Luta Antimanicomial no Brasil: estamos caminhando para uma redução do estigma das pessoas com transtornos mentais?
Um breve histórico da Luta Antimanicomial Brasileira
A Reforma Psiquiátrica Brasileira teve início no final da década de 70 em um contexto marcado por movimentos sociais que exigiam o término da Ditadura Militar (1964-1985), a redemocratização do país e a ampliação de direitos, como o acesso universal à saúde. No que se refere ao campo da saúde mental, o Brasil encontrava-se em um estado significativo de atraso em comparação à Europa. No país, existia repasse expressivo de recursos públicos para os hospitais psiquiátricos com a presença de diversas violações de direitos humanos, como os encontrados no Hospital Colônia de Barbacena no estado de Minas Gerais e o caso de escravização de pessoas com deficiência intelectual no estado de Goiás (Braga & Farinha, 2018).
Nesse cenário, a constituição do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) propulsionou o processo da reforma, apesar do termo reforma psiquiátrica só ter passado a ser comumente adotado no final da década 80. Com o objetivo de reformulação da assistência psiquiátrica no Brasil, o MTSM realizou diversas articulações com outras entidades, como o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) e a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), e organizou eventos importantes, como o I Congresso de Saúde Mental em São Paulo (Amarante & Nunes, 2018).
Posteriormente, O II Congresso de Saúde Mental tornou-se um marco histórico por enfatizar a necessidade de se ter “uma sociedade sem manicômios”, deixando de ser um coletivo limitado aos profissionais e passando a se tornar um movimento social, incluindo pessoas com transtornos mentais, os familiares destes e ativistas de direitos humanos. Além disso, o segundo congresso passou a defender de modo explícito a extinção das instituições e lógicas de cuidado manicomiais. Consequentemente, foi formado o Movimento da Luta Antimanicomial (MLA) (Amarante & Nunes, 2018).
O MLA formou diversos núcleos nas capitais e em grandes cidades brasileira. Tal fato foi decisivo para que na cidade de Bauru no estado de São Paulo fosse criado o Dia Nacional da Luta Antimanicomial, 18 de maio. Essa data teve e tem até os dias de hoje a proposta promover na sociedade brasileira uma maior reflexão acerca da violência institucional da psiquiatria e da segregação social que as pessoas portadoras de transtorno mental, ou que estejam em sofrimento psíquico, passam. O 18 de Maio tem se tornado tão relevante no cenário brasileiro que o mês de maio é considerado o Mês da Luta Antimanicomial (Amarante & Nunes, 2018).
Ao longo do tempo, é inegável os avanços que ocorreram com o movimento da reforma psiquiátrica brasileira, mesmo diante dos obstáculos presentes no percurso. Entre os progressos estão, por exemplo, a
Lei nº 10.216
. Essa lei dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, com o surgimento de novos dispositivos de cuidado, como o Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), hospitais-dia, centros de convivência e cultura, centros de referência, Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), entre outros (Amarante & Nunes, 2018).
Desse modo, entre outros aspectos, a evolução da reforma tem ocorrido pelo estabelecimento de serviços substitutivos, diminuição do quantitativo de leitos em hospitais psiquiátricos, e a extinção de alguns, e a criação de leitos em hospitais gerais (Braga & Farinha, 2018). Ademais, destaca-se o ano de 2011, período em que foi instituída a
Rede de Atenção Psicossocial
(RAPS), pela Portaria GM/MS nº 3.088.
A RAPS é considerada um símbolo da luta antimanicomial. Ela amplia o acesso à atenção psicossocial da população em geral, promove o acesso das pessoas com transtornos mentais e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas e suas famílias aos pontos de atenção e garante a articulação e integração dos pontos de atenção das redes de saúde no território. Os pontos de atenção fazem parte dos componentes da atenção básica em saúde, atenção psicossocial especializada, atenção de urgência e emergência, atenção residencial de caráter transitório, atenção hospitalar, estratégias de desinstitucionalização e reabilitação psicossocial.
