Pneumonia adquirida na comunidade: aspectos práticos do manejo
Pneumonia adquirida na comunidade (PAC) é definida por qualquer infecção no trato respiratório inferior (abaixo na glote). Apesar desta definição ampla, que inclui qualquer patógeno, usado de forma não especificada, no uso corrente este termo se restringe a infecções por bactérias e, eventualmente, por vírus. Nesta postagem o enfoque serão as PAC bacterianas.
Trata-se de um problema de saúde extremamente comum e importante. Dados de 2016 estimam que ocorreram 3 milhões de casos no mundo, sendo a quarta causa de óbito no mundo e a principal causa de morte por infecção. Dados do Brasil sugerem que há uma tendência de redução da mortalidade ajustada por idade nas últimas 2 a 3 décadas, provavelmente refletindo melhora socioeconômica e maior acesso a recursos de saúde.
Quanto aos agentes, o pneumococo (
Streptococcus pneumoniae
) é ainda o principal agente, e a taxa de resistência em levantamentos nacionais segue baixa na população em geral – e isso tem implicações relevantes no tratamento, como veremos. Outros agentes bacterianos frequentes são
H. influenzae, S. aureus, M. pneumoniae, Legionella sp., Chlamydophila sp.
e
Moraxella catarrhalis
. E, quanto às causas virais, temos principalmente influenza, vírus sincicial respiratório e, nos anos recentes, SARS-CoV-2.
Avaliação clínica
Avaliação para o diagnóstico
O quadro clínico clássico da pneumonia inclui sintomas e sinais respiratórios como tosse com ou sem catarro, dispneia, dor torácica (pleurítica ou não), crepitantes finos ou grosseiros, sopro tubário, macicez à percussão pulmonar, bem como exacerbação de doenças pulmonares ou sistêmicas prévias. Os achados no exame pulmonar são classicamente unilaterais. Também é comum haver sintomas gerais, como mal-estar, fadiga, febre, calafrios. Pacientes com quadros de CAP atípica (germes como
H. influenzae, M. pneumoniae, Legionella sp.
) costuma ter sintomas sistêmicos mais marcados e menos sintomas pulmonares, sem catarro ou dor torácica, com dispneia incaracterística e tosse seca.
A PAC com frequência elevada não tem patógeno identificado e, como veremos, o tratamento empírico recomendado leva em conta a prevalência dos germes, não o quadro clínico. Ainda assim, algumas bactérias têm apresentações peculiares:
- O pneumococo tipicamente tem o quadro pneumônico clássico, com calafrios súbitos, dor pleurítica, febre e escarro cor de ferrugem / avermelhado.
- A legionela pode causar confusão mental, diarreia aquosa, bradicardia relativa e alterações laboratoriais como elevação de transaminases, hiponatremiae hipofosfatemia.
- O stafilococos aureus pode incluir infiltrado cavitário na radiografia de tórax, hemoptise, derrame pleural de instalação rápida e achados cutâneos, comorash, pústulas e acometer jovens saudáveis, frequentemente no verão.
A radiografia de tórax é o exame mais clássico na PAC, sendo o principal exame complementar. Ela está indiscutivelmente indicada quando há dúvidas diagnósticas, suspeitas de complicações (principalmente derrame pleural), nos pacientes com necessidade de internação hospitalar e quando o tratamento mostra resposta clínica pouco satisfatória. Pacientes ambulatoriais de baixo risco e com quadros clássicos podem ser tratados sem realização de radiografia. Além da radiografia, o uso de ultrassom à beira do leito tem se expandido para este fim.
A tomografia computadorizada de tórax tem acurácia marcadamente maior que o raio-x e indica um diagnóstico alternativo em até 16% dos casos. Entretanto, está associada com maior exposição à radiação ionizante, maior custo e menor disponibilidade. Ela deve ser considerada em pacientes com quadros graves e falência terapêutica e em pessoas com imunosssupressão. Outro recurso frequentemente utilizado são os marcadores inflamatórios (proteina C reativa [PCR] e procalcitonina). Resumidamente, a procalcitonina tem uma melhor acurácia para o diagnóstico (mas é menos disponível) e ambos podem ser utilizados para avaliar resposta ao tratamento, indicando boa resposta quando há redução (~50%) em 48-72 horas do início do tratamento.
Todos os pacientes hospitalizados e a maioria dos pacientes ambulatoriais devem realizar exame de cultura de escarro e, eventualmente, hemocultura na busca do agente etiológico. Se disponível, testes sorológicos (pneumococo, legionela, bordetela) podem ajudar neste aspecto. Exame de investigação viral (biologia molecular) pode ajudar na identificação etiológica e deve ser sempre realizado em casos de PAC grave. Há dúvidas sobre o papel dos vírus, uma vez que podem ser copatógenos ou colonizadores; ainda assim, influenza, vírus sincicial respiratório, SARS-CoV-2 e metapneumovírus devem ser considerados como causa (ou contribuidor) para os sintomas respiratórios sempre que identificados.
