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Steven Hayes fala sobre a Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT) em entrevista exclusiva

A
Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT)
tem ganhado cada vez mais destaque no cenário terapêutico mundial como uma abordagem eficaz para lidar com uma variedade de questões clínicas.  

Em entrevista exclusiva realizada por Tony Rousmaniere para a Psychotherapy.net (EUA) e para a Psicoterapia.net.br (Brasil) em abril de 2023, o renomado fundador da ACT, Steven Hayes, discute a história e evolução da terapia, confira os melhores trechos! 

Por que a Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT)?
 

TONY ROUSMANIERE:
Em sua experiência, por que terapeutas experientes que já podem ser especialistas em outras modalidades terapêuticas escolhem aprender ACT? O que a ACT oferece de diferente a eles? 

STEVEN HAYES:
Acho que há algumas coisas principais que a ACT oferece. Uma delas é que você pode lidar com questões clínicas mais profundas, mas dentro de um modelo que parece progressivo. Assim, quando você está explorando novos territórios, você tem diante de si um mapa que realmente faz sentido. Outra coisa é que a ACT é pessoalmente relevante para as pessoas quando estão enfrentando problemas individuais. É importante que façamos um trabalho que não pareça falso ou vazio de alguma forma, e quase todos os psicoterapeutas praticantes da ACT que conheço se sentem inspirados pelo trabalho quando estão enfrentando dificuldades em suas vidas pessoais. Eles veem a relevância dessa abordagem em suas próprias vidas. 

Eu estava dando uma palestra na Inglaterra alguns anos atrás e havia uma pessoa do programa de tratamento baseado em evidências que fez a mesma pergunta à plateia. Muitos deles compartilharam que é divertido fazer parte de uma comunidade que não fala de cima para baixo e que envolve seus interesses intelectuais de várias maneiras diferentes. As pessoas são capazes de integrar seus interesses em filosofia, biologia evolutiva, mudança social, transformação cívica e combate ao estigma e a todas as formas de preconceito em seu trabalho com a ACT, o que é incomum. 

Acredito que muitas de nossas psicoterapias têm se concentrado demais em transtornos do DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), especialmente aquelas que se baseiam fortemente em evidências. Vejo uma lacuna na aplicação abrangente da ciência comportamental para lidar com uma variedade mais ampla de questões relacionadas ao comportamento humano. 

Há um número surpreendente de pessoas, por exemplo, interessadas na Teoria dos Quadros Relacionais. É um material difícil, muito técnico, e não parece algo que os clínicos se interessariam. Na verdade, eles não estão inicialmente interessados, mas, à medida que se relacionam com ele, eles começam a se interessar. Por que a linguagem é assim? Por que nossas mentes são assim? Por que este modelo funciona? Também há uma comunidade de cientistas na ACT que estão indo a conferências e apresentando seu trabalho. É divertido fazer parte de um grupo que tem esse aspecto tão amplo atrelado. 

TR:
E quanto aos terapeutas que vêm da TCC clássica ou de uma abordagem puramente comportamental? É desafiador para eles se voltarem para o lado filosófico das coisas? 
 

SH:
Parte do que é interessante sobre a ACT é que, quando você vai a uma conferência da
Association for Contextual Behavioral Science
, que é a comunidade da ACT, há uma mistura de pessoas. Há pessoas da abordagem gestáltica, existencial e humanística, bem como pessoas do behaviorismo e da TCC clássica. Como a ACT surgiu da análise do comportamento, ela inclui behavioristas com “b” maiúsculo.  

Dentre os vários grupos, entretanto, acredito que é mais difícil para os adeptos tradicionais da TCC. Afastamos as pessoas de alguns métodos populares da TCC que simplesmente não consideramos muito importantes ou que produzem bons resultados a longo prazo – especialmente detectar, desafiar, questionar e mudar cognições; não é algo que fazemos muito. Pode ser difícil para eles abandonarem esses métodos e pode levar algum tempo para se ajustarem. 

