Triagem auditiva neonatal: o que todo pediatra deve saber

A privação precoce dos estímulos auditivos interfere no desenvolvimento das estruturas neurais relacionadas à audição, fala e comunicação. A detecção de alterações auditivas e a intervenção iniciada até os 6 meses de idade garantem à criança o desenvolvimento da compreensão e da expressão da linguagem, bem como o seu desenvolvimento social, comparável com as crianças normais da mesma faixa etária. Estudos evidenciam que há um impacto relevante do diagnóstico precoce de deficiência auditiva em crianças, dado que o amadurecimento e a plasticidade do sistema auditivo têm um período crítico para o desenvolvimento da linguagem, que vai do nascimento até os 3 anos de idade.
Nos Estados Unidos, estima-se que 2 a cada 1.000 nascidos vivos apresentam surdez que necessite de intervenção terapêutica. Na Inglaterra, foi relatada prevalência de 1,06/1000 nascidos vivos para perdas auditivas maiores de 40 dB. Neonatos egressos de uma unidade de tratamento intensivo neonatal apresentam um risco ainda maior de surdez, que pode chegar a 4%. No Brasil, dentre as doenças possíveis de rastreamento ao nascimento, a surdez possui uma incidência bastante significativa (1 a 3:1.000), principalmente quando comparada com a da Anemia Falciforme (1:1.427), Hipotireoidismo (1:3.900), Fibrose Cística (1:10.657) e Fenilcetonúria (1:20.000).
Diretrizes para a triagem auditiva neonatal
A Triagem Auditiva Neonatal Universal (TANU) tem por finalidade a identificação precoce da deficiência auditiva nos neonatos e lactentes. Consiste no teste e reteste, com medidas fisiológicas e eletrofisiológicas da audição, com o objetivo de encaminhá-los para diagnóstico dessa deficiência, e intervenções adequadas à criança e sua família. Todos os recém-nascidos devem realizar a TANU e não apenas aqueles com indicador de risco para deficiência auditiva, uma vez que a deficiência auditiva pode ser encontrada em crianças com e sem indicadores de risco, na mesma proporção. Estima-se que entre os recém-nascidos vivos 10% apresentam indicadores de risco para deficiência auditiva (IRDA).
A TANU faz parte de um conjunto de ações que devem ser realizadas para a atenção integral à saúde auditiva na infância que consiste em: triagem, monitoramento e acompanhamento do desenvolvimento da audição e da linguagem, diagnóstico e (re)habilitação. Desta forma, a TANU deve estar integrada à Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência e às ações de acompanhamento materno-infantil. Também é de extrema importância a articulação, capacitação e integração com a atenção básica para garantir o monitoramento e acompanhamento do desenvolvimento da audição e da linguagem, e para a adesão aos encaminhamentos para serviços especializados.