Por fim,
o diagnóstico de PAC é feito na presença de um quadro clínico compatível acompanhado de sintomas clássicos
. Como vimos, em algumas situações, pode-se usar apenas o quadro clínico. De uma forma ou de outra, o médico deve estar atento que este quadro inespecífico, compartilhado por diversas outras doenças cardiopulmonares e, assim, deve-se estar atento a evolução do quadro para revisar o diagnóstico se a evolução não for a esperada.
Classificação de gravidade
Além da avaliação diagnóstica, um passo obrigatório e definidor de conduta é a avaliação de gravidade dos pacientes com PAC. Existem diversos escores e ferramentas para este fim, e eles visam transformar a impressão clínica em critérios objetivos e ajudam tanto a direcionar a seleção de antibiótico quanto o local que o tratamento deve ser realizado. Ainda assim, os escores não devem ser usados de forma isolada, não devem substituir a impressão clínica e fatores pessoais como suporte social, capacidade de uso da medicação por via oral, comorbidades e outros fatores de vulnerabilidade podem influenciar as decisões.
Além disso, deve-se investigar ativamente presença de fatores de risco para pseudomonas, um germe menos comum na PAC, mas que em alguns grupos de pacientes tem maior risco de ocorrer. Isto inclui pacientes com colonização sabida pelo germe, com DPOC e exacerbações frequentes, com internação há menos de 90 dias e uso de antibiótico recente, com bronquiectasias ou outra doença pulmonar estrutural e imunossupressão.
Quanto aos escores de avaliação de gravidade, existem diversas opções, como o CURB-65, PSI, SCAP, SMART-COP, todos disponíveis em calculadoras na internet de fácil acesso. Não existe clareza se um deles é melhor que o outro na população brasileira. Os mais testados são o CURB-65 e o PSI, nestes as recomendações mais claras; o CURB-65 tende a ser preferido pela simplicidade. Pacientes com CURB-65 menor que 2 ou PSI menor que 70, com possibilidade de tratamento via oral e sem outros fatores de fragilidade (social, econômico, comorbidades) podem receber tratamento ambulatorial. Os demais, devem ser hospitalizados para iniciar o tratamento e observação.
Tratamento
O tratamento da PAC é iniciado, na grande maioria das vezes, de forma empírica, antes da disponibilidade de exames de cultura. Essa abordagem visa evitar atrasos no tratamento, evitar risco de complicações e assim melhorar a resposta. Ele deve levar em conta os germes mais comuns, perfil de resistência, bem como o risco individual de evolução desfavorável. Uma decisão conjunta com essa é a do nível de tratamento (ambulatorial x internação), como vimos acima. Uma integração do processo de cuidado destes pacientes está apresentada na
Figura 1
. Vale destacar que na literatura existem posições bastante variáveis, em especial quando se consulta recomendações norte-americanas. Isso se deve a variações no perfil de resistência dos germes comunitários. Aqui demos preferência às recomendações da diretriz brasileira de PAC.
Figura 1.
Fluxograma de avaliação de gravidade, definição de nível de tratamento e escolha inicial de antimicrobianos na pneumonia adquirida na comunidade. Adaptado de 1 e 3.
Considerando a prevalência de germes residentes (em especial de pneumococo resistente) as diretrizes brasileiras mais recente recomendam que pacientes de baixo risco e ambulatoriais sejam tratados com antibiótico beta-lactâmico exclusivamente. Macrolídeo (preferência por azitromicina) é considerada alternativa para aqueles com alergia. Também deve-se restringir o uso de quinolonas, pelo maior risco de efeitos adversos, indução de resistência bacteriana e perda de diagnósticos de tuberculose. Para contextos em que há suspeita elevada de pneumococo resistente a beta-lactâmicos, opta-se por macrolídeos ou doxiciclina.
Já para pacientes hospitalizados, a recomendação é tratamento empírico inicial com beta-lactâmico
associado
com macrolídeo. Quinolonas respiratórias (levofloxacina e gemifloxacina) em monoterapia aparecem como alternativa terapêutica nestes casos. Para pacientes com necessidade de internação em ambiente de terapia intensiva, o tratamento inicial também segue as mesmas recomendações.
Pacientes com suspeita de infecção por pseudomonas frequentemente terão indicação de internação e o tratamento inicial deve ser com antibióticos com cobertura para este germe, como piperacilina-tazobactam, cefepime, ceftazidima. Para pacientes com situações pontuais que possam realizar tratamento ambulatorial, a alternativa são quinolonas, especialmente levofloxacina. Já para cobertura de stafilococos aureus, hemodiálise, colonização prévia, empiema, uso de drogas injetáveis, além de internação, são os principais fatores de risco. Na suspeita deste germe, vancomicina ou linezolida devem ser acrescentadas ao esquema terapêutico.
Quanto à duração do tratamento, deve-se levar em conta a gravidade do paciente, podendo durar 5 dias em indivíduos de baixo risco até 10-14 dias em pessoas com mais fatores de fragilidade. A associação com corticoide é muito debatida na literatura, mas deve ser considerada em pacientes com maior risco, em especial naqueles internados.