Podemos realizar psicoeducação e reavaliação cognitiva, mas é perigoso demais e está muito próximo de coisas que serão muito difíceis de fazer e que os clientes às vezes vão usar de maneira inadequada. Você pensaria que as pessoas focadas no behaviorismo odeiam o aspecto filosófico da ACT, mas na verdade eles gostam muito, porque podem ver a conexão com sua tradição. Ter uma maneira de lidar seriamente com a cognição, que não é desdenhosa nem reducionista, é um alívio para eles. 

Se você não está ocupado nascendo, está ocupado morrendo
 

TR: Você mencionou que a ACT é um modelo progressivo. Você pode dar um exemplo concreto do que isso significa ou como isso aparece no trabalho terapêutico?
 

SH:
Existe uma tendência para nós, terapeutas, de entrarmos em um ritmo, clinicamente falando, e nos estabelecermos nele. Não é algo ruim, mas sempre haverá casos pregando peças, pacientes com os quais não sabemos como lidar, complexidades que não cedem aos nossos métodos. “Se você não está ocupado nascendo, está ocupado morrendo”, para citar uma música de Dylan. Então, a progressividade que estou mencionando se refere ao fato que, como indivíduos e como um campo, estamos ficando melhores e mais capazes de lidar com o que é complexo e difícil, sem ter que deixar de lado o que já sabemos que funciona. 

Muitas de nossas abordagens baseadas em evidências basicamente pedem que as pessoas comprem integralmente tudo o que algum teórico criou. Eu não acho que isso seja necessário, saudável ou mesmo razoável, francamente. Gosto de dizer às pessoas quando se interessam pela ACT: "Você vai encontrar seu próprio trabalho dentro deste trabalho. Há uma razão pela qual você está aqui e, se isso não for verdade, então você deveria se afastar". Uma vez que você vê essa conexão, pode construir algo a partir dela. Você pode fazer coisas novas e toda a comunidade irá apoiá-lo.
Acredito que nossa abordagem comunitária é uma das razões pelas quais a ACT se desenvolveu tanto ao longo dos anos.
As pessoas trazem essas ideias diferentes e continuamos acrescentando, subtraindo, modificando e estendendo coisas, então há a sensação de que estamos fazendo mais e melhor e todos fazemos parte disso. Esse é o tipo de progressividade de que estou falando. 

Fazer parte de uma comunidade de
conhecimento-desenvolvimento
é algo emocionante. Se você olhar para as pessoas que estão ativas no mundo da ACT, estamos lá como treinadores e escritores, cientistas e pesquisadores muito sofisticados. Estamos avançando de uma maneira que está interconectada. Eu chamo isso de um modelo reticulado, significando uma rede em que cada pequeno nó tem sua parte na tarefa de melhorar à medida que avançamos. 

O Ki-suco do DSM
 

TR: A ACT tem muito menos foco em sintomas psiquiátricos e diagnósticos do que várias ou a maioria das outras modalidades. Você pode falar sobre isso e também suas opiniões sobre as mudanças no novo DSM-5-TR? 
 

SH:
Nós nunca tomamos de verdade o Ki-suco que foi oferecido pelo DSM-III em diante. Não que ele não tenha alguma utilidade, para ter algum tipo de terminologia ou nosologia, mas isso foi exagerado. Não temos entidades funcionais dentro dessas síndromes. Nenhuma doença -
nenhuma
– emergiu pela primeira vez desde então. E esse é o ponto todo desse jogo sindrômico – levá-lo a uma etiologia para que você possa responder com o tratamento adequado. Uma avaliação honesta aponta para isso como sendo um fracasso de bilhões de dólares.  