Métodos de triagem auditiva neonatal
Emissões otoacústicas evocadas (EOA)
As EOAs correspondem a energia sonora emitida pelas células ciliadas externas da cóclea, em resposta a um estímulo sonoro. Elas podem ser detectadas em 99% das orelhas sem alterações. A resposta geralmente está ausente em casos de perda auditiva maior ou igual a 30 dB6. É um exame rápido, objetivo (nos testes de triagem as respostas são dadas como “passa” ou “falha”), com alta sensibilidade, não invasivo e aplicável em locais sem tratamento acústico, ou seja, pode ser feito no alojamento conjunto, berçário ou UTI. Na maioria das vezes, é realizado em crianças durante o sono natural. Por todas essas características, foi o exame que tornou viável a Triagem Auditiva Neonatal Universal. Importante ressaltar que a captação das EOA não tem como objetivo quantificar a alteração auditiva e sim detectar sua ocorrência e dessa forma confirmar a integridade da função coclear.
Potenciais evocados auditivos de tronco encefálico (PEATE)
O PEATE analisa a atividade cerebral elétrica em resposta ao estímulo sonoro. Ao contrário da EOA, ele é capaz de avaliar a via auditiva neural, possibilitando o diagnóstico de recém-nascidos com neuropatia auditiva (NA). Nestes casos, as células ciliadas externas funcionam normalmente, porém as células ciliadas internas ou o nervo auditivo foram danificados. A etiologia da NA ainda não está bem estabelecida, sendo possivelmente multifatorial. O PEATE automático (PEATEa), ou PEATE triagem, é utilizado nos protocolos de triagem auditiva para os pacientes com indicadores de risco para deficiência auditiva ou naqueles em que houve falha na EOA. A utilização desse exame na triagem auditiva em crianças de maior risco é sugerida porque esta população apresenta maior ocorrência de perdas auditivas neurais, que não podem ser identificadas quando se utiliza apenas o registro das EOA. O PEATEa apresenta maior rapidez de realização do que o PEATE convencional e rotineiramente pode ser feito em ambiente hospitalar sem isolamento acústico, a exemplo das EOA.
Critérios de risco
São considerados neonatos ou lactentes com indicadores de risco para deficiência auditiva (IRDA) aqueles que apresentarem os seguintes fatores em suas histórias clínicas:
- Antecedente familiar de surdez permanente, com início desde a infância, sendo assim considerado como risco de hereditariedade. Os casos de consanguinidade devem ser incluídos neste item.
- Permanência na UTI por mais de cinco dias, ou a ocorrência de qualquer uma das seguintes condições, independente do tempo de permanência na UTI:
- ventilação extracorpórea (ECMO);
- ventilação assistida;
- exposição a drogas ototóxicas como antibióticos aminoglicosídeos e/ou diuréticos de alça;
- hiperbilirrubinemia;
- anoxia perinatal grave;
- Apgar Neonatal de 0 a 4 no primeiro minuto, ou 0 a 6 no quinto minuto;
- peso ao nascer inferior a 1.500 gramas.
- Infecções congênitas (toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus, herpes, sífilis, HIV).
- Anomalias craniofaciais envolvendo orelha e osso temporal.
- Síndromes genéticas que usualmente expressam deficiência auditiva (como Waardenburg, Alport, Pendred, entre outras).
- Distúrbios neurodegenerativos (ataxia de Friedreich, síndrome de Charcot-Marie-Tooth).
Outras alterações perinatais ou tardias que podem requerem avaliação audiológica são:
- Preocupação dos pais com o desenvolvimento da criança, da audição, fala ou linguagem. Devemos sempre considerar como relevante a preocupação dos pais de que a criança possa apresentar desenvolvimento auditivo abaixo do esperado
- Infecções bacterianas ou virais pós-natais como citomegalovírus, herpes, sarampo, varicela e meningite.
- Traumatismo craniano
- Quimioterapia.
Investigação diagnóstica e testes adicionais
O Ministério da Saúde publicou, em 2012, as Diretrizes de Atenção a Triagem Auditiva Neonatal. De acordo com essa diretriz, todos as crianças devem realizar a TAN na fase chamada de “teste”, entre 24 e 48 horas de vida, antes da alta hospitalar ou, no máximo em idades não superiores ao primeiro mês de vida.
O procedimento de inicial de escolha são os testes das EOAT em bebês com ausência de IRDA, ficando restrito o uso do PEATE-a em bebês com um ou mais IRDA, especialmente nos que permaneceram na UTI neonatal por mais de 5 dias.
O teste é considerado “passa” quando os resultados dos testes de medidas fisiológicas encontram-se dentro dos padrões de normalidade. Nesses casos, os pais devem ser orientados quanto à importância de monitorar o desenvolvimento da linguagem e das habilidades auditivas a fim de identificar futuras alterações auditivas que não foram detectadas na TAN e que podem ser adquiridas em momentos posteriores.
Quando a TAN mostrar “falha”, os pais devem ser orientados a realizar o “reteste” após 15 dias, se o recém-nascido não apresentar IRDA. Caso haja persistência do resultado “falha” no “reteste”, recomenda-se o encaminhamento para o diagnóstico médico e audiológico por meio das medidas de imitância acústica com sonda de 1000 Hz, neurodiagnóstico com PEATE clique e/ou PEATE frequência específica, potencial evocado auditivo de estado estável, dentre outros procedimentos a fim de confirmar ou descartar a perda auditiva.
Toda criança com IRDA deverá ser conduzida diretamente para o diagnóstico, pulando a fase do “reteste”, sendo que aquelas passam na TAN devem ser monitoradas até os três anos de idade, realizando exames auditivos periódicos anualmente ou sempre que os pais suspeitarem de algum problema auditivo.
Dessa forma as diretrizes buscam atingir as metas conforme a etapa 1-3-6 (Figura 1):
- Realização da TAN no primeiro mês de vida.
- Confirmação da deficiência auditiva até o terceiro mês de vida.
- Intervenção/reabilitação entre o terceiro e sexto mês de vida.
Figura 1- Etapas da TANU até intervenção necessária (Etapas 1-3-6).

Os fluxogramas sugeridos abaixo ajudam a compreender como deve ser o seguimento pós TANU em caso de alteração audiológica.
Figura 2- Fluxograma da TANU e suas etapas em saúde auditiva (Etapas 1-3-6).

