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Psicologia da dor: como a dor crônica afeta a saúde mental

Dor é definida atualmente pela Associação Internacional para o Estudo da Dor (
International Association for the Study of Pain
; IASP) como “uma experiência sensorial e emocional desagradável associada, ou semelhante àquela associada, a uma lesão tecidual real ou potencial” (Raja et al., 2020). Desta forma, compreende-se que a dor é composta tanto por um componente sensorial-discriminativo, referente a capacidade de identificar o tipo, a localização, a duração e a magnitude da dor, como por um componente afetivo-motivacional, referente a aspectos subjetivos associados ao quão desagradável e intolerável é a experiência dolorosa para a pessoa, e o quão a pessoa está inclinada a evitar contextos associados a dor a despeito da preferência inicial por estes contextos (Auvray et al., 2010).

Como exemplo, posso identificar em mim mesmo uma dor na região das costas de magnitude elevada e pulsante, e, ao mesmo tempo, me sentir desgastado e cansado, preferindo permanecer deitado e tentar controlar a dor a sair com amigos, algo que naturalmente seria de minha preferência. 

A experiência dolorosa é importante e crucial para a sobrevivência dos organismos, uma vez que ela nos alerta sobre possíveis lesões teciduais e ameaças à integridade do corpo. Como ressaltado pela definição da IASP, a dor estabelece um paralelo com estas situações de lesão tecidual, mas com limitações nesta relação.

Um mesmo grau de lesão tecidual pode estar relacionado a uma dor de magnitude muito discrepante em pessoas diferentes, ou até mesmo na mesma pessoa em períodos distintos (Huang et al., 2020; Treede et al., 2019). A compreensão dessa discrepância, em parte, encontra-se na modulação que regiões do nosso cérebro, associadas ao processamento das emoções e da atenção, exercem sobre as vias neurais que transmitem o sinal nociceptivo, ou seja, o sinal de uma estimulação nociva real ou em potencial no nosso corpo (Chein & Heinricher, 2019).

Esse mecanismo neurofisiológico está por trás do efeito que as emoções e a atenção podem ter sobre dor em seus componentes sensorial e afetivo. Estudo clássico mostrou que a dor era mais desagradável em pessoas de mau humor do que pessoas de bom humor, por exemplo (Villemure & Schweinhardt, 2010).  

Dor Crônica e Saúde Mental
 

A relação entre dor e lesão tecidual pode ser ainda menos linear nos quadros de dor crônica, nos quais a dor pode persistir ao longo de meses mesmo quando a pessoa já se recuperou da doença ou da lesão inicialmente associada a dor. Em outras situações, o quadro de dor crônica se inicia mesmo sem uma lesão ou doença evidente, como na fibromialgia (Treede et al., 2019).

Um estudo de revisão observou que a prevalência média de quadros de dor crônica no Brasil é em torno de 45%, sendo mulheres adultas e idosas mais acometidas e a dor na região lombar/dorsal a mais recorrente (Aguiar et al., 2021). Além disto, como o tema deste artigo antecipa, pessoas com quadros de dor crônica muitas vezes possuem algum transtorno mental comum (TMC), como depressão e ansiedade. Estima-se, no Brasil, que a prevalência de TMCs na população seja em torno de 20 a 25%, sendo também mais recorrente em mulheres e em pessoas com doenças crônicas (Brunoni et al., 2023). 

Mas afinal, quem veio primeiro: a dor ou a depressão/ansiedade? 

Como já mencionado neste artigo, aspectos emocionais são capazes de facilitar ou inibir a informação nociceptiva proveniente dos nossos tecidos e órgãos. Neste sentido, quadros de ansiedade e depressão podem favorecer o desenvolvimento de quadros de dor crônica. Por outro lado, quadros de dor crônica também podem favorecer TMCs, uma vez que o processamento da dor no sistema nervoso compartilha circuitos similares ao do processamento das emoções, principalmente quando se leva em consideração o componente afetivo-motivacional da dor.

Esta não é uma relação de única via, mas sim uma relação bilateral entre as duas condições. Desta forma, compreende-se que o tratamento de uma condição é capaz de auxiliar no tratamento da outra.

Por exemplo, terapia cognitivo comportamental, terapias baseadas na aceitação e compromisso e tratamentos farmacológicos com inibidores seletivos da recaptação de serotonina e antidepressivos são capazes de aliviar tanto quadros de ansiedade e depressão, como quadros de dor crônica (Hooten, 2016). 