O trabalho da ACT é baseado mais numa psicologia da normalidade. Eu penso que temos todas as razões para acreditar que maioria das dificuldades das pessoas são baseadas na falha em trazer à tona processos psicológicos normais. Não que não haja processos anormais, é claro que há. Mas, se você considerar, por exemplo, nossa capacidade humana tremendamente útil de resolver problemas, analisar, categorizar, prever e avaliar coisas – esse processo, quando aplicado ao mundo interior, pode se tornar muito tóxico. Ele transforma sua vida em um problema a ser resolvido. Uma vez que você começa a focar em sua tristeza, ansiedade ou impulsos, seus processos de resolução de problemas vão variar de inúteis a patológicos. Eles vão aumentar seu foco em coisas que são apenas uma pequena parte do que está acontecendo e criar esses tipos de ciclos autoamplificadores – tipo, quanto mais você tenta não pensar em coisas, mais você realmente pensa nelas. 

Se você focar na psicologia da normalidade, como temos feito, acreditamos que a esquiva experiencial representa cerca de 25% da variância em quase todas as principais síndromes. Mas também influencia se você pode ou não aprender um novo software ou se está à vontade em seus relacionamentos, e assim por diante. Temos que investigar e ver o que são esses processos e como podemos controlá-los, porque não é possível – nem mesmo gostaríamos de – eliminá-los. 

A resolução de problemas, por exemplo, é simplesmente útil demais para a deixarmos de lado, mas precisamos aprender a recusar educadamente o convite de nossa mente para usar nosso repertório de resolução de problemas para o nosso fluxo normal de eventos emocionais e cognitivos. Isso é muito difícil de fazer, mas as pessoas podem aprender. Os praticantes de
mindfulness
aprenderam diversos métodos para isso, e encontramos algumas ferramentas adicionais que as pessoas podem integrar facilmente em suas vidas. Usando essas ferramentas, elas podem se tornar mais flexíveis psicologicamente, mais capazes de mudar sua atenção do medo e da esquiva para o que mais lhes importa e desejam em suas vidas.  

Então, nossa abordagem – em vez da medicalização do sofrimento humano pelo DSM – é tentar investigar os processos que estreitam ou expandem as vidas humanas e aprender como medi-los para que possamos começar a treinar as pessoas a usá-los para sua evolução. As pessoas não procuram terapia quando a vida está progredindo de maneira razoável; elas buscam quando a vida está estagnada ou regredindo.  

E não se trata de serem curadas ou consertadas, porque os seres humanos não estão quebrados, eles não precisam ser consertados. Eles precisam ser apoiados de uma maneira que lhes permita crescer e fazer um trabalho melhor ao longo do tempo com as coisas que realmente importam para eles – filhos, trabalho, relacionamentos íntimos, seu senso de participação e conexão com o mundo ao seu redor. Isso simplesmente não será encontrado dentro de um modelo sindrômico. Não significa que você não possa recorrer à genética, epigenética, fisiologia e neurociência ao formular seu tratamento, mas sim que isso não pode ser feito com a mentalidade de que estamos descobrindo processos anormais. 

O que estamos realmente descobrindo é a riqueza da experiência humana e o que move você para frente e para trás, e como podemos vincular processos baseados em evidências a procedimentos baseados em evidências que podem ser usados de forma criativa por clínicos competentes. Não para consertar você, mas para ajudá-lo a superar esse obstáculo. A partir daí, temos um tipo de modelo de dentista de família – se você encontrar problemas novamente, se você se ver em um beco sem saída, volte. Parte do que é empolgante no trabalho com a ACT é que qualquer pessoa que responda a ele provavelmente vai responder ainda mais rápido da próxima vez, porque os mesmos processos básicos aparecem repetidamente.  

Muitas vezes, apenas lembrar as pessoas do progresso que fizeram no passado ao aprenderem a ser mais abertas, mais conscientes e mais ativamente envolvidas em seus valores é o suficiente para ajudá-las a superar a nova barreira que encontraram em sua vida. 

Tratando vícios com a ACT
 

TR: Tenho visto muita literatura recentemente sobre o uso da ACT em vícios. Qual é a abordagem da Terapia de Aceitação e Compromisso para vícios? 
 

