírus do HCV, deu-se o uso experimental de interferon para controle desta doença em meados dos anos 1980. Na época, o desfecho aferido era a redução de transaminases circulantes, e o sucesso era obtido em menos de 40% dos casos. O uso combinado de interferon e ribavirina no tratamento da infecção por HCV teve início na década de 1990. Nesta época também identificou-se a importância do genótipo na resposta ao tratamento. Os genótipos 2 e 3 (menos comuns na maior parte do mundo) tinham taxas de RVS de 60-80%, enquanto o genótipo 1 dificilmente chegava a 50%.  

Nos anos 2000 surgiu o tratamento com interferon-peguilado com maior eficácia e posologia semanal. A segurança e a eficácia da terapia dual evoluíram durante a primeira década dos anos 2000, com identificação de preditores de resposta ao tratamento e a proposta de tempo individualizado de terapia necessária para a cura. O tratamento individualizado foi o avanço terapêutico na época, diante do uso de medicamentos por longo prazo (12 a 72 semanas) e ainda com efeitos adversos importantes. 

O entendimento da biologia do vírus da hepatite C guiou o surgimento de uma série de novos tratamentos para a infecção. Em contraste à terapia dual com interferon e ribavirina, os DAA atuam diretamente em proteínas chave para a replicação do HCV. A classe dos inibidores de protease foi pioneira. Infelizmente, a terapia isolada com a nova droga rapidamente induziu resistência. A estratégia combinada com os três medicamentos (inibidor de protease em associação a interferon e ribavirina) foi um avanço, mas os pacientes ainda estavam expostos aos efeitos do interferon e da ribavirina. 

O primeiro esquema livre de interferon foi possível com o surgimento do sofosbuvir, medicamento com efeito pangenotípico, menos reações adversas e alta barreira para indução de resistência. Desde então o tratamento tem tido avanços marcados e rápidos, especialmente  com o incremento de terapias antivirais diretas para combinação com o sofosbuvir.

Considerando o preço para o consumidor final (até R$70 mil ao mês), é muito salutar que essas medicações estejam incorporadas ao Sistema Único de Saúde brasileiro, permitindo amplo acesso a um tratamento altamente eficaz e tolerável. Atualmente, o tratamento tem se voltado para esquemas pangenotípicos (sofosbuvir/velpatasvir ou glecaprevir/pibrentasvir). O objetivo é que sejam prescritos em ampla escala e de forma simplificada, tão precoce quanto for a identificação a fim de favorecer o sucesso global da terapia. 

Para quem e como realizar o tratamento com os DAAs?
 

É recomendado que o tratamento para hepatite C seja oferecido sem demora a todo paciente com infecção confirmada por HCV; essa é a estratégia
teste e trate
que visa atingir os alvos propostos pela OMS de controle da doença até 2030.

Um ponto relevante é que a testagem sorológica isolada não é suficiente, uma vez que 20% dos pacientes que tem contato com HCV não cronificam; ou seja, é necessária realização de teste de PCR (
polymerase chain reaction
) para confirmação do diagnóstico.  

São candidatos ao tratamento pacientes com infecção recém adquirida ou crônica por HCV, independente do uso ou não de tratamento prévio, com expectativa de vida que maior que 12 meses, desde que não haja contraindicações ao tratamento. A presença de cirrose descompensada com expecatitva menor de 12 meses, indicação de transplante hepático por cirrose descompensada ou ocorrência associada de câncer e cirrose com expectativa de vida menor que 12 meses são consideradas contraindicações ao tratamento. Ainda assim alguns desses pacientes podem se beneficiar do tratamento e essa decisão deverá ser individualizada. 

Antes do tratamento, é necessário avaliar a situação clínica do paciente, considerando doenças hepáticas e não hepáticas associadas. Além da confirmação do HCV através de exame de PCR é necessária avaliação da presença de cirrose. Para isso, várias opções são aceitáveis: uso de escores, biópsia hepática ou elastografia hepática; em função de maior comodidade e disponibilidade, os escores de
APRI
ou
FIB-4
são preferenciais.

