Ludoterapia: o que é e como fazer
O que é ludoterapia?
Ludoterapia é uma modalidade de atendimento psicológico realizado com crianças, no intuito de trabalhar as dificuldades emocionais que possam interferir em sua vida. Geralmente, quem busca atendimento psicológico para as crianças são os seus cuidadores, seja por iniciativa própria ou por indicação da escola ou outros profissionais.
Esta modalidade é feita exclusivamente por psicólogos, por se tratar de um tratamento psicoterapêutico de fundamentação científica. É um processo complexo que necessita da participação da família e da escola, ambientes em que a criança vive a maior parte de suas experiências de vida.
De um ponto de vista histórico, essa modalidade surgiu com a clínica psicanalítica infantil, primeiro com os trabalhos realizados pela psicanalista Hermine Hug-Hellmuth (1921), posteriormente por Melanie Klein (1923), seguida de profissionais de outras abordagens, como Virginia Axline (1947).
Desde o início de suas ideias, a ludoterapia caminha para além dos critérios diagnósticos das crianças, pois se constitui como intervenção que objetiva a diminuição da angústia, de comportamentos considerados desadaptativos (sofrimento psíquico) e ao aumento (ou melhora) do funcionamento pró-social (Carvalho, Godinho, & Ramires, 2016).
Para sua compreensão é importante considerar o conceito de infância. Primeiro a criança era vista como adulto (século XI), sem necessidades específicas. Era uma mera espectadora, passiva, sem voz (infante = quieto). Posteriormente, a criança foi sendo incluída como um ser com particularidades, que requeria cuidado específico. A noção de infância, conhecida na atualidade, desenvolveu-se a partir do século XVI e XVII (Ariès, 1973/2006; Telles, 2014), momento em que as crianças se separam do universo adulto e são consideradas mais inocentes e com cuidados próprios.
Nesse contexto, várias ideias vão surgindo, com destaque a um culto à maternidade. No século XX a criança é vista sob um aspecto científico e social, há necessidade de estudos que compreendam esse período bem como a inserção infantil na vida em sociedade (Abrão, 2001). Surgiu a necessidade de inserir a criança na legislação, com a criação dos estatutos, delineando direitos e deveres, incluindo a família, a comunidade, a sociedade e o poder público como ativos em seu cuidado.
A noção de criança percorre um caminho: desde a não necessidade de cuidado, até a mobilização de diferentes contextos de auxílio. Interessante pensar nesse percurso, pois, apesar da inserção social, política e econômica, as crianças nem sempre encontram espaço para se desenvolver em suas famílias, nas escolas e no ambiente social. É de fundamental importância compreender e escutar as crianças frente às suas experiências, com o intuito de acessar a sua vivência, de maneira contextualizada.
Como estar com as crianças?
O cuidado emocional das crianças é um trabalho complexo, que exige formação, estudo e capacidade de seguir diretrizes específicas. A Organização Mundial de Saúde (WHO, 2003) assinala que, para abordar os problemas de saúde mental infantil, é necessário partir de uma perspectiva de compreensão, intervenção e elaboração de diretrizes políticas a nível nacional.
São estratégias fundamentais de intervenção e prevenção a capacidade de planejar, incrementar e potencializar serviços de atendimento nesta área, considerando a complexidade das situações adversas e de risco, identificando seu reflexo nas trajetórias de desenvolvimento (individual, familiar, escolar, social).
Como iniciativa do governo brasileiro, em 2010 o Ministério da Saúde lançou a Estratégia Brasileirinhos e Brasileirinhas Saudáveis (EBBS, Brasil, 2010), cuja proposta é produzir ações que sustentem o desenvolvimento infantil em sua plena potência, com especial atenção aos primeiros anos de vida. Essa iniciativa busca o desenvolvimento psíquico infantil saudável por meio de planejamento familiar e pré-natal, parto e puerpério humanizados, oferta de cuidados aos membros da família e seguimento da criança até seis anos de idade. O principal marco teórico desta estratégia é o conceito de ambiente facilitador de Winnicott (1971/1975), pediatra e psicanalista inglês, que destacou a importância do ambiente no desenvolvimento emocional infantil e o conceito de saúde como expressão criativa da criança.
Aspectos comuns das ludoterapias
O brincar
O brincar representa um processo de aprendizagem e descoberta do ser humano, que contribui para a construção das relações sociais e expressões individuais (Höfig & Zanetti, 2016). É por meio da brincadeira que as crianças aprendem regras e limites, de forma voluntária e prazerosa.
O brincar revela processos íntimos, desejos, problemas e ansiedades. Ao brincar a criança se coloca como um ser ativo, capaz de ter autonomia e explorar o mundo, com curiosidade e interesse. Ela faz ensaios, compreende e assimila gradualmente regras e padrões, absorve o mundo em pequenas doses, toleráveis a ela.
O processo lúdico aparece como um dos principais eixos da ludoterapia, a criança, brincando, expressa seu modo de ser e suas experiências (vividas e sonhadas). A ludoterapia, portanto, apresenta-se como possibilidade de auxiliar a criança, por meio do brincar, a se expressar de forma espontânea e real, sentindo que pode ser alguém e ocupar um espaço no mundo.
