Psicodiagnóstico: processo avaliativo e interventivo

O psicodiagnóstico é um processo de avaliação psicológica que visa compreender o diagnóstico clínico de um paciente. De maneira mais específica, o psicodiagnóstico envolve a aplicação de testes e instrumentos, diferentes de uma avaliação que não necessariamente faz uso dessas técnicas; estes são casos compreendidos como avaliação psicológica ou clínica (Krug et al., 2016). Portanto, o “psicodiagnóstico é um processo científico, limitado no tempo, que utiliza técnicas e testes psicológicos” (Cunha, 2000, p. 26), seja individualmente ou no coletivo.
Trabalhar com psicodiagnóstico, portanto, pressupõe que o profissional psicólogo conheça os testes e saiba como usá-los. Destacam-se aqui dois pontos de suma importância: a aplicação de testes é de uso exclusivo do profissional psicólogo e os testes a serem aplicados são aqueles considerados favoráveis pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), portanto, é preciso verificar quais são eles na plataforma SATEPSI – Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos (CFP, 2022). Assim sendo, a aplicação de testes psicológicos que foram avaliados como desfavoráveis no SATEPSI é considerada falta ética. São considerados testes psicológicos: testes, escalas, inventários, questionários e métodos projetivos e expressivos (CFP, 2022), e no próprio site do SATEPSI é possível verificar quais instrumentos são de uso exclusivo de psicólogas e psicólogos.
Fundamentação
O psicodiagnóstico inicialmente foi usado para se confirmar hipóteses diagnósticas, seguindo um modelo psicométrico e behaviorista, acompanhando o surgimento da Psicologia Clínica no ano de 1896, quando foram realizados estudos para prevenção e alívio do sofrimento psíquico de crianças deficientes físicas e mentais. Porém, no decorrer do tempo, apareceu a necessidade de se considerar o homem em sua completude, como sujeito e objeto de estudo (Ancona-Lopez, 1984).
Há várias maneiras de atuação na prática do psicodiagnóstico, o que dificulta fazer uma separação nítida entre elas. Mas há algo em comum entre todas elas, o fato de que para se conhecer o indivíduo é preciso compreender sua vida no aspecto biológico, intrapsíquico e social, para se distinguir a estrutura e a dinâmica de sua personalidade. O processo psicodiagnóstico, portanto, objetiva organizar os elementos do estudo psicológico para compreender o cliente e, assim, poder ajudá-lo.
A Psicanálise trouxe contribuições importantes ao processo psicodiagnóstico, dando destaque às entrevistas com os pacientes, utilizando-se de observações e técnicas projetivas na compreensão da personalidade, além de enfatizar a relação psicólogo-paciente em seus aspectos transferenciais e contratransferenciais. Sendo assim, tem-se a possibilidade de avaliar o comportamento manifesto e o latente do indivíduo, em um processo integrativo do paciente.
Pensando na complexidade do indivíduo, destaca-se o surgimento do processo diagnóstico do tipo compreensivo. Trinca (1984) destacou que esse tipo de processo busca encontrar sentido para as informações dadas, destacando o que é relevante e significativo na personalidade, entendendo a motivação latente da vida emocional do paciente, sempre com empatia no contato emocional. Esse processo diagnóstico se insere na Psicologia Clínica, pois considera a natureza específica da atividade diagnóstica, com suas questões peculiares e metodologia própria. Além disso, abarca-se o uso de vários referenciais, para evitar a unilateralidade e enfatizar uma visão global do indivíduo, com suas dinâmicas intrapsíquicas, intrafamiliares e socioculturais, ou seja, sua dinâmica desenvolvimental e maturação individual.
Para estudar os processos intrapsíquicos, o psicólogo irá considerar a relação do paciente com a realidade (tanto interna quanto externa), a formação de sintoma e sua vida instintiva (Trinca, 1984). Para compreender o desenvolvimento e maturação é importante recorrer a teorias do desenvolvimento emocional, especialmente aquelas que consideram o amadurecimento psíquico e somático em conjunto (Winnicott, 1945/2000). Para a dinâmica familiar é importante conhecer o funcionamento e participação da família na vida do indivíduo (Mishima et al., 2023), entendendo os processos psicopatológicos, de saúde e prognóstico. Por fim, faz-se necessário considerar os fenômenos transferenciais e contratransferenciais envolvidos nas relações psicólogo-paciente. Depois disso, todas as informações e dados devem ser integrados por meio do pensamento clínico, considerando os diferentes referenciais.
O pensamento clínico pressupõe o entendimento de alguns aspectos para se aprender as condições básicas do diagnóstico psicológico: a) objetivo e profundidade do psicodiagnóstico; b) as condições situacionais e a qualidade do pensamento clínico; c) o pensamento clínico em função da personalidade do paciente; d) o psicólogo como central, como aquele que dá sentido aos dados por meio do pensar e do sentir (Trinca, 1984).