Figura 3 - Fluxograma Diretrizes de Atenção da Triagem Auditiva Neonatal

Cerca de 20% a 30% das crianças com perda auditiva desenvolvem esta perda nos primeiros anos de sua infância. Toda queixa dos pais em relação à possível perda auditiva deve ser acompanhada de avaliação auditiva completa, pois a suspeita familiar é responsável por identificar cerca de 70% destas crianças. A avaliação continuada do desenvolvimento da linguagem e da fala deve ser seguida da avaliação auditiva formal para todas as crianças que não atinjam os marcos do desenvolvimento no período adequado. Todas as crianças que sofreram um episódio de meningite bacteriana ou encefalite virótica devem ser avaliadas preferencialmente antes da alta hospitalar.
Estas crianças devem ser acompanhas nos primeiros meses após a infecção, notadamente nos casos de meningite, pois esta pode gerar calcificação da cóclea e perda progressiva da audição nos seis meses seguintes. Para maiores detalhes sobre o seguimento consulte as Diretrizes da Atenção à Triagem Auditiva Neonatal (link nas referências).
As idades consideradas nestas diretrizes se referem à idade corrigida, ou seja, descontando a prematuridade, principalmente no que se refere ao acompanhamento/monitoramento e desenvolvimento da função auditiva e linguagem.
Crianças com falha no registro das EOAE, mas com resultados satisfatórios no Peate-A deverão realizar monitoramento até os três meses de idade, com nova avaliação, e os pais/responsáveis devem ser orientados sobre a importância deste monitoramento, devido a possíveis alterações de orelha média, ou perdas auditivas leves permanentes.
Além disso, devem ser orientados quanto à necessidade do monitoramento nas consultas de puericultura na atenção básica e realização da avaliação otorrinolaringológica e audiológica entre 7 e 12 meses na atenção especializada.
Quando encaminhar para avaliação otorrinolaringológica
Aqueles neonatos e lactentes com malformação de orelha, mesmo que em apenas uma delas, deverão ser encaminhados diretamente para diagnóstico otorrinolaringológico e audiológico. No caso de falha no reteste, todos os neonatos e lactentes com ou sem indicadores de risco para deficiência auditiva devem ser encaminhados imediatamente para avaliação diagnóstica otorrinolaringológica e audiológica. No caso de suspeita de perda auditiva, dos pais e/ou responsáveis, pediatras, profissionais da Saúde e/ou da Educação, a criança com ou sem IRDA deve ser imediatamente encaminhada para avaliação otorrinolaringológica e audiológica, mesmo que tenha obtido resultados satisfatórios na TANU.
Abordagens terapêuticas e intervenção precoce
A forma de intervenção dependerá do grau de perda auditiva e da etiologia. É importante ressaltar que a investigação da etiologia não deve atrasar o tratamento. Pacientes com perda auditiva bilateral leve, com perda moderada ou grave, uni ou bilaterais são candidatos à amplificação sonora. Não existe idade mínima para o uso de aparelhos de amplificação sonora individuais (próteses acústicas). Os mesmos são indicados assim que a perda auditiva é confirmada e devem ser usados o máximo de horas possível.
O tratamento com fonoaudiólogo é fundamental para desenvolvimento da linguagem. Esta pode ocorrer de diversas formas, através da linguagem oral, uso de linguagem dos sinais (LIBRAS) e inclusive a associação de ambas. Tais pacientes devem ser monitorados pelo otorrinolaringologista a fim de se evitar acúmulo de cerúmen que comprometa o funcionamento do aparelho de amplificação sonora ou otites com efusão, que por si só, são responsáveis por uma queda de 20 a 30 dB nos limiares auditivos.
Os pacientes com perda profunda bilateral, que não se beneficiam de aparelhos de amplificação sonora, são candidatos a implante coclear, já a partir do segundo semestre de vida (maioria dos serviços atualmente implantam crianças com pelo menos 1 ano de idade). Estes são aparelhos eletrônicos, implantáveis cirurgicamente na cóclea, que oferecem estímulo direto ao nervo auditivo. As crianças submetidas a implante coclear necessitam um acompanhamento prolongado por equipe multidisciplinar.
As crianças diagnosticadas precocemente, com perda auditiva profunda, desde que recebam estímulo precoce e terapia multidisciplinar, são perfeitamente capazes de desenvolver a fala e linguagem
Conclusão
Além da identificação precoce e encaminhamento oportuno, os pediatras devem verificar a presença de fatores de risco relacionados com a perda auditiva progressiva ou de início tardio, assegurando a monitorização auditiva e a observação rigorosa aos marcos de desenvolvimento da audição e da linguagem, nunca negligenciando e postergando avaliações em caso de falhas.
No caso de deficiência auditiva permanente, o diagnóstico funcional e a intervenção iniciados antes dos seis meses de vida da criança possibilitam, em geral, melhores resultados para o desenvolvimento da função auditiva, da linguagem, da fala, do processo de aprendizagem e, consequentemente, a inclusão no mercado de trabalho e melhor qualidade de vida.