Esse processo acontece de forma livre, natural, sem imposição do que é certo ou errado, mas com a ideia de que a criança é capaz de fazer uso dos objetos, da forma como ela quiser, pois só assim irá expressar quem ela sente ser.
Por meio da brincadeira, a criança apresenta ao psicoterapeuta seu desenvolvimento físico, mental e emocional. Assim, o psicoterapeuta se comunica com a criança, em um encontro real e único, de acolhimento às necessidades infantis e oferecimento de um espaço de suporte às dificuldades.
A ludoterapia, portanto, é um espaço de encontro para simbolização de conflitos psíquicos; encontro de uma dupla, em que a criança e o terapeuta se expõem, se conhecem e vivenciam experiências. “A psicoterapia se efetua na sobreposição de duas áreas do brincar: a do paciente e a do terapeuta. A psicoterapia trata de duas pessoas que brincam juntas”. (Winnicott, 1971/1975, p. 59)
A aliança terapêutica
Outro aspecto comum nas abordagens psicoterápicas infantis é a
aliança terapêutica
. Ela é definida como uma relação positiva e estável entre terapeuta e paciente, que permite experienciar uma psicoterapia.
Em ludoterapia
, a aliança terapêutica
é ainda mais importante que no tratamento com adultos, pois, enquanto estes voluntariamente buscam ajuda profissional, as crianças raramente procuram ou desejam tratamento.
O sucesso na aliança terapêutica está fortemente relacionado com a forma como o terapeuta colabora com a criança no
setting
, com o fato de não ser excessivamente formal ou invasivo, exigindo que a criança fale sobre assuntos que ela não queira. Os estudos são unânimes ao afirmar que quanto melhor a qualidade da aliança na ludoterapia, maior a mudança terapêutica, qualquer que seja a abordagem utilizada (Horvath, 2001).
Quando é possível estabelecer um bom vínculo, as crianças são capazes de se expressar mais livremente em relação aos seus conflitos e medos, demonstrando confiança no terapeuta. Confiar em quem está ali para ajudar é um passo importante para confiar em si, acreditar em seu potencial e aceitar, com prazer, o amadurecimento emocional.
Conclusão
A ludoterapia é uma forma de trabalho extremamente eficaz para intervir e prevenir prejuízos em relação à saúde mental infantil. Seu valor está na expressão lúdica, na autonomia e na tolerância à frustração, sempre em um clima de confiança que se estabelece por meio da comunicação afetiva com o terapeuta (aliança terapêutica).
O intuito da ludoterapia é promover a saúde emocional das crianças, possibilitando que elas consigam lidar com suas próprias questões, ter autonomia e se expressar em diferentes situações, sem se sentirem mobilizadas ou paralisadas pela angústia. É um trabalho preventivo que propicia a construção das bases para integração emocional; intervir nos primeiros anos de vida significa agir para a prevenção de perturbações mentais, promovendo saúde e bem-estar.
A ludoterapia se configura também como um campo de produção científica e de práxis voltada às demandas em cada cultura. Diversos aspectos devem ser considerados, daí a complexidade do tema, como a participação familiar e escolar. Estar com a criança é também estar com o seu ambiente, com sua unicidade e inserção cultural.
Como estratégia de cuidado, a ludoterapia precisa se voltar para as demandas atuais de seus pacientes. Os psicólogos infantis devem atualizar suas ferramentas técnicas em relação às dificuldades e aos sintomas da contemporaneidade, tendo como premissa a singularidade e a criança como ser biopsicossocial.
As vivências infantis são singulares, não é possível a homogeneização dessas experiências. A compreensão do caráter de singularidade da infância rompe com um olhar meramente comparativo entre modelos de infância ou mesmo com a dinâmica do adulto.
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Autoras
- Fernanda Kimie Tavares Mishima
Professora Doutora do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFLCRP-USP). Doutora e Mestre pela FFCLRP-USP. Coordenadora do Serviço de Triagem e Atendimento Infantil e Familiar (STAIF) do serviço escola da FFCLRP-USP. Supervisora de estágios na área infantil e familiar. Pesquisadora na área: “Infância, família e desenvolvimento emocional”. Escritora de livros científicos e literários.
- Beatriz de Oliveira Meneguelo Lobo
Psicóloga e Mestra em Psicologia (área de concentração Cognição Humana) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Doutoranda em Psicologia em Saúde e Desenvolvimento pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da Universidade de São Paulo (USP), com bolsa pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Especialista em Terapias Cognitivo-Comportamentais e com Formação em Terapia do Esquema. Pesquisadora e Supervisora Clínica no Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental - LaPICC-USP da Universidade de São Paulo (USP).
SOBRE A EDITORA-CHEFE
Carmem Beatriz Neufeld:
Psicóloga. Pós-Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenadora do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental – LaPICC-USP. Professora Associada do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – USP. Presidente da Associação Latino-Americana de Psicoterapias Cognitivas - ALAPCO (2019-2022). Presidente da Associação de Ensino e Supervisão Baseados em Evidências - AESBE (2020-2023).