Gestalt-terapia: (re)conhecendo suas origens e prática clínica
Um breve relato sobre a história
Frederick Perls, a grande persona da Gestalt, nasceu em 1893 em Berlim. Filho de uma família judaica, formou-se em medicina e iniciou seus trabalhos como psicanalista. Na década de 30, com a perseguição nazista, decide mudar-se para África do Sul com sua esposa, também psicanalista, Laura Perls. Por lá estabelecidos, continuam a desenvolver seus trabalhos com a psicanálise, mas começam a reexaminar a teoria proposta por Freud.
Na década de 40, temendo o
apartheid
, Perls e Laura emigram para os Estados Unidos (Perls
et al
., 1997). É nesse contexto, em meados de 1950, que se inicia o “grupo dos sete”, formado por Frederick Perls, Laura Perls, Paul Goodman, Isadore From, Paul Weisz, Sylvester Eastman e Elliot Shapiro. Impulsionados pelo início do movimento da contracultura, discutiam novos conceitos e práticas terapêuticas.
É somente em 1951, com a publicação do livro
“Gestalt Therapy: excitement and growth in the human personality”
,
que a Gestalt-terapia é oficialmente divulgada. Hoje considerada a “bíblia da Gestalt”, essa obra fora escrita por Fritz Perls, Paul Goodman e Ralph Hefferline (Frazão & Fukumitsu, 2013).
É a partir do pensamento desses grandes nomes que conhecemos e compreendemos a Gestalt-terapia. Essa abordagem, que fora aperfeiçoada ao longo dos anos, propõe o processo de crescimento e desenvolvimento do potencial humano. O foco da Gestalt é compreender o indivíduo como um todo (biopsicossocial), a partir da experiência no momento presente (Perls, 1977).
As bases que sustentam a abordagem e suas implicações na prática clínica
É imprescindível conhecer as bases filosóficas de uma abordagem para conseguir compreendê-la. Quando entendemos suas origens, expandimos a compreensão sobre seus conceitos e suas propostas terapêuticas. Para além disso, Ribeiro (2006) apud Santos
et al
(2020), sugere que a Gestalt-terapia, por estar ancorada em pilares filosóficos, mostra-se comprometida com uma visão de ser humano e de mundo, o que garante maior consistência epistemológica.
Esses pilares filosóficos são múltiplos e diversas são as fontes utilizadas pela Gestalt-terapia. Pode-se citar o Humanismo, a Fenomenologia, o Existencialismo, a Psicologia da Gestalt, forte influência do pensamento reichiano e da Psicanálise (Cardella, 2017; Ribeiro, 2006).
Dessa forma, seria um equívoco falar das bases filosóficas da Gestalt-terapia sem falar da psicanálise. Perls, como mencionado anteriormente, era psicanalista, e em 1942 lança o livro
“Ego, fome e agressão”
, no qual apresenta uma série de discordâncias ao trabalho psicanalítico. Para Freud, a agressão estaria ligada ao impulso de morte. Por outro lado, Perls propõe que a agressividade esteja ligada à liberdade de criar, tendo sua natureza relacionada à vida (Perls
et al
., 1997).
O método psicanalítico também sustenta a ideia do inconsciente e utiliza a interpretação do analista. A Gestalt, por sua vez, reconhecendo suas bases fenomenológicas, entende que terapeuta e cliente devem estar juntos, no centro das atenções, utilizando a descrição dos fenômenos para encontrar uma melhor compreensão desse sujeito (Frazão & Fukumitsu, 2013; Perls
et al
.,1997).
Além disso, o gestalt-terapeuta está mais preocupado com os “para quês” do que com os “por quês”. O cliente, muitas vezes, busca encontrar as causas do seu sofrimento; no entanto, encontrá-las nem sempre traz o alívio esperado. Dessa forma, buscar o “para quê” é um convite para entender a vida dessa pessoa, o sentido que ela mesma dá à sua existência e às suas demandas (Almeida, 2010).
Alinhado a essas novas formas de percepção do ser humano, é no seio do Existencialismo que o cliente é visto como um ser consciente e responsável por suas escolhas. Nesse caminho, o terapeuta o convida a assumir a responsabilidade do seu projeto de vida e do sentido de sua existência. Por meio da ampliação da consciência (
awareness
), o cliente é capacitado a fazer escolhas mais responsáveis e autênticas (Frazão & Fukumitsu, 2013).
O Existencialismo também pressupõe a valorização das relações, do encontro e do diálogo com o outro. É por meio desse viés que a Gestalt-terapia se configura como uma abordagem dialógica e sustenta a ideia de que será na relação terapêutica em que ocorrerá todo o processo de experimentação e reconhecimento de si. Além disso, é o relacionamento com o terapeuta que permite ao cliente compartilhar seu mundo interno e revelar seus conflitos, angústias e expectativas (Almeida, 2010; Frazão & Fukumitsu, 2013).
As principais ideias da Gestalt-terapia
Embora exista uma infinidade de conceitos na Gestalt-terapia, alguns deles ocupam um espaço central e compreendê-los é uma forma de ter material substancial para mensurar resultados. Frente à essa colocação, compreende-se como peça-chave dessa abordagem os seguintes conceitos:
- Aqui e agora:significa o tempo e o lugar do presente. É o espaço e o tempo que estão acontecendo no momento. Muitas vezes, há uma disfunção dessa percepção e o cliente não consegue se conectar com essas duas dimensões (Ribeiro, 2006).