Apesar dos avanços inegáveis na implementação de um novo modelo de cuidado, é imperativo questionar se a sociedade realmente progrediu em reduzir o estigma enfrentado pelas pessoas com transtornos mentais. Afinal, elas representam uma parcela significativa da população global. Em 2017, estimava-se que 792 milhões de pessoas viviam com pelo menos um transtorno de saúde mental, correspondendo a cerca de 10,7% da população mundial (Dattani, Ritchie, & Roser, 2021).
Estigma às pessoas com transtornos mentais e profissionais de saúde mental
De acordo com as National Academies of Sciences, Engineering, and Medicine (2017), o estigma pode ser compreendido como um fenômeno dinâmico multidimensional que ocorre em três níveis: estrutural, público e autoestigma.
No nível estrutural, o estigma está presente nas instituições públicas e privadas, incluindo empresas, tribunais, governo, grupos profissionais, sistemas escolares, agências de serviço social e universidades, ocorrendo por meio de leis, regulamentos e políticas. Tal quadro pode endossar as situações de discriminação, contribuindo para a ocorrência dos estigmas nos outros dois níveis (p. ex., limitar o exercício dos direitos civis, formulação de políticas discriminatórias para contratação ou admissão das pessoas com transtornos mentais e/ou que fazem uso de drogas com base em estereótipos).
No que se refere ao nível público, o estigma se dá por meio dos comportamentos de indivíduos e grupos, envolvendo suas atitudes, crenças e comportamentos. Entre os grupos podem estar presentes profissionais da educação, de saúde e da mídia, policiais, juízos, legisladores, etc.
Por fim, o nível autoestigma trata-se de estereótipos negativos internalizados, o que pode ter por consequência uma redução da autoeficácia e mascarar ou esconder sua condição de saúde mental para evitar rótulos por outros indivíduos e grupos que possam o discriminar. Tal cenário pode aumentar a probabilidade da ocorrência de uma série de problemas. Por exemplo, as pessoas com transtornos mentais e os que fazem uso de drogas podem não buscar uma avaliação diagnóstica de profissional de saúde adequados, não sendo submetidos a tratamentos precoces que poderiam evitar novos episódios ou agravamento do quadro patológico e tendo uma qualidade de vida reduzida, com baixa produtividade no trabalho, internações frequentes e morte prematura (National Academies of Sciences, Engineering, and Medicine 2017).
No caso de profissionais de saúde mental, Hinshaw (2007) afirma que apesar de muitos serem dedicados, respeitosos e se esforçarem de modo contínuo para melhora dos seus pacientes, uma parcela não possue minimamente atitudes neutras em relação às pessoas com transtornos mentais e/ou que fazem uso de drogas (Rössler, 2016). Muitas vezes, possuem crenças e atitudes negativas em níveis similares ou até mais fortes do que as pessoas da população em geral. Por exemplo, apesar de terem percepções consideradas positivas acerca dos indivíduos que sofrem de uma condição mental, os profissionais relatam menor vontade de ter contato social com eles.
Algumas hipóteses são formuladas por Rössler (2016). Entre as suposições estão as de que os profissionais lidam constantemente com pacientes que possuem dificuldades em aderir ao tratamento ou que o processo de construção de uma positiva relação terapêutica é permeado por problemas. Nesse sentido, o que pode ser feito? No caso dos psicólogos e psiquiatras, a abordagem da Terapia Cognitivo-comportamental pode contribuir com estratégias úteis.
Reduzindo o estigma do profissional de saúde mental por meio da adesão ao tratamento e da relação terapêutica
A relação terapêutica pode ser compreendida como uma troca entre terapeuta e cliente. Ela se desenvolve com a finalidade de ser compartilhado os pensamentos, as crenças e as emoções, aumentando a probabilidade de mudanças de vida. Para isso, a relação precisa envolver uma atmosfera segura, aberta e sem julgamentos (Kazantzis, Datillio, & Dobson, 2017).
Além do desenvolvimento de habilidades básicas de aconselhamento por parte do terapeuta (p. ex., empatia, aceitação do cliente, validação, compreensão acurada, acolhimento genuíno, interesse, valorização positiva, zelo, encorajamento, dar reforços positivos, entre outros) defendido por Beck (2022), Wenzel (2021) enfatiza alguns recursos para promover uma relação terapêutica eficaz e que também estão relacionados a aumentar adesão ao tratamento:
- Colaboração:cliente e terapeuta trabalham em uma espécie de equipe, tomando decisões conjuntas ao longo da terapia a fim de que o cliente sinta que sua contribuição é valorizada e que trabalha com um profissional que investe em seu bem-estar e progresso.