Em pacientes com cirrose, deve-se calcular o escore
Child-Pugh
, pois, assim como a presença de cirrose, seu estágio altera a abordagem terapêutica. Além disso, recomenda-se a realização de alguns exames complementares adicionais, apresentados na
Tabela 1
. Por fim, 12 semanas após o término do tratamento, deve-se realizar novo PCR para o HCV para documentar a RSV, que é considerada cura do vírus.

Apresentamos na
Figura 1
o resumo da abordagem para iniciar o tratamento em pacientes com HCV no contexto brasileiro, levando-se em conta as opções incorporadas ao SUS pelo ministério da saúde. 

Tabela 1. Exames recomendados para pacientes com HCV. Adaptado de (2).

Figura 1. Abordagem esquemática de pacientes com HCV para primeiro tratamento. Adaptado de (2,5).

Os efeitos adversos com os DAAs são considerados raros. Apesar de ser uma recomendação discutível (em especial considerando os esforços para simplificar o tratamento), recomenda-se realizar hemograma, dosagem de creatinina, transaminases e bilirrubina na quarta semana do tratamento.

Pacientes utilizando ribavirina necessitam maior atenção com o desenvolvimento de anemia. Efeitos adversos são considerados raros; os mais descritos são inespecíficos e leves, como fadiga e náusease. As principais preocupações são reativação do vírus da hepatite B (HBV - vide abaixo) e descompensação de cirrose.  

Abaixo estão listadas algumas situações especiais que podem surgir em pacientes com HCV contemplando o tratamento: 

  • Pacientes com coinfeção com vírus da imunodeficiência humana (HIV), recomenda-se inicialmente buscar o controle do viral e recuperação imunológica com terapia antirretroviral. Deve-se também avaliar interações medicamentosas.  
  • Como discutido acima, há descrição de reativação do HBV durante o tratamento com DAAs. Em função disso, deve-se inicialmente controlar o HBV (alvo <2.000 UI/mL no PCR quantitativo para HBV). 
  • O tratamento do HCV não deve ser realizado na gestação. Além disso, deve-se evitar engravidar durante o tratamento e até 6 meses após esse. Em caso de gravidez, deve-se suspender o tratamento imediatamente.  
  • Crianças a partir de 12 anos e com mais de 30 kg estão contempladas no esquema geral descrito acima. Apesar de ser recomendado por uso de velpatasvir com sofosbuvir para pacientes mais jovens, o ministério da saúde brasileiro recomenda que crianças entre 3 e 11 anos façam tratamento com interferon peguilado e ribavirina.   

É necessário fazer genotipagem?
 

Com a disponibilização e expanção da oferta de DAAs pangenotípicos em 2022, o ministério da saúde está caminhando para dispensar a genotipagem na maiora dos pacientes. Atualmente a genotipagem se tornou indicada apenas quando mudar a indicação do tratamento. A principal situação para isso é pacientes com falha ao esquema inicial e for se planejar o retratamento. No contexo brasileiro, crianças entre 3 e 11 também tem indicação. 

Resumo

  • O tratamento do HCV mudou marcadamente nos últimos anos com o desenvolvimento e, mais recentemente, incorporação dos DAAs pelo SUS. São medicamentos muito bem tolerados em com chance de cura do vírus > 90%. 
  • Estratégias de expansão de diagnóstico e tratamento são recomendadas mundialmente e no Brasil. O médico deve estar atento a esse diagnóstico e saber os passos da investigação e manejo (vide resumo esquemático
    Figura 1
    ). 
  • Na avaliação deve-se estar atento à cirrose (em especial descompensada) e à perda de função renal.  Os escores de de
    APRI
    ou
    FIB-4
    são úteis para identificação da cirrose. 
  • O tratamento com DAAs pangenotípicos irá dispensar da genotipagem para a grande maioria dos pacientes, simplificando a abordagem e reservando abordagens mais específicas para situações especiais (falha ao tratamento, crianças).  

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