SH:
É uma área empolgante. Existem cerca de 10 ou 12 estudos controlados sobre o uso da ACT em vícios – vários deles muito fortes sobre tabagismo e alguns em outras áreas de comportamento aditivo. Em um estudo recente que publicamos no
Journal of Consulting and Clinical Psychology
, intitulado "Reduzindo a vergonha nos vícios: devagar e sempre se vence a corrida" (tradução livre), mostramos que você pode focar os métodos da ACT na redução da vergonha e do autoestigma. Realizamos um ensaio clínico randomizado em uma unidade de internação, comparando-o ao tratamento orientado pelo modelo de 12 passos. As intervenções da ACT resultaram em menos dias de uso de substâncias e maior comparecimento ao tratamento no acompanhamento. 

Ao lidar com o abuso severo de substâncias, trabalhar com a vergonha é crucial porque as pessoas causaram muito dano, não apenas a si mesmas, mas às suas famílias, filhos, trabalho e às coisas com que mais se importam. Você não entra em um programa de internação de 28 dias na era moderna – pelo menos não em Nevada, onde há conservadores estilo "cowboy" – sem criar alguns estragos reais. Provavelmente você perdeu o emprego e todo o resto, e é muito provável que outra pessoa esteja pagando pelo seu tratamento. 

A culpa, na verdade, pode trazer resultados positivos no abuso de substâncias; mas a vergonha, não. Quando você faz coisas prejudiciais aos outros, a culpa é uma emoção perfeitamente apropriada; é algo para ter e vivenciar, e pode ajudar a reorientá-lo em relação ao que é importante em sua vida e ao que você pode fazer para limpar a bagunça que fez. O que a vergonha acrescenta é o aspecto do "eu sou ruim" – uma espécie de conceitualização fusionada de si mesmo como um organismo quebrado. Isso é tóxico e pode ter resultados ruins. 

A maneira normal e razoável pela qual uma mente humana tenta resolver esse problema é falar consigo mesma para se livrar da vergonha. A solução de Stuart Smalley: "Caramba, eu sou bom o suficiente e as pessoas me amam". Mas isso é uma forma de supressão e pode desmoronar, como um castelo de cartas, quando as pessoas saem do tratamento, porque não está fundamentado em um conjunto mais profundo de valores. 

O que fizemos inicialmente em nossos grupos foi desacelerar as coisas, aprender a apenas observar a mente, observar toda a conversa, a culpa, a censura e a vergonha que surgem, e depois mergulhar no que é útil e deixar de lado o que não é. Isso deixa as pessoas mais conscientes de alguma forma. Há uma espécie de humildade que ocorre quando você mergulha na dor de sua própria história e em seu próprio vício e, em seguida, dá um salto de abertura. "Estou disposto a dar um salto de fé de que sou grande o suficiente para sentir isso". Então, um passo de cada vez, um dia de cada vez – como vou chegar lá? Isso ressoa com algumas partes mais profundas da tradição dos 12 passos. Não há nada nesse programa, ou pelo menos no que vejo em seu manual, que contradiz a ACT, mas esses princípios nem sempre são aplicados nos centros de tratamento. 

Os níveis de vergonha das pessoas que participam de nossos grupos de ACT, na verdade, diminuíram mais lentamente, mas continuaram a diminuir após o tratamento e suas taxas de resultados foram melhores. Para aqueles que não estavam em nossos grupos, os níveis de vergonha diminuíram mais rapidamente durante o tratamento, mas suas taxas de reincidência foram maiores depois.  

TR: Então, o trabalho de
mindfulness
é realmente essencial para a ACT e especificamente para esse processo de diminuição da vergonha? 
 

