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Cuidados clínicos após parada cardiorrespiratória

Parada cardiorrespiratória (PCR) é definida pela parada completa da circulação relacionada a suspensão do funcionamento cardíaco. A parada da função efetiva do coração pode ser relacionada por eventos primários neste órgão ou por eventos sistêmicos que culminem nisto. Com medidas de reanimação a PCR pode ser recuperada ou, se inefetivas, levar a morte. A base do tratamento são manobras básicas de reanimação, com compressões torácicas e ventilação, bem como desfibrilação nos ritmos chocáveis e busca e tratamento de possíveis causas desencadeantes (quando identificadas ou suspeitas).   

Estima-se que ocorram aproximadamente 5 milhões de PCRs no mundo a cada ano e destas 20-40% conseguirão ser revertidas. A principal causa (especialmente das PCRs que ocorrem fora do hospital) é cardiopatia isquêmica. Assim, o número de pacientes que necessitarão de cuidados pós-PCR é significativo. Os desafios deste momento são muitos, como estabilização do paciente visando minimizar o risco de nova PCR, identificar e buscar tratamento das possíveis causas, buscar reduzir dano neurológico. Nesta postagem abordaremos estes pontos.  

Estabilização inicial
 

O risco de nova PCR é elevado – aproximadamente 4 a cada 10 pacientes que recuperam circulação espontânea. Um dos principais aspectos para evitar isto é garantir adequado funcionamento circulatório. Além disso, hipotensão é um evento bastante comum neste cenário. Como regra, a totalidade dos pacientes deverão ser monitorizados em ambiente de terapia intensiva após uma PCR. Quanto a monitorização, oxímetro de pulso, esfigmomanometro e CO2 no final da expiração são ferramentas não invasivas altamente eficazes.

Avaliação invasiva da pressão arterial (cateter arterial) é útil, mas não obrigatória. Adicionalmente, um acesso venoso deve ser garantido para administração de volume e vasopressores; o uso de uma veia central é preferível neste contexto, mas não obrigatório (em especial nos primeiros momentos).   

Quanto ao manejo da hipotensão, o costume é administrar volume (1-2 litros de cristalóides) para a maioria dos pacientes. Deve-se lembrar de usar doses menores de cristalóides em pessoas com insuficiência cardíaca ou sinais de congestão pulmonar. Apesar de ser esperada uma boa resposta a essa medida, recomenda-se uso de vasopressores de forma associada ao volume, para minimizar o risco de recorrência.

Pacientes com evolução favorável poderão suspendê-los rapidamente. Tende-se a preferir noradrenalina pelo menor risco de arritmias, mas um bolus inicial de adrenalina pode ser necessário para efeito imediato.  Como alvo de tratamento, deve buscar-se uma pressão arterial sistólica > 90 mmHg e pressão arterial média > 65 mmHg. 

Seguindo a lógica C-A-B (
circulation
,
airway
,
breathing
) do atendimento da PCR, deve-se garantir que a via aérea siga pérvia e que haja oxigenação. Na maioria das vezes, o uso de ambu (bolsa-válvula-máscara) é suficiente. Deve-se buscar saturação ≥ 92%, expansão adequada do tórax e ausência de sinais de obstrução de vias aéreas. Se estes objetivos estiverem contemplados, pode-se postergar entubação; do contrário, deve-se buscar uma via aérea invasiva e mais segura, preferencialmente com técnica de
sequência rápida de intubação
.  

Em relação a oferta de O2, o primeiro passo ao sair da PCR é ofertar a maior fração possível (idealmente uma FiO2 de 100%, se houver equipamento que oferte essa concentração). Quando houver possibilidade de monitorização, busca-se saturação maior que 94%, titulando a FiO2. Já os alvos de CO2 são manter uma PaCO2 entre 35-45 mmHg (ou 30-40 mmHg se usada capnografia). Vale destacar que dados observacionais sugerem que tanto hiperoxia quanto hipocapnia estão associadas com maior mortalidade intra-hospitalar e, portanto, devem ser evitadas.   

Neste primeiro momento pode-se ainda considerar o uso de amiodarona ou lidocaína para evitar recorrência de fibrilação ou taquicardia ventricular. Não existem estudos empíricos fortes que testem essa abordagem, mas ela é frequentemente utilizada. O importante neste ponto é não esquecer que a base do tratamento destas arritmias é a desfibrilação imediata. 

Avaliação de causas da PCR
  

Uma grande variedade de doenças (usualmente em fases avançadas) pode se manifestar como PCR. Assim, ao resolver o momento hiperagudo da reanimação, é fundamental considerar e investigar a etiologia para tratá-la e, assim, evitar a recorrência. Por vezes isto já é feito durante as manobras avançadas de reanimação. Listamos na
Tabela 1
as principais causas imediatamente tratáveis de PCR.  

Apesar das doenças cardiovasculares serem, como grupo, as causas mais comuns de PCR, não existe uma única causa que predomine. Assim, após e mesmo durante a estabilização inicial, o médico deve revisar a história do quadro que levou a PCR, a história médica pregressa, medicamentos e exames, exame físico e complementares atrás de etiologias. Revisão da carteira, braceletes, colares ou tatuagens de doenças (diabetes, insuficiência adrenal…), sintomas antecedentes (relatados por espectadores da cena, por exemplo) e mesmo o contexto (sinais de uso de drogas ou traumatismo) podem auxiliar no processo diagnóstico.   

Já o exame físico pode dar dicas variadas, incluindo patologias abdominais (sangramento retal ou oral, sinais de peritonismo), trombose venosa profunda, uso de drogas ou foco séptico (lesão de pele, pneumonia, abcesso…). Um exame neurológico sumário, com especial atenção a manifestações motoras e reflexos do tronco cerebral, é fundamental para decisão de realização de hipotermia terapêutica (ver a seguir), bem como sugerir eventos associados à PCR. Manifestações "de lado” (assimétricas) sugerem evento no sistema nervoso central e devem ser investigadas.  