- Solicitação de feedback:requisitar regularmente feedbacks ao cliente é imprescindível na TCC. Comumente, dois momentos da sessão são relevantes:1) no início da sessão atual, quando o terapeuta requisita um feedback para fazer uma ponte com sessão anteriore2) no final da sessão, quando é demandado um resumo final do que foi trabalhado no atendimento em questão.Em ambos os casos, Wenzel (2021) sugere que os terapeutas avancem em direção para o aprendizado que o cliente conquistou, pois permitirá que seja revelado aspectos das mudanças terapêuticas e possibilitará uma intervenção para que se solidifique o novo conhecimento do cliente a fim deste recuperá-lo e usá-lo entre as sessões.
- Respeito pelas diferenças individuais:os terapeutas devem respeitar as diferenças individuais, ou seja, as características psicológicas que tornam cada pessoa única. Tal respeito valoriza as forças e tendências pessoais particulares que influenciará o contexto do cliente perceber o eu, os outros, o mundo e o futuro. Desse modo, a relação terapêutica será fortalecida, bem como a adesão do cliente à terapia.
- Descoberta guiada: questionar os clientes para identificar seus principais pensamentos e crenças associados à maneira como eles estão se sentido em uma situação específica e para ajudá-los a chegar a uma maneira mais adaptativa de ver uma situação.
Leia mais:Aliança terapêutica: a importância para a formação de vínculo e permanência na psicoterapia
Conclusão
Evidentemente, conforme mencionado anteriormente, as estratégias descritas podem não ser totalmente válidas para os casos de profissionais de saúde mental que tenham crenças mais centrais e generalizadas acerca do que representa as pessoas com transtornos mentais. Ademais, os estigmas que podem estar presentes podem variar conforme a gravidade e o tipo de transtorno mental em questão.
No que se refere aos níveis de estigma, faz-se necessário a implementação de outras ações quando envolvem conjunturas de estigmatização mais amplas, como o estrutural. Desse modo, Rössler (2016) enfatiza três abordagens para reduzir o estigma das pessoas com condições mentais patológicas, entre elas estão: a
mpliação da informação e educação sobre os transtornos mentais, protestos contra as discriminações das pessoas com transtornos mentais e maior contato direto da população com tais indivíduos.
Esse conjunto de estratégias podem também ser utilizados pelos profissionais de saúde mental.
Não menos importante, no Brasil, embora seja notável os progressos alcançados no campo da saúde mental com o estabelecimento de uma rede composta por dispositivos de cuidado, ainda é necessário investir continuamente para o alcance das diretrizes da RAPS (Brasil, 2011). Entre estas estão: respeito aos direitos humanos, garantindo a autonomia e a liberdade das pessoas; promoção da equidade; combate a estigmas e preconceitos; garantia do acesso e da qualidade dos serviços; atenção humanizada e centrada nas necessidades das pessoas; diversificação das estratégias de cuidado; desenvolvimento de atividades no território, que favoreça a inclusão social com vistas à promoção de autonomia e ao exercício da cidadania; desenvolvimento de estratégias de redução de danos e ênfase em serviços de base territorial e comunitária, com participação e controle social dos usuários e de seus familiares.
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Como citar:
Anjos Filho, N. C. dos & Neufeld, C. B. (2022, mês data.). 18 de maio, Dia Nacional da Luta Antimanicomial do Brasil: estamos caminhando para uma redução expressiva do estigma das pessoas com transtornos mentais? Blog do Secad. [Site]
SOBRE A EDITORA-CHEFE
Carmem Beatriz Neufeld:
Psicóloga. Pós-Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenadora do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental – LaPICC-USP. Professora Associada do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – USP. Presidente da Associação Latino-Americana de Psicoterapias Cognitivas - ALAPCO (2019-2022). Presidente da Associação de Ensino e Supervisão Baseados em Evidências - AESBE (2020-2023).