SH:
Muito! O que é válido para qualquer trabalho com
mindfulness
é que, se você se abrir, vai ver lugares sombrios. Você não pode se esconder de si mesmo como costumava fazer. Se esconder de si mesmo lhe criou problemas, mas abrir os olhos, estar consigo mesmo, observar suas emoções surgindo e desaparecendo, ser mais honesto sobre o que está sentindo, percebendo, lembrando, pensando – isso também será difícil. Eu não acho que seja por acaso que a Terapia Cognitivo-Comportamental baseada em
mindfulness
funcione muito bem para pessoas que tiveram depressão três ou mais vezes, mas é possivelmente inerte para pessoas que tiveram apenas um episódio depressivo. Porque se você vai abrir a porta para o porão e entrar no porão, você vai ver coisas lá embaixo que não são para os de coração fraco. 

Se você vai fazer esse tipo de trabalho, vai encontrar dor dentro e fora de você; vai ver injustiça, sofrimento ao seu redor. Vai entrar no supermercado e ver pessoas que não têm dinheiro suficiente para comprar os mantimentos de que precisam. Vai ver pessoas passando por você que têm dificuldade em dar o próximo passo porque estão velhas e com dor física. Você começa a se abrir para uma perspectiva mais variada sobre si mesmo e sobre os outros. 

Mas ousamos não pegar essas tradições orientais e simplesmente jogá-las em nossas mentes ocidentais com a ideia de que vamos relaxar e andar por aí com um grande sorriso o tempo todo. É um caldo mais rico do que a nossa cultura comercial ocidental está nos dando, a nós e aos nossos filhos, mas é um caminho difícil.  

Esse estudo que fizemos com vergonha e vício mostra, de certa forma, que dar às pessoas uma maneira saudável de percorrer esse caminho é mais lento, mas mais estável. Portanto, estamos trazendo algo novo, eu acho, para o campo da dependência que, à medida que se tornar mais conhecido, será útil para pessoas que trabalham com vícios.  

Não é um passeio de ganha-ganha
 

TR: É interessante o que você diz sobre a atenção plena, abrir os olhos para algumas das coisas mais sombrias no mundo. Às vezes, quando ouço terapeutas ou outras pessoas falando sobre
mindfulness
e meditação, parece que estão falando de um cruzeiro prazeroso para a terra da felicidade. Parece que isso não é o que você quer dizer com a ACT. 
 

SH:
Não é, e francamente é uma distorção das tradições espirituais mais antigas do mundo. Abordar a si mesmo e aos outros com compaixão só faz sentido de verdade se você souber o quanto isso é difícil. Se não estiver conectado à dor para a qual a compaixão é útil, é apenas mais uma viagem supressora e auto ilusória. É uma espécie de tranquilizante psicológico que está minando o propósito para o qual está lá e o que eu acho que precisamos agora. 

A ciência e a tecnologia estão criando um desafio tão grande para nós agora que podemos ver instantaneamente todas as coisas horríveis acontecendo no mundo em nossas telas. Aquelas casas destruídas deixadas pelo tornado em Oklahoma, os bombardeios na Maratona de Boston, os rostos das vítimas de Newtown – seus filhos estão vendo isso em suas telas, e você não pode jogar fora TVs e smartphones suficientes para protegê-los disso.  

A quantidade de dor a que estamos expostos agora é muito maior do que qualquer coisa para a qual evoluímos para enfrentar. Seus bisavós não viram nada parecido com o fluxo de imagens horríveis e palavras julgadoras e eventos dolorosos que nós vemos agora. Portanto, precisamos de mentes modernas para este mundo moderno, mas não é uma viagem feliz e alegre para a praia. É muito mais sério e sóbrio. Não sério no sentido de que não é divertido e alegre estar vivo e conectado, mas no sentido de que faz justiça à riqueza da vida humana. E isso está bem aí, do ponto de vista da ACT. 