Exames complementares também são úteis e devem ser realizados após a estabilização. Eles usualmente incluem: 

  • Eletrocardiograma: deve ser realizado precocemente após recuperação da PCR. Pode identificar ou sugerir infarto agudo do miocárdio, arritmias primárias, cardiomiopatias, distúrbios prévios da condução. Auxilia na decisão de realizar cateterismo (ver a seguir). 
  • Gasometria arterial: para auxiliar na estabilização e atingir parâmetros para minimizar o risco de nova PCR. 
  • Eletrólitos, função renal ou hepática: podem ser tanto causa da PCR, quanto indicar a etiologia. No mínimo potássio, sódio, creatinina, bicarbonato e cloro, transaminases e bilirrubina devem ser dosados. Em caso de hipocalemia, hipomagnesemia deve ser presumida e tratada de forma associada. 
  • Hemograma: anemia grave e leucocitose acima de 20 mil podem indicar a etiologia da PCR. Alterações leves são esperadas como consequência do evento agudo. 
  • Troponina e lactato: ambos tem elevações esperadas pela PCR, mas a curva usual é de redução progressiva. Em casos de aumento progressivo após o evento, deve-se buscar causas, como infarto, isquemia tecidual e eventos intra-abdominais. 
  • Exames toxicológico: devem ser realizados conforme a suspeita clínica.  
  • Radiografia de tórax e ultrassom à beira do leito: usualmente estão rapidamente disponíveis e auxiliam na identificação de doenças cardiopulmonares, como pneumotórax, tamponamento, embolia pulmonar, dissecção aórtica, entre outros.  
  • Tomografias: apesar de não haver recomendação homogênea, a tendência é ser mais agressivo na investigação, desde que não exponha o paciente a transportes e riscos desnecessários. Paciente com sintomas neurológicos e sem resposta à comandos devem no mínimo realizar TC de crânio. Outros achados e suspeitas clínicas devem ser investigados e TC de corpo inteiro deve ser considerada em pacientes com dificuldades na história clínica ou com etiologia não determinada.  

Por fim, um aspecto adicional na avaliação etiológica da PCR revertida é a decisão de realização de cateterismo diagnóstico (e terapêutico). Esta é a principal causa de PCR em estudos de prevalência; entretanto, o uso de estratégia de angiografia sistemática precoce não é recomendada para todos os pacientes, mas deve ser realizada em pacientes com suspeita de evento coronariano agudo. Isso inclui pessoas com elevação do segmento ST após a recuperação, choque, instabilidade elétrica, sinais de isquemia ou dano miocárdio extenso e em piora. São exemplos desta situação troponina em ascenção e ecocardiograma (à beira do leito) com disfunção segmentar.   

Hipotermia terapêutica, outros cuidados e avaliação prognóstica
 

Recomenda-se hipotermia terapêutica para todos os pacientes que recuperam circulação espontânea, mas que não obedecem a comandos em até 12 horas no pós-PCR, independente do contexto ou ritmo da PCR. As únicas contraindicações absolutas são diretivas prévias do paciente indicando desejo de evitar medidas invasivas e situações de risco (por exemplo, sangramento em sítio não compressível). Gravidez, procedimentos, instabilidade hemodinâmica podem ser realizados durante este tipo de tratamento.   

Deve-se buscar uma temperatura alvo de 33 a 36°C, por 72 horas pós-PCR. De uma forma geral, os dados de estudos empíricos sugerem que alvos mais baixos devem ser buscados quanto maior os sinais de danos neurológicos (perda de reflexos de tronco, ausência de qualquer resposta motora, edema cerebral na TC ou alterações de pior prognóstico no eletroencefalograma). A temperatura central deve ser monitorada, seja com termômetros cavitários (esofágico, vesical, retal) ou com medida venosa central; temperatura axilar e timpânica não deve ser utilizada. O efeito adverso mais comum é coagulopatia leve, mas arritmia, pneumonia, hiperglicemia, hipocalemia e redução na metabolização de fármacos são outras complicações do tratamento. Febre deve ser evitada em todos os pacientes pós-PCR.  

Outros cuidados gerais de pacientes pós-PCR que necessitam cuidados intensivos são monitorização e controle da glicemia (alvo 140 - 180 mg/dL), elevação da cabeceira a 30° e controle de convulsões. Eletroencefalograma deve ser realizado imediatamente no pós-PCR de pacientes que não obedecem a comandos para avaliar a possibilidade de epilepsia. Também deve-se ter um baixo limiar para monitorização contínua ou repetição do exame. Pacientes que apresentam epilepsia devem ser tratados, já profilaxia com anticonvulsivantes não é recomendada para prevenção de dano neurológico.  

Por fim, avaliação prognóstica em relação a evolução neurológica dos indivíduos só deve ser realizada após 72 horas da recuperação da PCR; este tempo pode precisar ser ainda maior se o paciente recebeu sedativos em algum momento do atendimento. Existem diferentes ferramentas de prognóstico, apresentamos abaixo algumas dicas: 

  • Ausência de reflexos pupilares 72 horas após PCR tem uma baixa taxa de falsos positivos para ausência de recuperação neurológica; 
  • Redução da relação de substância cinzenta: substância branca na TC precoce (menos de 2 horas) da PCR também tem boa acurácia para predizer pior prognóstico; 
  • Estado de mal mioclônico (mioclonias durando > 30 minutos) sugere pior prognóstico, em especial se associado com ausência de resposta motora.