Relação com Estresse Crônico
 

Agora, um questionamento necessário: não podemos inferir causa direta entre dois fatores somente pela constatação de sua correlação. É possível, seguindo esta lógica, que um terceiro fator seja a variável mediadora entre TMCs e quadros de dor crônica. O principal candidato para esta mediação é o que conhecemos como estresse crônico (Blackburn-Munro & Blackburn-Munro, 2001).

O conceito de estresse é constantemente debatido na literatura, não havendo um consenso sobre sua definição. Compreendemos, de modo geral, que estresse envolve situações que são desafiadoras e relevantes para sobrevivência do organismo, assim como a emissão de respostas para lidar e se adaptar a estas condições (Gold, 2015; McEwen & Akil, 2020). Desta forma, quando pensamos em estresse, visualizamos situações de caráter extremamente aversivo e que são necessariamente maléficas.

Mas estresse também pode dizer sobre situações entendidas como prazerosas, nas quais é necessário certo esforço para produzir reforçadores no ambiente. Talvez estresse seja muito mais sobre o esforço de preservação do organismo do que sobre situações que não gostamos. Neste sentido, defendo a aproximação do termo estresse ao conceito de
Conatus
, apresentado por Espinosa (filosofo do século XVII): “cada coisa esforça-se, tanto quanto está em si, por preservar seu ser” (Spinosa, 2009, p. 105). 

Entretanto, quando o estresse envolve situações muito aversivas (incluindo situações de esforço excessivo envolvendo reforçadores) e percebidas como incontroláveis e imprevisíveis pela pessoa, ele se torna crônico, levando a alterações estruturais e funcionais no sistema nervoso, principalmente em regiões que participam na modulação de processos emocionais e cognitivos e que também estão envolvidas no processamento afetivo-motivacional da dor e na sua modulação (Gold, 2015; McEwen et al., 2015).

Assim sendo, o estresse crônico pode induzir quadros de dor crônica, assim como reconhecido na síndrome do intestino irritável, e quadros de ansiedade e depressão, algo amplamente validado em estudos com animais não humanos (Abdallah & Geha, 2017; Blackburn-Munro & Blackburn-Munro, 2001; Piardi et al., 2020). Não o bastante, a dor também é reconhecida como um estressor. Diante de um quadro de dor persistente, o repertorio comportamental da pessoa pode passar a ficar sobre controle das situações que envolvem a dor, de modo que respostas de fuga e esquiva passam a prevalecer, limitando a variedade comportamental (Eccleston, 2001).

Além disto, entende-se que quadros de dor crônica são de difícil controle medicamentoso e, portanto, podem ser percebidos como incontroláveis e imprevisíveis pelo indivíduo, favorecendo o estabelecimento de um quadro de estresse crônico. 

Conclusão
 

A relação bilateral entre dor crônica e saúde mental, seja direta ou mediada pelo estresse crônico, ensina ao psicólogo a importância de trabalhar em todos os termos dispostos nesta relação.

O sofrimento de pessoas com quadros de dor crônico remete não só a dor em si, mas também a sensação de impotência, desamparo e desespero diante deste quadro. Vivências singulares da dor também devem ser atribuídas a condição socioeconômica, não devendo ficar de fora da equação. 

O acompanhamento psicoterápico de pessoas com dor crônica, acompanhado de outras especialidades da área da saúde, aproxima-se de uma abordagem completa do problema e promove respeito ao sofrimento de caráter multidimensional do indivíduo. 

Figura 1: Esquema de visão integrada da relação entre dor, saúde mental e estresse. Fonte: autoria própria.

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Como citar este artigo:
Pansarim, V., Lobo, B. O. M., & Neufeld, C. B. (Out., 2024). Psicologia da dor: como a dor crônica afeta a saúde mental. Artmed.

Autores
 

  • Vítor Pansarim 

Graduado em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Realizou parte das disciplinas da graduação na Universidade do Minho (Braga, Portugal). Mestre em Ciências e doutorando pelo programa de pós-graduação em Psicobiologia da FFCLRP-USP. Realiza estudos para investigar e compreender alterações comportamentais e mecanismos neurofisiológicos associados a condições aversivas, como estresse e dor persistentes. 

  • Beatriz de Oliveira Meneguelo Lobo 

Psicóloga e Mestra em Psicologia (área de concentração Cognição Humana) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Doutoranda em Psicologia em Saúde e Desenvolvimento pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da Universidade de São Paulo (USP), com bolsa pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Especialista em Terapias Cognitivo-Comportamentais e com Formação em Terapia do Esquema. Pesquisadora e Supervisora no Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental - LaPICC-USP da Universidade de São Paulo (USP).