Nós temos um ditado: "Na sua dor, você encontra seus valores; e nos seus valores, você encontra sua dor". Quando você se conecta com coisas que realmente importam e que te elevam, você se conectou com lugares em que pode e provavelmente já foi ferido. Se o amor é importante, o que você vai fazer com a sua história de traições? Se a alegria de se conectar com os outros é importante, o que você vai fazer com a dor de ser incompreendido ou de não entender os outros? O trabalho de aceitação e
minduflness
não acalma automaticamente tudo isso nem torna tudo fácil; em vez disso, nos dá a abertura, o enraizamento e a consciência para podermos mover nossa atenção de uma maneira não supressora em direção ao que nos importa. Isso nos capacita a dar esse salto de fé de que podemos nos importar, de que podemos ter valores e ninguém pode nos impedir. Como Viktor Frankl escreveu, você pode tirar todas as minhas liberdades externas, mas você não pode tirar minha capacidade de escolher amar e me importar com os outros. Simplesmente não é possível. 

Com a meditação, a ansiedade artificial que injetamos em nossas vidas às vezes diminui muito rapidamente, e isso é bom. Mas as pessoas às vezes cometem o erro de se tornarem viciadas em atenção plena. Isso é o equivalente psicológico a um tranquilizante, e é um abuso das tradições. No entanto, eu me preocupo que muitos terapeutas o usem exatamente dessa maneira. É importante ter a dimensão adicional de valores, cuidado, compaixão, participação e fazer a diferença. 

ACT e justiça social
 

 
TR: Falando em fazer a diferença, existe um componente de justiça social na ACT que eu não ouvi falar em muitas outras modalidades terapêuticas. Você pode descrever isso um pouco mais e talvez dar alguns exemplos específicos de como está sendo utilizado para ajudar as pessoas? 
 

SH:
Acho que é uma extensão natural da ACT. Os mesmos processos cognitivos que nos permitem ter um senso de transcendência ou unidade ou consciência — o eu-aqui-agora da própria consciência — são baseados na capacidade de ver o mundo pelos olhos de outras pessoas. Portanto, não é apenas "eu", é "eu/você". Há uma extensão social da consciência que acontece justamente no processo de se tornar mais consciente de seus próprios processos, no qual você começa, de repente, a se conscientizar de que as pessoas ao seu redor estão sofrendo. Podemos modelar isso no laboratório, na verdade. Usamos métodos da Teoria dos Quadros Relacionais com crianças que não têm um senso de self e, em seguida, a empatia começa a surgir. Quando eu vejo pelos meus olhos, acontece no mesmo momento em que você vê pelos seus. Quando aprendo a sentir meus sentimentos como sentimentos, acontece no mesmo momento em que vejo que você também tem sentimentos — que você também está sentindo. 

A extensão natural desse processo, então, é: se vou aceitar mais minhas emoções e tentar lidar com elas de maneira baseada em valores, o que dizer das emoções difíceis que outras pessoas estão experimentando por causa das coisas que aconteceram com elas? Esse não é um tipo de trabalho de atenção plena que está isolado; ele se estende ao longo do tempo, do lugar e das pessoas. 

A objetificação, a desumanização e o preconceito naturalmente se conectam a coisas como o autoestigma. Eu mencionei que fizemos esse tipo de trabalho com pessoas com dependência, mas também fizemos com populações LGBT, com vítimas de preconceito racial e religioso. É a coisa natural, razoável e sensata a se fazer; dar o próximo passo em direção a controlar as partes da mente que nos levam a objetificar e desumanizar os outros. Podemos criar um mundo mais compassivo e baseado em valores, começando por nós mesmos e depois estendendo-os para fora? 

Na nossa pesquisa sobre esquiva experiencial, descobrimos que parte do problema das pessoas que têm preconceitos em relação aos outros é que elas são incapazes de adotar a perspectiva dos outros. Elas ficam sobrecarregadas ao ver a dor dos outros e preferem objetificá-los e desumanizá-los a sentir o que teriam que sentir para saber como é ser eles. Mostramos a mesma coisa em relação à anedonia social; você não se importa em estar com os outros a menos que tenha o grande trio de uma boa tomada de perspectiva, empatia em relação aos outros e que não fuja da dor. Então, você pode ver como o modelo naturalmente nos leva a uma preocupação com questões de justiça social. De certa forma, é a mesma coisa. Eu não posso me isolar dos outros e objetificar e desumanizar os outros, exceto atacando os processos que me permitem ser mais aberto e aceitar a mim mesmo. 