- Figura e fundo:esse conceito, baseado na psicologia da gestalt, pressupõe a ideia de que há situações que se tornam principais na nossa percepção e são foco da nossa atenção (figura), enquanto outras situações ficam em segundo plano (fundo). São dois processos que se alternam, ora um se revela, ora outro se mostra para o sujeito (Ribeiro, 2006).
- Awareness:também compreendido como “tornar-se presente” ou “tornar-se consciente”, esse conceito é o objetivo principal da Gestalt-terapia. Quando ocorre essa consciência todas as percepções, sensações, emoções e sentimentos do sujeito trabalham para ressignificar uma experiência (Perlset al.,1997; Ribeiro, 2006).
- Ajustamento criativo:é a capacidade do sujeito de se apropriar de novas situações e criar recursos que o conduzirão ao bem-estar. Ajustar-se de forma criativa é adaptar-se a mudanças, abrir-se para o novo e para a fluidez (Frazão & Fukumitsu, 2014).
As técnicas que compõem o trabalho na Gestalt-terapia
O grande objetivo das técnicas no trabalho gestáltico é a ampliação da
awareness
. É por meio dela que terapeuta e cliente podem compreender sentimentos e sensações, rever certezas rígidas e redescobrir regras propostas por figuras de autoridade na infância. A ideia principal é permitir que o cliente tenha insights a partir da experiência presente, sem necessariamente precisar da interpretação do terapeuta (Perls
et al
., 1997).
Compreende-se por técnica os instrumentos operacionais utilizados pelo Gestalt-terapeuta. Eles podem ser em forma de exercícios ou experimentos. Os exercícios, por exemplo, são recursos com objetivos previamente definidos (como observar e treinar a respiração ou explorar os cinco sentidos). Já os experimentos não têm um fim determinado; ele surge na relação terapêutica (Frazão & Fukumitsu, 2015).
Ainda segundo Frazão e Fukumitsu (2015), algumas das técnicas utilizadas na Gestalt-terapia são:
- Verbais:muitas vezes, o gestalt-terapeuta pode sugerir que o cliente altere algumas expressões por outras. Por exemplo, utilizar o pronome “eu” em vez de “a gente”. Na frase: “a gente ficou muito triste com essa situação”, o terapeuta poderá sugerir que o cliente altere para “eu fiquei muito triste com essa situação”. O objetivo é trazer o cliente à responsabilidade dos seus pensamentos, sentimentos e ações.
- Não-verbais:o gestalt-terapeuta pode utilizar recursos artísticos para que o cliente possa expressar determinadas demandas e entrar em contato com sensações e sentimentos.
- Cadeira-vazia:um dos experimentos mais conhecidos da Gestalt-terapia. A partir de uma demanda expressa pelo cliente, o gestalt-terapeuta propõe que uma cadeira seja ocupada por uma almofada para que se possa dar seguimento a uma representação. Essa almofada pode representar um personagem de uma situação inacabada trazida pelo cliente. A partir de então, o terapeuta sugere um diálogo entre o cliente e a outra parte, ora trocando de papeis. O objetivo do experimento é permitir que o sujeito entre em contato com suas demandas e possa ter sua tomada de consciência (awareness)
É importante salientar que toda técnica utilizada em Gestalt-terapia faz sentido dentro de um contexto relacional. Frazão e Fukumitsu (2015) afirmam ainda que a técnica existe no movimento vivo da relação; não é ela sozinha que faz o processo acontecer.
Conclusão
De forma geral, a Gestalt-terapia surge em um contexto de mudanças culturais e se perpetua no movimento da terceira força da psicologia. Com sua base fenomenológica, propõe-se a perceber o sujeito como um todo, a partir da sua própria significação de mundo.
E por assim dizer, uma das grandes potências da Gestalt-terapia é compreender que ela se faz no encontro. No encontro do terapeuta, ainda que munido do seu conhecimento técnico, consegue reconhecer no outro o mistério do não-saber e do vir-a-ser. Reconhece no outro a sua presença e se faz presente no aqui-agora.
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Autoras
- Flávia dos Santos Lima
Psicóloga graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Possui especialização em Psicologia Clínica Hospitalar em Cardiologia pelo Instituto do Coração da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor – HCFMUSP). Também possui especialização em Gestalt-terapia Clínica e Institucional pela Universidade Cruzeiro do Sul. Atualmente atua como psicóloga clínica, supervisora clínica e ministra palestras para universidades e escolas.
- Beatriz de Oliveira Meneguelo Lobo
Psicóloga e Mestra em Psicologia (área de concentração Cognição Humana) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Doutoranda em Psicologia em Saúde e Desenvolvimento pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da Universidade de São Paulo (USP), com bolsa pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Especialista em Terapias Cognitivo-Comportamentais e com Formação em Terapia do Esquema. Pesquisadora e Supervisora no Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental - LaPICC-USP da Universidade de São Paulo (USP).