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A função do processo psicodiagnóstico
Na atualidade tem-se uma supervalorização de instrumentos psicométricos e projetivos no processo psicodiagnóstico, subjugando-se os aspectos da escuta, observação clínica e contato emocional com o outro. Tal fato traz sérias consequências ao processo avaliativo, muitas vezes tratando o indivíduo como uma parte específica, esquecendo-se de sua totalidade psíquica, além de usar indiscriminadamente um excesso de material que não dialoga com a teoria subjacente. Como bem destacado por Krug et al. (2016): “veem-se verdadeiros
frankensteins técnicos e teóricos
quando psicólogos adotam em seus processos avaliativos técnicas que se estruturam em diferentes teorias” (p. 19, grifo dos autores).
Realizar um psicodiagnóstico pressupõe, portanto, realizar uma análise global do paciente, ou seja, integrar dados e informações para compreender os diversos aspectos da personalidade, do ambiente familiar e social do paciente e a interação entre eles. As informações podem ser coletadas de várias maneiras: observações, entrevistas, resultados dos testes psicológicos e de técnicas de investigação, impressões, sentimentos e pensamentos do psicólogo, conteúdo do material clínico, teorias e referenciais (Mishima, 2021).
O processo se inicia desde o contato com o paciente até a devolutiva, abrangendo os aspectos intrapsíquicos, intrafamiliares e socioculturais. Como bem destacado pela experiência prática e teórica dos estudiosos, o pensamento clínico deve prevalecer ao processo diagnóstico, pois cada caso clínico tem suas particularidades, o processo diagnóstico não é único nem imutável para todos os casos, ele deve ser pensado de acordo com as relações significativas oriundas do pensamento clínico, e não por meio da colocação das informações como “colcha de retalhos” (Trinca, 1984, p. 21).
Nesse sentido, destaca-se o caráter interventivo do psicodiagnóstico, em que o intuito de diagnosticar e entender a problemática do indivíduo está associado à ação interventiva do psicólogo. Tal ideia trouxe a conceitualização do Psicodiagnóstico Interventivo, uma prática da Psicologia Clínica, que faz uso integrado dos processos avaliativo e terapêutico. Essa prática difere do Psicodiagnóstico Tradicional, em que os contextos avaliativos e terapêuticos eram considerados diferentes e que o momento de maior interação com o paciente era na devolutiva. No Psicodiagnóstico Interventivo a interação ocorre desde a primeira entrevista com o paciente, momento em que podem ser realizados assinalamentos e interpretações, assim como durante a aplicação das técnicas. Tardivo (2007) destaca que este modelo de psicodiagnóstico, dentro de uma perspectiva psicanalítica, procura transformar modelos metodológicos positivistas (relação sujeito-objeto) para um destaque da relação entre sujeitos.
Finalmente, considerando o psicodiagnóstico como um processo avaliativo e interventivo, é preciso que os profissionais psicólogos e psicólogas estejam instrumentalizados na parte técnica e teórica do uso de testes e instrumentos psicológicos. Que eles saibam relacionar o material que está sendo utilizado em psicodiagnóstico, e que também reconheçam que além de avaliativo o processo é interventivo, pois o uso das técnicas e testes produzem mudanças no objeto analisado. A separação entre investigação e intervenção provém de um olhar positivista, que almeja um ideal de objetividade científica. Contudo, o psicodiagnóstico é um processo de interação entre psicólogo e paciente, uma interação que pressupõe aspectos interventivos e que são fundamentais para um contato terapêutico benéfico. Assim, o psicodiagnóstico é um termo que deve ser usado para abarcar a objetividade diagnóstica e o processo avaliativo/interventivo.
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Misima, F. K. T., Lobo, B. O. M., & Neufeld, C. B. (Dez., 2024). Psicodiagnóstico: processo avaliativo e interventivo. Blog da Artmed.
Autoras
- Fernanda Kimie Tavares Mishima
Professora Doutora do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFLCRP-USP). Doutora e Mestre pela FFCLRP-USP. Fundadora e coordenadora do Laboratório de Pesquisa e Intervenção com Crianças, Adolescentes e Famílias (LUDOS-USP). Pesquisadora e supervisora de estágios na área infantil e familiar. Escritora de livros científicos e literários.
- Beatriz de Oliveira Meneguelo Lobo
Psicóloga e Mestra em Psicologia (área de concentração Cognição Humana) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Doutoranda em Psicologia em Saúde e Desenvolvimento pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da Universidade de São Paulo (USP), com bolsa pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Especialista em Terapias Cognitivo-Comportamentais e com Formação em Terapia do Esquema. Pesquisadora e Supervisora no Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental (LaPICC) da Universidade de São Paulo (USP). Associada à Federação Brasileira de Terapias Cognitivas (FBTC).