E isso nos dá uma maneira de abordar, porque ninguém entra na terapia dizendo "Poxa, eu sou preconceituoso. O que você pode fazer por mim?", mas eles entram dizendo "Sinto-me angustiado. Sinto-me desconectado. Sinto-me distante." e acontece que a objetificação e a desumanização dos outros produzem esses resultados para o indivíduo. 

Isso também acontece conosco, como terapeutas. Você conhece o tipo de humor depreciativo que acontece na sala de descanso — "Ah, a Sally Borderline apareceu", "Oh, Deus! A Sally não". Eu entendo por que as pessoas fazem isso e não quero ficar as repreendendo, mas isso chega muito perto de objetificar os clientes, desumanizá-los como uma defesa contra a dor de não conseguir alcançá-los. Esse tipo de atitude é sintoma de esgotamento e, em última análise, diminui sua capacidade de fazer a diferença com os outros.  

TR: É muito interessante pensar em terapeutas como agentes de mudança social. Você também já realizou pesquisas nessa área? 
 

SH:
Nosso primeiro ensaio clínico randomizado na era moderna foi feito por Frank Bond na Universidade de Londres. Ele fez pesquisa com pessoas que trabalhavam em
call centers
em bancos — um trabalho muito difícil, muita pressão e muito pouco salário. Ele comparou a ACT a um programa que incentivava as pessoas a assumirem o controle dos estressores em seu ambiente e a fazerem mudanças para que seu ambiente fosse mais favorável. A ACT era um modelo mais psicológico, obviamente, e quando as pessoas ficavam mais abertas, receptivas e baseadas em valores, começavam a exigir mudanças de trabalho de seus supervisores. A coisa que mantinha as pessoas pequenas e as mantinha em uma caixa era o medo: "O que meu chefe vai pensar se eu levantar essa questão?". 

Essa parte dos valores ativou as pessoas. Tenho orgulho do fato de que, quando você faz o tipo de trabalho que estamos fazendo, capacita pessoas que estão oprimidas ou em desvantagem. Mostramos isso em vários estudos; se você estiver mais aberto aos seus sentimentos, mais consciente, mais ciente, mais atento e mais ligado aos seus valores, você estará mais capacitado para se posicionar. Estamos fazendo isso agora com minorias raciais, minorias étnicas, minorias religiosas, também com uma mensagem para aqueles que estão em uma situação de maioria, mas que se importam com essas questões. Os psicoterapeutas têm um papel a desempenhar não apenas na área de saúde mental, mas também na justiça social. 

Há uma jornada mais rica, e acho que muitos terapeutas estão frustrados lidando apenas com uma pessoa de cada vez, com os resultados de uma sociedade que simplesmente não sabe como apoiar as pessoas a serem mais plenamente humanas. Você pode estar em seu papel de terapeuta, mas também fazer parte de um esforço de mudança social que está diretamente relacionado ao trabalho clínico que você está realizando. 

Sobre a entrevista 

Steven C. Hayes:
PhD, psicólogo, pesquisador, originador da Terapia de Aceitação e Compromisso, Teoria do Quadro Relacional e co-desenvolvedor de Terapia Baseada em Processos. Passou as últimas quatro décadas estudando como aliviar o sofrimento humano e capacitar as pessoas em direção a uma vida baseada em valores. É professor da Universidade de Nevada. Com 47 livros e 700 artigos científicos publicados, Dr. Hayes é um dos psicólogos mais citados do mundo, pois continua a inovar no campo da Psicologia e da Saúde Mental. 

Tony Rousmaniere:
PhD, psicólogo, é professor de Psicologia Clínica na Universidade de Washington e possui uma prática clínica na Universidade de Seattle. 

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